quinta-feira, 30 de junho de 2011

Eu, na infância / 9


MIL NOVECENTOS E SESSENTA

É injusta a comparação do corvo
entre os ramos da tília branca
com a morte.

Mas o meu primeiro contacto com a morte
tem um pouco dessa coincidência,
em que um rumor amplia a memória
e um vulto saltita de sombra em sombra.

Eu tinha sete anos
e ia a caminho de algum lugar
para comprar pão, laranjas, ou o que fosse
que escreveram num papel.

De súbito, vi
um vulto e uma mancha branca
a passar à minha frente,
seguidos de um estrondo.

Na esquina onde agora há um restaurante
e era a mercearia
corria o sangue
e dois corpos, lado a lado,
jaziam no chão,
caídos pelo vigor
da velocidade estonteante
e a desatenção.

No ar ficou um cheiro intenso a borracha queimada
e gasolina
e a roda dianteira do motociclo ligeiro
rodava ainda quando cheguei mais perto
com o papel do recado
entre os dedos, franzinos,

insuportavelmente franzinos
para tão brutal desgraça.

Então, compreendi;
tal como a morte,
a vida é
debalde.


(in Açougue, Corunha, Espiral Maior, 2009)

quarta-feira, 29 de junho de 2011

José Agostinho Baptista



Agenda: Lançamento do livro Caminharei pelo Vale da Sombra, de José Agostinho Baptista.
Local: Clube Naval do Seixal, Madeira - dia 9 de Julho, pelas 18 horas

Eu, na infância / 8



MIL NOVECENTOS E CINQUENTA E NOVE

Em 1959 fiz seis anos no dia seis de Maio.

O mundo era, ainda, exíguo para mim,
que caçava borboletas e ansiava, à noite,
por uma bicicleta igual à dos rapazes
da casa em frente à minha,
ou uma fisga,
ou um comboio eléctrico.

Também à noite,
quando a temperatura refrescava
e todos iam para o bosque
encontrar-se com os fantasmas,
eu subia e descia a minha rua,
à procura de pedras pequeninas
que emitissem som e dessem luz
para guardar nos bolsos,
e ter a ilusão de que as minhas guloseimas
eram reais.

Pouco sabia, ainda,
da importância que há sempre
no voo subtil dos pirilampos
a sobrevoar os quintais,
as sebes,
os beirais
e do peso que tem cada palavra
num bem determinado território,
seja ele mineral ou animal,
ou do domínio da pura fantasia.

Por isso me convenço
que, por essas pedras pequenas que buscava
e eram azougados pirilampos
a tracejar o escuro,
ainda hoje escrevo poesia.


(in Açougue, Corunha, Espiral Maior, 2009)





Foto: © de Amadeu Baptista

A Vida das Pedras / 5






terça-feira, 28 de junho de 2011

Eu, na infância / 7



MIL NOVECENTOS E CINQUENTA E OITO

Com cinco anos só é possível tentar adivinhar
as idades da terra.

As mãos ainda pequenas
vão ao mar pela primeira vez
e aprendem como as coisas
pertencem a um caos
de frio e de calor
muito parecido com a pele da mãe.

Alisam, suavemente,
a areia branca,
tentando que ela fique
entre os dedos para sempre,
temendo que perdure
entre os dedos
enrugados.

Depois, os braços erguem as mãos
mais facilmente,
levando-as a voar por sobre as ondas
e o ruído intenso
da rebentação,
que nunca mais será esquecido,
uma vez que a inocência prevalece
e a agilidade selvagem da criança
se prepara
para os naufrágios subsequentes.

Com cinco anos, em estado de graça.



(in Açougue, Corunha, Espiral Maior, 2009)



Foto: © de Amadeu Baptista

Irene Papas






                                  Crithos Anestis, Irene Papas, s/ música de Vangelis


segunda-feira, 27 de junho de 2011

Eu, na infância / 6




MIL NOVECENTOS E CINQUENTA E SETE



Vi um camião esmagar

a parte de trás de uma sardanisca.



