segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

O Bosque Cintilante # 77

Felix Mendelssohn: Marcha Nupcial

Não ofereci aos meus filhos a tartaruga doméstica
ou lhes incuti a chama do senso comum.
Amava vê-los correr nos arrabaldes
e senti-los perdidos pela estrela d'alva.

Talvez um dia visitem uma casa antiga
e se lembrem de mim quase a despropósito.
Mal sabem que lhes vigiei o sono
quando tombou a ausência sobre a minha cama.

Gostaria que soubessem que também fui criança
e perdi a inocência demasiado cedo.
(Tudo se perde cedo quando se não tem nada.)

A chuva alastra pela minha face
e o coração silencia a dor de os perder.
Coisas de um velho que nem chorar já sabe.



O Bosque Cintilante, Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista



quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Snorri Hjartarson



POEMAS DE SNORRI HJARTARSON



BUSCA

Busco os brancos dias esquecidos, caminho
pela lava cinzenta, pela senda experimentada e estreita,
arbustos retorcidos expõem o seu musgo ardente
move-os a tempestade que violentamente
me envolve e acaricia com a sua asa forte e lisa

as margens do rio pétreo e nas nuvens revoltas
dispersa-se o aguaceiro; sim, deixa-me
sentir a tua fúria, tormenta, canta
a penitência e o arrependimento; na tua mão,
gigante do este, abre a fonte das tuas flechas
sobre mim, confia na minha vontade e na minha paciência:
e entrarei no meu auroral paraíso
banhado na prova, baptizado no sofrimento intenso.

Kvaedi, 1944



A minha nostalgia era jovem e ria em diáfanos poços
sereia da brisa, bailarina nas frondes da primavera
Agora vive comigo e em silêncio vela
onde florescia o bosque.

Á Gnitaheidi, 1952



VIAGEM

O caminho de ida
é também o de volta.

Rápida gira a roda do dia.
os palácios junto à fonte
e as lojas na margem do rio
ficaram muito para atrás.
anoitece e a foice
floresce sobre as pálidas estrelas.

Abre-se o alcantilado,
cinzento de orvalho e frio
aparece o deserto,
caem espigas de estrelas
incandescentes sobre a rocha
morta e a pesada areia.

Longa será a noite
erma, escura.

Mas detrás das montanhas,
da noite, do horizonte,
surge a torre da luz
em que dorme o tempo.

É a sua paz e o seu sonho
a meta da viagem

Á Gnitaheidi, 1952



PETROGLIFO

Gravo a tua imagem na rocha,
preclaro e alto sol,
esculpo nela uma árvore e um homem e uma mulher, ato
o teu poder, a tua roda volúvel,
à terra, à vida, à fecundidade, ao amor e à paz
para que o gelo retroceda
e a erva brote e crianças, vitelos e cabritos
se alegrem junto ao lago tranquilo,
para que chefes e caudilhos abram tréguas e paz
e se silenciem os clarins do rei

Sol meu, surge forte, vem suave e cálido, bilha alto
no teu diáfano e azul caminho.

Eu te esconjuro pelo meu canto, pelo segredo da montanha,
pelas raízes profundas da semente,
pela tua chama que bruxuleia e arde nos olhos
das crianças na escuridão:
Afugenta a crueldade e o medo, e concede-nos
uma boa primavera e um longo e pródigo verão.
E oferecer-te-emos o tronco
que primeiro desabroche.

Á Gnitaheidi, 1952



SENTI QUE SE APROXIMAVAM

Senti que se aproximavam
e esperei na penumbra
do caminho, poeirento caminho.

Ele conduz ao cavalo
com a mão agarrada
às rendas, cravada nas rendas.

Ela aconchega o menino
enquanto contempla pálida
a noite, a encapotada noite.

E diz: sois vós
agora igual a então
fugindo, pelo caminho fugindo.

Mas, onde haverá asilo?
onde vos ocultareis
com a vossa esperança, a esperança de todos?

Olhando-me em silêncio
perderam-se de vista
na noite, o negrume e a noite.

Lauf og stjörnur, 1966



ENTARDECER

Nos baixios da tarde
a corrente dourada
enche a rede apertada
das nuas árvores
de peixes luminosos

Logo chega o crepúsculo
com as suas velas escuras
a recolher a pesca.

