quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Peter Laugesen



Que vão fazer
quando crescer a pressão
a fábrica está fechada
O enorme enxame que zumbe
através da mesma frase até ao interior da mesma frase
cada frase de outro idioma
Introdução à angústia metafísica
colocada lá onde deve estar a metafísica
no processo industrial como legível cadeia de frases
Angústia colectiva por coisas colectivas sempre as mesmas coisas
o motor cerebral que gira selvaticamente e sobreaquece
A morte que sempre é o que eles levam pela mão
aqui neste lugar
As coisas que esperam sempre e que são
o princípio de uma frase que eles nesse mesmo instante terminam
do outro lado no outro lado
Quando passeavam derretiam-se os grandes declives
de vez em quando e a lama escorria por entre os dedos dos pés
quando passeavam
na paisagem que ia ficando mais rígida e mais solta
porque sempre acontecia daquela maneira em duas frases
cujo conteúdo material fosse o mesmo se se tivesse por
material aquela classe de palavras que se tinham por sê-lo
naquele tipo de frases
Doce e silenciosamente brotava a acinzentada ternura
deles até entrar neles
As rugas brilhavam encobriam
desapareciam se abriam passagem como rios
estavam ali todo o tempo ou não estavam
A casa nunca estava completamente silenciosa
eles não sabiam nada
De qualquer dos modos ele não estava
lá apenas estavam todas aquelas coisas deliciosas
cada vez mais numerosas
Daquelas que eles podiam encarregar-se
se não houvesse outra coisa que pudessem fazer
Será muito belo
em todo o caso
Há chamas nas árvores
mais tarde caem ao chão
Outras crescem
onde foram enterradas
Tudo é pois de todos
O ponto de vista dele não tinha importância
ela tão-pouco sabia fazê-lo melhor
Eles não chegariam a saber nunca
todas as disposições de tomavam
por cima das suas cabeças
Pela manhã montavam nas bicicletas cinzentas
na luz jamais desvanecida
Chegou o momento de actuar
no material mais concreto
de todos.

            Katanonien, 1970



Tarde da tarde, dezembro

a vertiginosa e surda pena
que o mudo velo das minhas palavras
suspende ante os teus olhos
vem de uma imagem de mim
que levas no teu corpo
quando de súbito o amor se torna pérfido
e cego como um prego partido
numa parede imunda de uma casa abandonada?
casas com pessoas zangadas
em quartos intrusivos e contraditórios
cheios de móveis nodosos
como golpes platónicos
em aborrecidas mesas acastanhadas
onde quatro pratos quatro garfos
quatro facas quatro copos com vinho moderado
falam um idioma eminente
sobre uma indiferença ilimitada
de lá chegam amiúde as minhas palavras fracturadas
que por trás dominam o meu amor

o idioma fala
eu posso testemunhar a sua muda brutalidade

            Anarkotika, 1970


Chega a chuva
em formosas nuvens negras
que podemos ver nas alturas
e capturá-las nos nossos cabelos e mãos
chove no grande buraco
no cemitério
chove nas campânulas adormecidas
chove nos sonhos e nos sapatos
chove e chove
através das trevas
sobre a terra

            Å ens skrift, 1979


Há algo no ar,
é transparente,
inodoro e insonoro.
Noto-o
quando choco com ele,
como se precipita um pássaro voando
contra um vidro.
A minha imagem especular está
na janela –
vejo-me
com um aspecto que não tenho,
e atrás de mim na cozinha
ficam os rolos de papel
como peles caídas de serpente
e o casulo da borboleta
em tapetes voadores
de amor e solidão.
O lago é um olho azul
no rosto verde da terra
e os terraços suspendem-se
como barcos salva-vidas
na medida das casas grandes
O tempo plana
à sombra de comboios de mercadorias e de gatos,
correm-se as cortinas
a luz apaga-se atrás delas.

Tudo flutua em calma pelo espaço
ao longe brilham cinco estrelas
e o céu para o sul está turquesa.