A parte da frente da sardanisca

continuou a andar pela estrada

mas o polícia de trânsito informou

que não tardaria a nascer-lhe

uma nova parte de trás.



A frente do camião é que ficou

sem conserto.


(in Açougue, Corunha, Espiral Maior, 2009)

 Foto: © de Amadeu Baptista 

domingo, 26 de junho de 2011

Albrech Dürer


ALBRECH DÜRER: MELENCOLIA (1514)

A melancolia e as suas engrenagens:

uma aproximação matemática à gravura

– e mandíbulas,
costelas,
cavernames,
as unhas escurecidas da morte,
a constrição do sagrado,
a forca e a beatificação:

o grande mundo,
exposto ao barro e à água,
os óxidos letais.

As geometrias:

apuradas nos gregos,
mas refeitas pelo perímetro da noite,
porque a vida é salgada,
obstinada,
e se mede em metros,
hectares,
quilómetros.

A obra:

um escuro troféu
exposto às rajadas de vento,
um vento aceso
a cair, em bisel,
sobre os homens,
parados,
pelas ruas.

A alma:
um corpo intrusivo que comanda o olhar
e percorre os ossos
do crânio,
cheio de assombrações.

Um ponto culminante:

Mantegna,
Pollaiuolo,
Lorenzo de Credi

e, obviamente, Veneza:

sim, a nossa vida é salgada,

vejam-se as marcas nos pulsos,
os vínculos,

os vínculos bíblicos:

aquele que aumenta o conhecimento
aumenta a tristeza (Ecl.1:12-18).

A metafísica:

uma obra de arte comanda-se pela intuição
e só o rigor do instinto salva o artista,

gadanhas,
vulpina,
carcaças de cães,
sinos a dobrar
nos pátios acerbos.

E ver os outros:

as marcas purpurinas bem no meio das testas,
a claridade pendente dos ganchos dos cabelos,
a crepitação do fogo,
o aconchego pedregoso dos campos visuais,
a unção da ferida.

Não conhecendo, criar:

sentir a diferença
entre uma lebre jovem
e um hipopótamo,
o galrear de Deus.

Tomar a vagem da giesta
e cindir-lhe os pormenores:

as casas e os jardins de Jerusalém,
Lázaro,
a clâmide branca da ressurreição
e a clâmide
negra da segunda morte,

a arte como desambiguação.

Fazer o quadro como orbe arquitectónica,
pondo em causa
Barbaro,
Filarete,
Vitrúbio,
e a fortificação das cidades,
das vilas,
dos castelos –

verter na chapa os óleos puros.

Tornar impura a abstracção,
mas sentir a folhagem agitada a roçagar
no choro de um estranho,

e a luz medir
a régua e a compasso.

Apresentar o nome
como uma marca distintiva
e distinguir entre a Grande Paixão
e a Pequena,

este mistério:

cômoros, monturos, escarpas e quinteiros
são bons lugares de observação.

Outro ponto culminante:

consagrar na gravura a vanglória,
mas nunca a vanidade.

E depurar:

nos genuflexórios
vai o susto e vão os assustados,
os povoados homicidas,
os coágulos.

Procuro, entre outras coisas,
a síntese dos enigmas:

os anfitriões
de Nuremberga
visitam-me quando a neve é uma dor incontornável

e a bétula,
o espinheiro bravo,
o freixo
e o rododendro
estiolam

– entre o pentágono
e a árvore.

A beleza:

recortar o desenho sobre a chapa de cobre,
usar o buril como um cinzel delicado,
firmar as mãos
e esperar

– o cavaleiro, a morte e o demónio
fazem o resto.

Ou a melancolia.

Ou a perspicácia.

Ou a natureza.

Ou S. Jerónimo.

Entendo o corpo como a semente
que se dá à terra,

a eternidade é o tempo que medeia
entre a deflagração da chama

e o seu clarão:

uma acústica de brilhos,
enquanto as mãos sustêm

a flagelação
e os passos da beatitude são infinitesimais.