Lauf og stjörnur, 1966



ESCULTURA

Sob o verde crepúsculo
dos ramos da árvore
ela oferece nua
uma maçã vermelha

Olhos que ardem e brilham
mãos que procuram

E ele toma-a, a sentir
a doçura cativante
das suas mãos vacilantes
em duas maçãs brancas

Lauf og stjörnur, 1966



O BOSQUE DE FERRO

Dorme o bosque de ferro
as máquinas esperam

esperam a manhã
que virá com a sua presa

Lauf og stjörnur, 1966



MÃE JOVEM

Primavera alegre
entre flores e arbustos
está uma mãe jovem
um menino em seu regaço

o seu rosto é como um sol
o seu sorriso como cálidos raios
Rafael em plena glória

Formosura e bondade
duas coisas e uma mesma
o que há de mais indefeso
num mundo perverso?

Mas são o melhor
e sobreviverão

Lauf og stjörnur, 1966



ORFEU

Quando Orfeu deixou de tocar e cantar
perante os deuses do inferno
eternos e inclementes
estes enterneceram-se
aquiescendo às suas súplicas
 de devolver Eurídice à terra
e apenas lhe exigiram
que não olhasse para trás
e empreenderam a marcha
por escuras e íngremes veredas
com os seus passos ágeis
ele com a sua lira ao ombro
e a sua amada atrás
através da noite
silenciosa e gelada
em busca da felicidade e da luz

oh tu a quem arranquei do horror da morte
com o meu amor as minhas canções a minha música
Eurídice
estás aí ainda

e ao quebrar com a sua deslembrança
o difícil mandato dos deuses
esfumou-se ela instantaneamente
e olhar e palavra
fundiram-se na noite
e um eco fantasmagórico devolveu o seu chamamento

sozinho iniciou a ascensão
para a luz e o dia
com o passo carregado
de um poeta divino
e de um homem mortal.

Lauf og stjörnur, 1966



TRÉGUA INVERNAL

Calada está na gândara a fonte
oculta por folhas amarelecidas

os pássaros fugitivos sobre o mar

O vagabundo arrasta
os seus passos desalentados às portas do povoado
e pede uma trégua invernal

com o violino guardado no seu alforge


Lauf og stjörnur, 1966



VOZES

Ainda vibram suaves vozes
em árvores e arbustos
entre o fragor das máquinas
nas ruas e no ar,
vozes jovens doces,
muito dento da minha mente
um solitário pássaro
responde envolto em luz

Hauströkkrid yfir mér, 1979



VELHA HISTÓRIA

Vagueio pela cidade
ao entardecer
e chego a um beco solitário

de súbito detenho-me
a casinha
as três janelas

e a árvore baixa
cobre agora com os seus ramos o telhado

os sons da harpa
que enchiam o crepúsculo
onde estão

Serenata à luz da lua

A morte e a donzela

com passo lento
regresso a minha casa


Hauströkkrid yfir mér, 1979



A CHAMA

Cheguei até aqui
para me esconder
aqui quero esperar

cuido de uma chama vermelha
entre as minhas mãos

espero que se torne
fogueira
e me faça cinzas

Hauströkkrid yfir mér, 1979



À DERIVA

Maçã vermelha
algas negras

horto
e praia deserta

o primeiro homem
e o último


Hauströkkrid yfir mér, 1979



DITOSO AQUELE QUE ESPERA

Uma pálida lua
espera nas montanhas
que chegue a noite

Uma jovem espera
que incendeia o seu amado
o seu território branco

Um poeta que espera
o sopro que desperte
os sons da sua corda

Ditoso aquele que espera
para dar e gozar

Hauströkkrid yfir mér, 1979


Versão minha - © Amadeu Baptista


Snorri Hjartarson (1906-1986). É um dos maiores poetas modernos islandeses, publicou apenas 4 livros, o primeiro em 1944. Em 1981 foi-lhe outorgado o prémio de Literatura do Conselho Nórdico, pelo seu último poemário.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Bengt Emil Johnson



POEMAS DE BENGT EMIL JOHNSON



«BLUES AFTER HOURS»

Estar
no seu juízo perfeito.
Acorrentado.

Aqui um novo idioma
não mudaria nada
salvo o idioma.

Realidade é tudo o que eu
não conheço.
E parte do que
conheço.


                Vinterminne, 1980


«…IN A FIELD OF WHITE…»

Recordo. Estou sentado a escrever a alguém.
Há muita luz no quarto e está calor.
Nisso não há ambiguidade nenhuma.

Só alguns tons que penetram
no espaço que existe entre o sonho e eu,
e muito do que está em movimento – procedente do

que costumo chamar eu, em todo o caso
agora mesmo. Não causa dano. Não pensava
contá-lo a ninguém.