Himmel Kœrlighet Frhed, 1982


O telefone em que ninguém fala
e a cama em que ninguém dorme
As notícias e nem a menor oportunidade
de fazer algo com elas
enquanto a chuva morre na erva
e o vento silva pelos
quartos do andar
Os dedos que alguma coisa abandonou
enquanto as crianças conhecem a solidão
e a ausência pela primeira vez
A Angústia como uma maçã
uma desesperada lotaria de cartões
um fragor de castanhas
desencadeado por árvores
que como chicotes na obscuridade
lembram o que nunca
mais voltará a ser o mesmo

Blœkpatroner, 1983


Pelo menos metade foi sonhado
e esquecido nos escaparate
sob camadas de sobrescritos.
A escrita serpenteia em desenhos
como linhas numa mão desaparecida.
As palavras estão como vacas
no campo.
A chuva cai em ninhos vazios
sobre ramos de árvores nus.
Os pássaros não cantam nunca
                            sem motivo.

Nattur, 1989


Versão minha - © Amadeu Baptista



Peter Laugesen, nasceu em 1942. Estreou-se em 1967 com o livro ‘Landskap’. É poeta e dramaturgo. A sua poesia tem raízes na geração beat, com influências de Allen Ginsberg, Jack Kerouac e William Burroughs –  é considerada algo anarquizante, quer em termos formais como em termos de conteúdo, onde o belo e o feio são interdependentes.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Camões



CANÇÃO X

Vinde cá, meu tão certo secretário
dos queixumes que sempre ando fazendo,
papel, com que a pena desafogo!
As sem-razões digamos que, vivendo,
me faz o inexorável e contrário
Destino, surdo a lágrimas e a rogo.
Deitemos água pouca em muito fogo;
acenda-se com gritos um tormento
que a todas as memórias seja estranho.
Digamos mal tamanho
a Deus, ao mundo, à gente e, enfim, ao vento,
a quem já muitas vezes o contei,
tanto debalde como o conto agora;
mas, já que para errores fui nascido,
vir este a ser um deles não duvido.
Que, pois já de acertar estou tão fora,
não me culpem também, se nisto errei.
Sequer este refúgio só terei:
falar e errar sem culpa, livremente.
Triste quem de tão pouco está contente!

Já me desenganei que de queixar-me
não se alcança remédio; mas quem pena,
forçado lhe é gritar se a dor é grande.
Gritarei; mas é débil e pequena
a voz para poder desabafar-me,
porque nem com gritar a dor se abrande.
Quem me dará sequer que fora mande
lágrimas e suspiros infinitos
iguais ao mal que dentro n'alma mora?
Mas quem pode algü'hora
medir o mal com lágrimas ou gritos?
Enfim, direi aquilo que me ensinam
a ira, a mágoa, e delas a lembrança,
que é outra dor por si, mais dura e firme.
Chegai, desesperados, para ouvir-me,
e fujam os que vivem de esperança
ou aqueles que nela se imaginam,
porque Amor e Fortuna determinam
de lhe darem poder para entenderem,
à medida dos males que tiverem.

Quando vim da materna sepultura
de novo ao mundo, logo me fizeram
Estrelas infelices obrigado;
com ter livre alvedrio, mo não deram,
que eu conheci mil vezes na ventura
o milhor, e pior segui, forçado.
E, para que o tormento conformado
me dessem com a idade, quando abrisse
inda minino, os olhos, brandamente,
manda que, diligente,
um Minino sem olhos me ferisse.
As lágrimas da infância já manavam
com üa saudade namorada:
o som dos gritos, que no berço dava.
já como de suspiros me soava.
Co a idade e Fado estava concertado;
porque quando, por caso, me embalavam,
se versos de Amor tristes me cantavam,
logo m adormecia a natureza,
que tão conforme estava co a tristeza.

Foi minha ama üa fera, que o destino
não quis que mulher fosse a que tivesse
tal nome para mim; nem a haveria.
Assi criado fui, porque bebesse
o veneno amoroso, de minino,
que na maior idade beberia,
e. por costume, não me mataria.
Logo então vi a imagem e semelhança
daquela humana fera tão fermosa,
suave e venenosa,
que me criou aos peitos da esperança;
de quem eu vi despois o original,
que de todos os grandes desatinos
faz a culpa soberba e soberana.
Parece-me que tinha forma humana,
mas cintilava espíritos divinos.
Um meneio e presença tinha tal
na vista dela; a sombra, co a viveza,
excedia o poder da Natureza.