A engrenagem:

seguir o trilho dos veados,
apertar a sandália,
respeitar o jejum,

e ir,
investido por Deus e o sortilégio,
onde nunca foi possível ir
para que sempre haja um ponto de fuga irreversível

e se encontrem os rumores inextricáveis
das imagens,

as fulgurações,

a sua ordem.

Há-de, pelo sangue, então,
acontecer
que pequenos anjos
se sentem
nos telhados das casas.



(in Doze Cantos do Mundo, Sintra, Edição CM Sintra, 2009)

sábado, 25 de junho de 2011

Jorge Velhote


Jorge Velhote, Poeta Convidado



Três poemas de Pequenas Setas que Afastam os Olhos:


5.

Talvez haja somente um lugar para morrer.
Alguém abre janelas para observar como amadurecem os frutos

    ignorando
se as árvores acolhem ainda a rugosidade intensa da terra.
É débil esse momento e puro mas secretamente
as mãos estremecem pressentindo que o silêncio é justamente
a haste harmoniosa que purifica esse instante.
Quando envelheces sabes que esse lugar exíguo está contigo desde

    sempre
como vem de longe revelando o tempo.
A harmonia do teu corpo sussurrante como um beijo
é esse lugar tão próximo de ti como um fruto mordido.


10.

Por vezes morres várias vezes e assim as palavras se amarrotam

    nos dedos
até que abres um pouco os olhos para as ver cair
como se erguesses um muro ou uma sombra
para dentro de um poço ou regato.
Às vezes morres e as palavras arrastam as pedras e derrubam
as sombras como se inundasses de nuvens os rios
ou amordaçasses os peixes contra os lábios.
Quando morres enlouqueces com palavras
a mansidão das ruínas - os pomares do esquecimento.


15.

Ignoro porque estão ali. Ao fundo vê-se o céu caindo escuro
sobre os seus ombros. Estão de costas e pelos
chapéus o mar deve estar revolto. Não sei
quem os fotografou acolhendo os
seus olhares já antigos ou
mesmo mortos. Deles
nada sei, mas
a fotografia é
nos meus dedos um arco recortando o tempo do meu olhar.



Jorge Velhote, nasceu no Porto, a 2 de Maio de 1954.Editou: A Parede como Página –
Exposição de Pintura e Poesia, com Carlos Falcão, Jorge Afonso e Paula Alves, Porto,
Galeria Alvarez, 1979; Atrito de Gotas, com José Carlos Soares, Porto, Edição dos
Autores, 1982; Os Sinais Próximos da Certeza, Porto, Edição dos Autores, 1983; Os
Sinais Próximos da Certeza, Porto, Edição dos  Autores, 1983; Hermeneutical Studies,
in A Jovem Poesia Portuguesa / 2, Porto, Limiar, 1985; Os Mapas sem Fronteiras
Sufocam os Lugares, com fotografias de João Paulo Sotto Mayor, Porto, Edição
dos Autores, 2004; Máquina de Relâmpagos, com fotografias de João Paulo Sotto
Mayor, Porto, Edições Afrontamento, 2005; Nussun, com fotografias de Miguel Louro,
Porto, Edição dos Autores, 2009

  

Periodicamente este blog apresentará um Poeta Convidado: obviamente, os direirtos pertencem aos respectivos autores.

 Fotos: © de Amadeu Baptista      

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Porto, S. João



São João Baptista, Leonardo da Vinci, 1513/16, Óleo s/ madeira, 69 x 57 cm, Museu do Louve, Paris

Sala dos Actos / 3

usa a tua nudez acessórios mortais

para quem procura. a fita de veludo,

o cinto de fivela prateada,

a pintura guerreira, o golpe subtil



com que anuncias a ascensão

ao cume do carinho, exactamente

quando sobre o desvario

distendes os flancos e lanças sobre mim



o golpe intrépido

para que o êxtase estoure no meu corpo

esse mar de grata violência



que pressinto chegar em vagas sucessivas

sempre que gritas e, nesse grito,

desatas o meu grito.