No entanto talvez eu queira deixá-lo dito.
Também as lâmpadas se reflectem. A luz
está também fora na escuridão que não é pesada.

Está lá fora e eu
estou também lá. É como se alguém
tivesse perguntado e se tivesse ido,

sem inquietação, sem nenhum motivo especial.
Estive aqui antes.
Pode ser que volte a estar aqui.

Ordens fest, 1987

CANÇÃO SOBRE UMA IRMÃS DO PASSADO

Algo delas continua a viver aqui,
algo das suas canções, canções que ciciavam

entre elas ainda que apenas cantassem embora
a canção do seu interior as não movesse

a adoptar expressões particularmente doces, excepto em
ocasiões extraordinárias, surgidas de repente.

(Conheço também obviamente outras irmãs
que consistiam quase exclusivamente de sorrisos,

mas os segredos de que estas eram portadoras
não se vão tratar aqui, não precisamente agora.)

A sua austeridade dependia seguramente da sua fé,
que não se preocupavam muito em praticar;

era o que elas eram, e não havia
muito mais o que fazer sobre essa questão.

Tinham costas muito direitas e puxos
severamente entrançados e bem cheios.

Uma vez instaladas em sofás altos e duros, ou sentadas
em tamboretes baixos, por pintar, apareciam-lhe as veias das mãos.

Nelas tantos os movimentos como as palavras eram em geral
muito enérgicos, mas silenciosos

alcançavam a mais alta tensão. Eu costumava escutar
esses silêncios por causa do seu relevo,

impunham um modo de viver
tão manifesto. Não se permitiam pressas

mas ter uma vida humana a seu cargo
submergia-as numa pressa constante, quase plácida.

Em geral, alguém morrera,
ou estava a morrer nas suas conversas,

mas não era aves de mau agouro,
já que manifestavam demasiado interesse

pelo que acontecia. Tinham os olhos
bem abertos, sempre atentas, e se descansavam

era porque se viam obrigadas, porque isso
fazia parte de uma ordem que elas nunca

poderiam questionar, com isso
nem sonhavam. Liam bastante

muito mais os jornais que
a Bíblia, com ela já tinham acabado há tempo.

(Muito ocupado a estar aqui,
quase absolutamente ocupado, não me preocupo

muito a perguntar
o quê ou quem me mandou

aqui, mas provavelmente essas irmãs
tiveram algo que ver com isso.

Na verdade eu só conhecia uma
delas, mas reconhecia  vagamente

algo que todas tinham,
apenas elas, nas suas parcas visitas,

curiosamente quotidianas
que poucas vezes eram motivadas

por alguma festa pública. Tinham
dignidade, muita mais

que os seus irmãos. Da mais nova lembro, além do mais
o baixa que era, quando me falou

da gralha. Uma gralha cinzenta.) Já
casadas, inclusivamente antes, tiveram que ter sido

eleitas para o estado de viuvez. Faziam
varas de vimes para bater forte no gado

mas às vezes também levavam folhas
para casa pelo simples motivo do verdor? Uma parte

das suas amizades próximas devem ter sido
squaws muito maiores no seu silêncio

do que os seus caciques guerreiros. Sabiam bem
que se tinham perdido muitas coisas para sempre

mas registavam-no sem aparente amargura.
Podiam dar de um discreto segundo plano.

Não se ocupavam de superstições
mas estavam atentas aos sinais

e sabiam perfeitamente bem que alguns
não era susceptíveis de interpretação.

Há testemunhos que indicam que alguma,
pelo menos uma delas, tinha visto lobos vivos.

É difícil imaginar estas
irmãs como amantes ou parturientes

mas eram mães de filhos nervosos
e de filhas de riso demasiado forte.

Naturalmente tinham herdado as consideráveis presas maternas,
sem dúvida alguma estavam grávidas de Tempestades.

Em velhos álbuns, no fundo dos caixotes, guardavam recortes
do Dr. Schweitzer acompanhado de uma outrora opulenta fêmea.

Adoravam guardar coisas simples, sobretudo
de lã, e tudo isso que se pode voltar a usar.

Creio que poderiam ter chegado muito longe, e
então poderiam ter descansado permanecendo

imóveis, tenuemente iluminadas, no alto de pedras da altura
de um homem, junto ao caminho, que pode ter sido muito simples,

talvez um modesto trilho que ninguém seguiu
durante anos, mas que se percebe com toda a claridade

tanto sobre o terreno como no mapa.
Não, eu não falo de orgulho.