Não sei como sabia estar roubando
cos raios das entranhas, que fugiam
por ela, pelos olhos sutilmente!
Pouco a pouco invencíveis me saíam,
bem como do véu húmido exalando
está o sutil humor o Sol ardente.
Enfim, o gesto puro e transparente,
para quem fica baixo e sem valia
deste nome de belo e de fermoso;
o doce e piadoso
mover d'olhos, que as almas suspendia
foram as ervas mágicas, que o Céu
me fez beber; as quais, por longos anos,
noutro ser me tiveram transformado,
e tão contente de me ver trocado
que as mágoas enganava cos enganos;
e diante dos olhos punha o véu
que me encobrisse o mal, que assi creceu,
como quem com afagos se criava
daquele para quem crecido estava.

Que género tão novo de tormento
teve Amor, que não fosse, não somente
provado em mim, mas todo executado?
Implacáveis durezas, que o fervente
desejo, que dá força ao pensamento,
tinham de seu propósito abalado,
e de se ver, corrido e injuriado;
aqui, sombras fantásticas, trazidas
de algüas temerárias esperanças;
as bem-aventuranças
nelas também pintadas e fingidas;
mas a dor do desprezo recebido,
que a fantasia me desatinava,
estes enganos punha em desconcerto;
aqui, o adevinhar e o ter por certo
que era verdade quanto adevinhava,
e logo o desdizer-se, de corrido;
dar às cousas que via outro sentido,
e para tudo, enfim, buscar razões;
mas eram muitas mais as sem-razões.

Pois quem pode pintar a vida ausente,
com um descontentar-me quanto via,
e aquele estar tão longe donde estava;
o falar, sem saber o que dezia;
andar, sem ver por onde, e juntamente
suspirar sem saber que suspirava?
Pois quando aquele mal m'atormentava
e aquela dor que das Tartáreas águas
saiu ao mundo, e mais que todas doe,
que tantas vezes soe
duras iras tornar em brandas mágoas;
agora, co furor da mágoa irado,
querer e não querer deixar d'amar,
e mudar noutra parte por vingança
o desejo privado de esperança,
que tão mal se podia já mudar;
agora, a saudade do passado
tormento. puro, doce e magoado,
fazia converter estes furores
em magoadas lágrimas de amores.

Que desculpas comigo que buscava
quando o suave Amor me não sofria
culpa na cousa amada, e tão amada!
Enfim, eram remédios que fingia
o medo do tormento que ensinava
a vida a sustentar-se, de enganada.
Nisto üa parte dela foi passada,
na qual se tive algum contentamento
breve, imperfeito, tímido, indecente,
não foi senão semente
de longo e amaríssimo tormento.
Este curso contino de tristeza,
estes passos tão vamente espalhados,
me foram apagando o ardente gosto
que tão de siso n'alma tinha posto,
daqueles pensamentos namorados
em que eu criei a tenra natureza,
que do longo costume da aspereza,
contra quem força humana não resiste,
se converteu no gosto de ser triste.

Destarte a vida noutra fui trocando;
eu não, mas o destino fero, irado,
que eu ainda assi por outra não trocara.
Fez-me deixar o pátrio ninho amado,
passando o longo mar, que ameaçando
tantas vezes me esteve a vida cara.
Agora, exprimentando a fúria rara
de Marte, que cos olhos quis que logo
visse e tocasse o acerbo fruto seu
(e neste escudo meu
a pintura verão do infesto fogo);
agora, peregrino vago e errante,
vendo nações, linguages e costumes,
Céus vários, qualidades diferentes,
só por seguir com passos diligentes
a ti, Fortuna injusta, que consumes
as idades, levando-lhe diante
üa esperança em vista de diamante,
mas quando das mãos cai se conhece
que é frágil vidro aquilo que aparece.

A piadade humana me faltava,
a gente amiga já contrária via,
no primeiro perigo; e, no segundo,
terra em que pôr os pés me falecia,
ar para respirar se me negava,
e faltavam-me, enfim. o tempo e o mundo.
Que segredo tão árduo e tão profundo:
nascer para viver, e para a vida
faltar-me quanto o mundo tem para ela!
E não poder perdê-la,
estando tantas vezes já perdida!
Enfim, não houve transe de fortuna,
nem perigos, nem casos duvidosos,
injustiças daqueles, que o confuso
regimento do mundo, antigo abuso,
faz sobre os outros homens poderosos,
que eu não passasse, atado à grã coluna
do sofrimento meu, que a importuna
perseguição de males em pedaços
mil vezes fez, à força de seus braços.