(in Umbigo, n.º 20, Lisboa, 2007)




Egon Schiele, Rapariga Sentada, 1911, Lápis e aguarela, 48 x  31.5 cms, Haags Gemeentemuseum voor Modern Kunst, Tha Hague

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Sala dos Actos / 2

trabalha com a língua, guarnece

de asas o vínculo precário

que nos prende à vida. o brilho

nos teus dentes sugere que a mágoa



pode vencer-se à míngua, acalentando-se

a transparência do sonho, a magnitude

da pele, o sobressalto

que perpassa no teu dorso



e responde à lascívia e ao denodo.

abraça nessa luz o alvoroço

de seres o animal que me conduza



à loba negra que em ti habita

e sob esta penumbra desoculta

a mancha branca que a cama oculta.



(in Umbigo, n.º 20, Lisboa, 2007)




Egon Schiele, Mulher Grávida e a Morte, 1911, Óleo s/ Tela, 100 x 100 cms, Galeria Narodni, Praga

A Vida das Pedras /4





segunda-feira, 20 de junho de 2011

Sala dos Actos / 1

 agora, vibra, vibra como vibro

ao saber a saliva e a alegria

com que é possível morrer nesta paixão

e ressurgir na graça do tumulto.



afunda no meu peito a energia

que vem sob a penumbra realçar

a tua silhueta de serpente.

no ardor da carícia podes tudo.



estou pronto para o infortúnio

e o assassínio, seja a luxúria esta

e o entendimento



do que nos pode poupar o sofrimento.

que a tua solidão seja na minha

o lume decisivo, a lura, o luto.



(in Saudade, n.º 6, Amarant, 2004)




Egon Schiele, A Morte e a Donzela,  1915/6, Óleo s/ Tela, 150 x 180 cms, Oesterreichische Galerie, Viena

Poética da Floresta / 3





domingo, 19 de junho de 2011

Rembrandt




REMBRANDT: AUTO-RETRATO(S)  (1640)





Não me afasto: o rosto está sobriamente exposto

e olho em frente como se mais nada haja

ou tudo seja só imprecação.



Não é altiva a luz, mas no olhar

eu sei que pus derivas infinitas

e interrogações

para que jamais terei uma resposta

além da que talvez lamente ter já dado,



enquanto no desenho amplificava

a água verdadeira do milagre

e via a morte.



Sei exactamente porque vivo

e esta praia não se silencia

quando os meus olhos seguem a gaivota,

a tela azul do céu,

o grão que a terra encerra.



Mas quem me vir dirá que esta sombra

é só um desdobramento de sombras em que estou

uma figura parada,

que em silêncio

tem que dizer tudo.



E, sendo que assim é,

desenho, apenas,

sabendo que o desenho

é mais do que alguma vez irei saber,

sendo que a austeridade do silêncio

só é ouvida

por quem nada sabe,

e eu,

sabendo pouco,

sei que sei demais.



Algumas coisas sei que, no retrato,

claramente digo,

porque apresento o meu rosto a quem me vê

e não desvio o olhar

e, pelo olhar, demonstro

que só pela atenção se pode crer.



Assim fazendo amplio o mistério

que na pintura adenso,

sabendo que o silêncio pode ser

a minha filha morta,

Saskia a escarrar num lenço

porque o sangue se amontoa na garganta

e a asfixia,

ou o meu filho que,

nocturnamente,

chora,

sem saber porquê.



Quem me olha de longe sabe ao certo

que homem sou,

ou imagina, apenas, que a fama e o renome

me acalentam o corpo

e os pincéis,

de modo a que eu seja só tranquilidade?



Ou, dizendo de outra forma,

será que me invejam porque vêem

quem nunca hão-de ser,

ou congeminam que o talento basta

e que nenhuma dor pode abate-lo?



Se lhes dissesse que, neste momento,

não sei quem sou,

tal como sempre de mim tudo ignorei,

passariam de largo no museu

onde o meu rosto,

este, ou qualquer outro,

está exposto.



E eu, se lhes falasse,

só concordaria,

sabendo, como sei,

que é próprio da loucura

a mansa violência de supor

que é feliz quem está e nada diz

no enquadramento da moldura.



