ALBRECH DÜRER: MELENCOLIA (1514)
A melancolia e as suas engrenagens:
uma aproximação matemática à gravura
– e mandíbulas,
costelas,
cavernames,
as unhas escurecidas da morte,
a constrição do sagrado,
a forca e a beatificação:
o grande mundo,
exposto ao barro e à água,
os óxidos letais.
As geometrias:
apuradas nos gregos,
mas refeitas pelo perímetro da noite,
porque a vida é salgada,
obstinada,
e se mede em metros,
hectares,
quilómetros.
A obra:
um escuro troféu
exposto às rajadas de vento,
um vento aceso
a cair, em bisel,
sobre os homens,
parados,
pelas ruas.
A alma:
um corpo intrusivo que comanda o olhar
e percorre os ossos
do crânio,
cheio de assombrações.
Um ponto culminante:
Mantegna,
Pollaiuolo,
Lorenzo de Credi
e, obviamente, Veneza:
sim, a nossa vida é salgada,
vejam-se as marcas nos pulsos,
os vínculos,
os vínculos bíblicos:
aquele que aumenta o conhecimento
aumenta a tristeza (Ecl.1:12-18).
A metafísica:
uma obra de arte comanda-se pela intuição
e só o rigor do instinto salva o artista,
gadanhas,
vulpina,
carcaças de cães,
sinos a dobrar
nos pátios acerbos.
E ver os outros:
as marcas purpurinas bem no meio das testas,
a claridade pendente dos ganchos dos cabelos,
a crepitação do fogo,
o aconchego pedregoso dos campos visuais,
a unção da ferida.
Não conhecendo, criar:
sentir a diferença
entre uma lebre jovem
e um hipopótamo,
o galrear de Deus.
Tomar a vagem da giesta
e cindir-lhe os pormenores:
as casas e os jardins de Jerusalém,
Lázaro,
a clâmide branca da ressurreição
e a clâmide
negra da segunda morte,
a arte como desambiguação.
Fazer o quadro como orbe arquitectónica,
pondo em causa
Barbaro,
Filarete,
Vitrúbio,
e a fortificação das cidades,
das vilas,
dos castelos –
verter na chapa os óleos puros.
Tornar impura a abstracção,
mas sentir a folhagem agitada a roçagar
no choro de um estranho,
e a luz medir
a régua e a compasso.
Apresentar o nome
como uma marca distintiva
e distinguir entre a Grande Paixão
e a Pequena,
este mistério:
cômoros, monturos, escarpas e quinteiros
são bons lugares de observação.
Outro ponto culminante:
consagrar na gravura a vanglória,
mas nunca a vanidade.
E depurar:
nos genuflexórios
vai o susto e vão os assustados,
os povoados homicidas,
os coágulos.
Procuro, entre outras coisas,
a síntese dos enigmas:
os anfitriões
de Nuremberga
visitam-me quando a neve é uma dor incontornável
e a bétula,
o espinheiro bravo,
o freixo
e o rododendro
estiolam
– entre o pentágono
e a árvore.
A beleza:
recortar o desenho sobre a chapa de cobre,
usar o buril como um cinzel delicado,
firmar as mãos
e esperar
– o cavaleiro, a morte e o demónio
fazem o resto.
Ou a melancolia.
Ou a perspicácia.
Ou a natureza.
Ou S. Jerónimo.
Entendo o corpo como a semente
que se dá à terra,
a eternidade é o tempo que medeia
entre a deflagração da chama
e o seu clarão:
uma acústica de brilhos,
enquanto as mãos sustêm
a flagelação
e os passos da beatitude são infinitesimais.
A engrenagem:
seguir o trilho dos veados,
apertar a sandália,
respeitar o jejum,
e ir,
investido por Deus e o sortilégio,
onde nunca foi possível ir
para que sempre haja um ponto de fuga irreversível
e se encontrem os rumores inextricáveis
das imagens,
as fulgurações,
a sua ordem.
Há-de, pelo sangue, então,
acontecer
que pequenos anjos
se sentem
nos telhados das casas.
(in Doze Cantos do Mundo, Sintra, Edição CM Sintra, 2009)
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