Não conto tanto males como aquele
que, despois da tormenta procelosa,
os casos dela conta em porto ledo;
que inda agora a Fortuna flutuosa
a tamanhas misérias me compele,
que de dar um só passo tenho medo.
Já de mal que me venha não me arredo,
nem bem que me faleça já pretendo,
que para mim não val astúcia humana;
de força soberana,
da Providência, enfim, divina, pendo.
Isto que cuido e vejo, às vezes tomo
para consolação de tantos danos.
Mas a fraqueza humana, quando lança
os olhos no que corre, e não alcança
senão memória dos passados anos,
as águas que então bebo, e o pão que como,
lágrimas tristes são, que eu nunca domo
senão com fabricar na fantasia
fantásticas pinturas de alegria.

Que se possível fosse, que tornasse
o tempo para trás, como a memória,
pelos vestígios da primeira idade,
e de novo tecendo a antiga história
de meus doces errores, me levasse
pelas flores que vi da mocidade;
e a lembrança da longa saudade
então fosse maior contentamento,
vendo a conversação leda e suave,
onde üa e outra chave
esteve de meu novo pensamento,
os campos, as passadas, os sinais,
a fermosura, os olhos, a brandura,
a graça, a mansidão, a cortesia,
a sincera amizade, que desvia
toda a baixa tenção, terrena, impura,
como a qual outra algüa não vi mais...
Ah! vãs memórias, onde me levais
o fraco coração, que ainda não posso
domar este tão vão desejo vosso?

Nô mais, Canção, nô mais; qu'irei falando
sem o sentir, mil anos. E se acaso
te culparem de larga e de pesada,
não pode ser (lhe dize) limitada
a água do mar em tão pequeno vaso.
Nem eu delicadezas vou cantando
co gosto do louvor, mas explicando
puras verdades já por mim passadas.
Oxalá foram fábulas sonhadas!






O retrato de Camões por Fernão Gomes, em cópia de Luís de Resende.
Este é considerado o mais autêntico retrato do poeta, cujo original, que se perdeu, foi pintado ainda em sua vida.


Luís Vaz de Camões (Lisboa[?], ca. 1524 — Lisboa, 10 de Junho de 1580)



Canção X, de Luís Vaz de Camões. Arte de Luís Miguel Cintra:


terça-feira, 20 de novembro de 2012

Poesia Incompleta

Lê-se o que se transcreve mais abaixo e o coração dá um salto de contentamento:


«Longe de estarem resolvidas as macacadas burocráticas, e, por isso mesmo, ainda coxa, a Poesia Incompleta reabre, agora na mui nobre e sempre leal cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, povoação assaz simpática e recheada de índios amantes de poesia.
O correio electrónico está aberto para qualquer pergunta e os envios por correio disponíveis.  

Para os habitantes do Rio, e turistada em busca de cachaça e Castro Alves, a realidade é um nadinha diferente: obedecendo a uma secretíssima combinação, as visitas serão possíveis.

A coisa começa segunda-feira.
Terça, aproveita-se já o feriado para uma pausa metafísica, mas cheia de boas intenções.»

Esteja lá onde estiver a Poesia Incompleta e/ou o Changuito, fica aqui a lembrança de um abraço grato. O endereço do blogue 'Poesia Incompleta', onde poderão encontrar o respectivo contacto, encontra-se na listagem da direita, entre os mais blogues que aqui se frequentam.



segunda-feira, 19 de novembro de 2012

António José Queiroz


António José Queiroz, poeta convidado


Três poemas

Praia da Boa Nova

Mar. Chuva. Ventania.
No denso canavial
(em ligeiro sobressalto)
o doce golpe das palavras,
a desordem dos corpos,
o caos das línguas
na preia-mar das bocas.
Labaredas de fogo
entre enganos e afectos.
No horizonte de neblina,
o voo insondável e branco
de uma gaivota.







Adeus

Penso em ti.
Há uma voz que se repercute
no coração do poema
com a cadência de um látego incansável.
Oiço os acordes obscuros
de uma música descompassada,
o rumor de um mar intranquilo.
Regressa à memória
o desastre de um desejo envelhecido.
Está frio.
Um tímido sol anuncia
o lento suicídio do Inverno.
Penso em ti,
na vertigem súbita das falésias,
no verde e húmido
olhar da despedida.