Mas digo-lhes que o artista

passou fome

e que o frio insuportável lhe tolheu as mãos

e que, demasiadas vezes,

só comeu uma maçã,

e que sofreu por tudo quanto viu,

sendo que viu demais para o que viveu

e pouco, muito pouco,

para o que amaria ter perscrutado

na beleza e na fealdade que há nas coisas.



A luz – desenho, apenas?



Ou manchas indeléveis

do mal que já fizemos

e nos fazem

e Deus inscreve no rastro de um cometa

que tem o nosso nome

para que nunca se esqueça como arde

a nossa alma no inferno?



Ou traços sobre traços,

ou só, apenas, a limpa sujidade que reluz

no coração oculto

da perversidade?



O subtil contraste

entre uma sombra e outra,

ou só, apenas, uma vibração mais tensa,

sem mácula, mas com crime,

por assim ser tudo

contraditório e cru?



Parado como estou nestas imagens dos auto-retratos

só sei como o devir me agiliza

a morte

e como, inconfundível,

confundo alguns sentidos

na incurável ferida de saber

que, no retrato, tudo se move, útil e inútil,

na obscura transparência do infinito.



Eu sei: na solidão

há sempre pouca esperança

e a desavença sempre se prolonga

quando alguém se vê sozinho

na vida ou na imagem

que de si mesmo tem se se lamenta.



Porém, a solidão

é o mundo à nossa volta,

o fluxo e o refluxo

da corrente do mundo

e da lição

de anatomia

que nunca se aprende,

mas se impõe aos olhos,

inteira e magnífica.



Aqui, desta parede, é só do mar

que sinto a falta, o mar

e o seu cantar de ocarinas roucas,

às vezes só sanguínea

e, outra vezes,

empastes sobre empastes

azul-turquesa

– o  mar e a tempestade.



Os visitantes passam e eu, daqui,

vejo-os passar vendo-me a mim mesmo

pelos rostos que chegam

com mágoa e amargura no olhar,

as mãos abandonadas noutras mãos,

sem mais paixão do que estarem vivos

e a morrer,

supondo-se imortais.



A luz nada lhes diz,

sequer os meus retratos os intimidam,

olhando-os nos olhos como olho,

sem mais ressentimento do que os ver

passar em direcção ao caos, ao nada e ao vazio

que lhes pulsa no peito

sem que o ouçam.



A luz – a amargura.



Envolve-me a nuca

e o cabelo,

alisa-me a testa,

adoça-me o nariz

e vem-me à boca

talvez para que o meu silêncio pronuncie

o que na roda de moleiro da infância

perdi para sempre,

enquanto vi meu pai perder

o desafio do vento e da farinha.



Aí eu sei que começou a morte

e a ronda nocturna teve início,

fazendo do silêncio o meu lugar na terra,

enquanto um rebanho de cabras ou um fruto

me ia fascinando

– e escutava o chão

e adivinhava a luz.



E a luz, essa prerrogativa inalterável,

fez de mim um súbdito insubmisso,

trazendo-me a este rosto de mil rostos

onde tudo se perde e se transforma

para que a afronta

seja quase enigmática

e se acenda e apague pelos séculos

para que eu saiba que, apesar de tudo,

valeu alguma coisa ter vivido.



Assim me hão-de ver

sem que me vejam.



Assim os hei-de ver

sem que me vejam,



mas vendo em quem me vê

o inesgotável

rumo do universo,

o rastro inexorável do cometa.



Silêncio, agora.



A tempestade é, ainda, vulnerável

e pode acontecer que um relâmpago

ilumine a funda escuridão que nos sitia



  e a luz questione o corvo e a serpente,



e quem passa e não pensa

passe e pense.



Assim se expandirão os meus retratos e à lacuna

sucederá outra lacuna

e os mortos invocarão os mortos para que,

sobre o meu rosto,

uma borboleta poise

e eu a sinta.



(in Doze Cantos do Mundo, Sintra, Edição CMSintra, 2009)