domingo, 26 de junho de 2011

Albrech Dürer


ALBRECH DÜRER: MELENCOLIA (1514)

A melancolia e as suas engrenagens:

uma aproximação matemática à gravura

– e mandíbulas,
costelas,
cavernames,
as unhas escurecidas da morte,
a constrição do sagrado,
a forca e a beatificação:

o grande mundo,
exposto ao barro e à água,
os óxidos letais.

As geometrias:

apuradas nos gregos,
mas refeitas pelo perímetro da noite,
porque a vida é salgada,
obstinada,
e se mede em metros,
hectares,
quilómetros.

A obra:

um escuro troféu
exposto às rajadas de vento,
um vento aceso
a cair, em bisel,
sobre os homens,
parados,
pelas ruas.

A alma:
um corpo intrusivo que comanda o olhar
e percorre os ossos
do crânio,
cheio de assombrações.

Um ponto culminante:

Mantegna,
Pollaiuolo,
Lorenzo de Credi

e, obviamente, Veneza:

sim, a nossa vida é salgada,

vejam-se as marcas nos pulsos,
os vínculos,

os vínculos bíblicos:

aquele que aumenta o conhecimento
aumenta a tristeza (Ecl.1:12-18).

A metafísica:

uma obra de arte comanda-se pela intuição
e só o rigor do instinto salva o artista,

gadanhas,
vulpina,
carcaças de cães,
sinos a dobrar
nos pátios acerbos.

E ver os outros:

as marcas purpurinas bem no meio das testas,
a claridade pendente dos ganchos dos cabelos,
a crepitação do fogo,
o aconchego pedregoso dos campos visuais,
a unção da ferida.

Não conhecendo, criar:

sentir a diferença
entre uma lebre jovem
e um hipopótamo,
o galrear de Deus.

Tomar a vagem da giesta
e cindir-lhe os pormenores:

as casas e os jardins de Jerusalém,
Lázaro,
a clâmide branca da ressurreição
e a clâmide
negra da segunda morte,

a arte como desambiguação.

Fazer o quadro como orbe arquitectónica,
pondo em causa
Barbaro,
Filarete,
Vitrúbio,
e a fortificação das cidades,
das vilas,
dos castelos –

verter na chapa os óleos puros.

Tornar impura a abstracção,
mas sentir a folhagem agitada a roçagar
no choro de um estranho,

e a luz medir
a régua e a compasso.

Apresentar o nome
como uma marca distintiva
e distinguir entre a Grande Paixão
e a Pequena,

este mistério:

cômoros, monturos, escarpas e quinteiros
são bons lugares de observação.

Outro ponto culminante:

consagrar na gravura a vanglória,
mas nunca a vanidade.

E depurar:

nos genuflexórios
vai o susto e vão os assustados,
os povoados homicidas,
os coágulos.

Procuro, entre outras coisas,
a síntese dos enigmas:

os anfitriões
de Nuremberga
visitam-me quando a neve é uma dor incontornável

e a bétula,
o espinheiro bravo,
o freixo
e o rododendro
estiolam

– entre o pentágono
e a árvore.

A beleza:

recortar o desenho sobre a chapa de cobre,
usar o buril como um cinzel delicado,
firmar as mãos
e esperar

– o cavaleiro, a morte e o demónio
fazem o resto.

Ou a melancolia.

Ou a perspicácia.

Ou a natureza.

Ou S. Jerónimo.

Entendo o corpo como a semente
que se dá à terra,

a eternidade é o tempo que medeia
entre a deflagração da chama

e o seu clarão:

uma acústica de brilhos,
enquanto as mãos sustêm

a flagelação
e os passos da beatitude são infinitesimais.

A engrenagem:

seguir o trilho dos veados,
apertar a sandália,
respeitar o jejum,

e ir,
investido por Deus e o sortilégio,
onde nunca foi possível ir
para que sempre haja um ponto de fuga irreversível

e se encontrem os rumores inextricáveis
das imagens,

as fulgurações,

a sua ordem.

Há-de, pelo sangue, então,
acontecer
que pequenos anjos
se sentem
nos telhados das casas.



(in Doze Cantos do Mundo, Sintra, Edição CM Sintra, 2009)

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