Uma débil nuvem de farinha de centeio
em torno ao seu expectante desconcerto.

For resten, 1987


QUADRO

Alguém que está no restolho.
Diz algo.

Uma cerca.

Por trás dele a vala que cavou, ainda que
não se veja.

O restolho finda.
Ele diz algo.
Está a dizer algo.
Vai dizer algo,

enquanto exista a imagem,
enquanto se recorde a imagem.

O dito não importa nada.


Lika, 1991


PRELÚDIO

Morrer
deve ser necessitar-se
um pouquinho.

Lika, 1991


Versão minha - © Amadeu Baptista


Bengt Emil Johnson, nasceu em Saxdalen, na Suécia central. Estudou piano e composição. Trabalha no departamento musical da Rádio Suécia. Nos anos 60, foi um do representantes mais notáveis da poesia concreta. Mais tarde passou a produzir composições texto-som. Trabalhou na fronteira de todos os géneros literários. Nas sua poesia dos anos 80, a natureza e o idioma são as suas preocupações fundamentais. Escreve com uma linguagem quotidiana e auto-biográfica.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

O Bosque Cintilante # 76

Anton Rubinstein: Melodia em fá

No limiar do regresso há um homem abandonado,
a luz tece a melancolia, arcadas de violoncelo
fixam-se nos seus olhos, as mãos
são o silencioso rumor de uma ave que passa, a forma
volátil de uma sombra que se prende aos cabelos.

A melodia é o silêncio,
todas as coisas ardem iridescentemente
nesse lugar onde a face permanece incólume e ferida
e é quase um barco, uma nave na terra
que voa sobre a música, a infância, a longínqua
ausência que sentimos ouvindo-a.

Um aforismo resplandece no passado, brilha
entre a vegetação, inclina-se e sobe
para o rastro do tempo, o pesado infortúnio
da tristeza, a leve fragrância de uma despedida
que não pertence a ninguém
após a transparência,
a feroz solidão.


O Bosque Cintilante, Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Eeva Kilpi


POEMAS DE EEVA KILPI


Diz-me se incomodo,
disse ao entrar,
porque me vou imediatamente.

Não apenas incomodas,
respondi,
como pões de pés para o ar toda a minha existência.
Bem-vindo.

                                               Laulu rakkaudesta, 1972


Precisamente quando tinha aprendido a viver sem ele
veio-lhe à cabeça esta ideia:
eu não renuncio a este homem.

E os lençóis rebentaram em flores.
“ Isto é a realidade”, disse
e os sonhos empalideceram.

Tal era pois a força sob os olhares
que durante anos educadamente
nos tínhamos mutuamente lançado.

                                               Laulu rakkuaudesta, 1972



 Mal acabara de pronunciar: “ Agora só faltam os morangos”
já estava a correr para a desprezada horta das traseiras
    da casa
onde recolheu um punhado de pequenos morangos silvestres
antes de ter acabado de comer o yorgute:
acabavam de amadurecer.
Tem cuidado com o que dizes, disse, agora tudo se transforma em realidade.

E ele teve cuidado.

                                               Laulu rakkaudesta, 1972


Dentro de nós há agora uma poderosa carga
de alegria, amor, bondade e força
para partilhar também com outros.                                                                              

Sim, disse ele, tu és o ponto de inflexão na minha vida,
tu abriste os caminhos obstruídos dos meus sentidos.
Pela primeira vez compreendo a minha mãe,
para não falar da minha sogra,
os meus parentes quase os amo.
e o melhor de tudo, a minha mulher já não sabe a madeira:
que festa temos vivido.

Laulu rakkaudesta, 1972


Deixar-te-ias foder por duas mil coroas? perguntou-me
na paragem do autocarro às 0.42
rodeados por ruas vazias e congeladas.
Primeiro neguei com a cabeça, mas logo lhe disse:
Por dinheiro, não, mas se passas o aspirador e areias os pratos…
Então ele, por seu lado, abjurou
e deu a volta abatido por seguir o seu caminho.

Laulu rakkaudesta, 1972

O amante encontrou a origem do cancro
no peito dela:
salvou-lhe a vida.
O marido reabilitou-se,
deixou a bebida,
ficava em casa à noite.
Os filhos começaram a lavar os pratos.
Floresceu a vida familiar.

O mudo herói do leito clandestino anda triste.
Que vida tão ingrata!

Terveisin, 1976


Que alguém envelheça não importa nada
mas como suportar
ver que começa a envelhecer o teu jovem amante?
Calvície. Barriga. Tédio.
Por que não me abandonaria a tempo?
Eu já tinha rugas quando nos conhecemos,
lembrava-lhe a mãe,
proporcionava-lhe uma sensação de triunfo e de assombro
ainda aguentava com uma desgastada assim.
Mas agora estão fundas as rugas
e para isso sim não estou preparada.
Quando penso que poderia ter tido a lembrança
de um homem jovem sem estragar…
E não é só isso.
Todas as noites me tortura a ideia de que ele,
ainda mais deteriorado,
provoque assombro junto à minha tumba
algo distante, abatido,
dissociado, e que ninguém compreenda o que eu
vi uma vez nele.
E talvez eu tão pouco poderia entendê-lo,
ao fim e ao cabo sou um ser humano.
Quando a terra tocar o meu ataúde uma manhã fresca de orvalho,
quando as pás soarem,
quando os jovens estudantes da calça curta
me forem atirando terra…

Tu ris, morte,
mas eu obviamente devolvo-te o sorriso.

Ennen kuolemaa, 1982



Quando alguém já não tem forças para escrever, tem que recordar.
Quando alguém já não tem forças para fotografar,
tem que ver com os olhos da alma.
Quando alguém já não tem forças para ler,
tem que estar cheio de histórias.
Quando alguém já não tem forças para falar,
tem que ecoar.

Quando alguém já não tem força para andar, tem que voar.

E quando chega a hora,
tem que desprender-se das recordações,
dos olhos da alma, deixar de sussurrar,
calar-se e fechar as asas.

Mas aconteça o que acontecer, a história segue, segue
Ennen kuolemaa, 1982



UMA LENDA

Ao entardecer
o Redentor dá uma volta pelos currais,
pelos estábulos, pocilgas, aidos e galinheiros,
quer dar uma vista de olhos ao lugar onde nasceu,
saudar os animais
entre os quais certa vez adormeceu
e teve em cueiros o seu primeiro sonho.
Mas tudo mudou.
Os animais contemplam-no através de grades,
humilhados no seu cativeiro,
com angústia e desespero nos olhos.
Reconhecem-no, gritam-lhe:
Volta a nascer, Redentor,
nasce para nós.
Os homens levaram-te.
Cuidaram-te bem?

Animalia, 1987


As experiências com animais são necessárias, dizeis,
mas eu digo:
Os resultados só demonstram como reagem os animais
à sobredose
de insecticidas, de cosméticos, de medicamentos,
encerrados em jaulas
sem exercício, sem liberdade
e em espantosas condições de vida.
Que demonstra isso?
Que utilidade reporta?
Respondo: só podereis dizer «investigação».
Que não tireis a palavra investigação da boca.
A investigação demonstrou.
E «nós, os investigadores».

Antigamente dizia-se que os animais não sofriam,
agora diz-se que os animais padecem de stress.
Não se pode usar assim o idioma,
para negar os factos.
Os animais sentem medo e desprazer,
pânico,
os animais sentem angústia.
Sentem dor. Sentem-se mal.
Esperam todo o tempo que deixe de doer-lhes,
que alguém chegue e os liberte,
os solte,
os deixe sair para o ar livre,
para a sua toca, o campo, o prado, o bosque.
Mas não aparece nenhum libertador. Chegam outros.
Os animais utilizam todo o seu tempo e toda a sua energia
à procura de uma saída.
Fugir, fugir, fugir, diz o rato em cada movimento.
Os cães caem na depressão.
                    Envergonham-se da conduta do homem.
Ou enfurecem-se, enraivecem-se,
e deita-se a culpa à sua natureza.
Os gatos. Cheios de desespero.
Os coelhos,
cujos olhos se oferecem no altar da beleza feminina.
Mulher, pensas nisso?

Humanidade, desperta!
Torturados, declarai-vos insubmissos!
É a hora!

Animalia, 1987


Bem, se na verdade
queres um confissão,
aqui vai:
tive trinta e seis amantes.
Bem, sim. Tens razão,
são demasiados.
Tivessem-me bastado trinta e cinco.
Mas, querido, o trinta e seis
eras tu.

Animalia, 1987


Versão minha - © Amadeu Baptista



Eeva Kilpi (1928). Nasceu em Hiitola (na Carélia, hoje território russo). Licenciou-se em Letras e trabalhou como professora de inglês. Foi presidente do PEN finlandês. Além de poesia, escreveu numerosos contos e romances.