A divina imperfeição

Caminho sem pressa pelas veredas
de um labirinto que parece não ter fim.
Oiço o som dos meus passos solitários
e sinto as fragrâncias de um jardim que se perdeu.
Entre ser livre ou ser feliz, escolhi
a liberdade de construir outro destino.
Sei agora que a minha vocação 
é o silêncio íntegro das sementes
nos campos tranquilos e lavrados.
É tarde. Do pó vim, ao pó quero regressar,
liberto, enfim, da geometria cruel do labirinto.
Dia após dia, procuro a secreta passagem
para a morada longínqua do mundo inicial.
Se Deus projectou em mim a sua imagem
em mim negou a sua divina perfeição.





Fotos (ilustração dos poemas) Sintra: © de Amadeu Baptista

Poemas: © António José Queiroz


António José Queiroz nasceu em Vila Meã (Amarante), a 4 de Maio de 1954. É doutor em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Fundador e director das revistas literárias Cadernos do Tâmega (1989-1995), Anto (1997-2000) e Saudade (2001-2010), é um dos editores dos cadernos de poesia Pena Ventosa. Publicou dois livros de poesia – Memória do Silêncio (1989) e Os Meninos Outros Poemas (1993) – e colaborou em revistas literárias de Portugal, Espanha, França, Itália e Brasil. Alguns dos seus poemas estão traduzidos em castelhano, francês e italiano. É membro da Associação Portuguesa de Escritores e da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Negrume

Nunca é tarde para receber o que não se espera: razões várias fizeram com que os exemplares que me eram devidos da edição de 'Negrume' no Brasil, que data de 2007  (Lumme Editor, São Paulo, 2007), só esta semana me tivessem chegado à mão. Nem interessa referir a responsabilidade de tal coisa ter acontecido, mas assinalar e celebrar esta publicação aqui no blogue. Assim sendo, deixo aqui a reprodução da capa, o prefácio de autoria de Pedro Sena-Lino, a capa da edição portuguesa (&Etc, 2006) 
e um poema do livro:




DE UMA DUPLA VIOLÊNCIA
Prefácio a Negrume

                i.
                O poema não é da alma, mas da sua geografia.
Se o modernismo algo de território novo trouxe à humanidade foi a consolidação de que o poema é um mapa – do invisível, mas do abraço constituinte entre o desconhecido e o corpo que estruturam (um vário, e não já alma vs. corpo) o homem. Mais: a poesia ainda hoje enfrenta essa luta epistemológica consigo mesma, consequência do modernismo, como geografia do não-visto, pré-ciência, astronomia do corpo. Ninguém duvida hoje, passado o pórtico do século XXI, que o romance psicológico de Dostoievsky e Proust resgatou a psicologia como um dos eixos fundamentais da civilização; mas ainda não é possível nem muito menos claro que a poesia salve o invisível de dentro do homem e do universo como constituinte do que chamamos mundo. Essa luta, imemorial e agora renovada, ainda não terminou.

ii.
Donde o título desta colectânea de Amadeu Baptista (n. Porto, 1953): Negrume – essa é a aparência e mesmo a forma do invisível quando se lhe toca pela primeira vez.
Uma viagem breve pelos títulos dos seus dezasseis livros de poesia publicados até 2005 o demonstram: As Passagens Secretas, O Sossego da Luz, A Sombra Iluminada, Desenho de Luzes, Arte do Regresso, Sal Negro; uma permanência da sombra à volta da fala, e esta princípio genesíaco, dizendo para criar. Outro nome para criar: revelar, fazer a luz sobre o informe:

«Perscruta-o a incendiar o chão em volta
Com intensa brancura e um halo de frescura
exerce pelo fascínio um poder obscuro
para exemplo dos secretos animais
que, tal como tu, crescem sobre o dia
aos gritos para encontrar tudo o que há
na claridade omnipresente. Em chamas (...)».

Um poema defronta o silêncio na fala; bate com as suas sílabas de sombra no universo inteiro, convoca a memória ainda antes de ser corpo, e liga sentidos que qualquer coisa de anterior traz guardado no eixo da sintaxe e da semântica:

«Estou entregue a esta doença incurável, ignoro
o que adio por este estupefaciente, a vida,
a morte, por esta máscara sou talvez
definitivamente alheio à obediência das coisas,
o pássaro efémero. Desconheço
que reciprocidade aqui me recrimina, sombras,
papéis, o exercício de uma pulsão secreta
no perímetro ameaçador do coração e do medo.
A paixão perscruto pela sinuosidade do mundo,
o êxtase, a febre, este inefável despojo
sob a proximidade do perigo, a precaridade
uníssona, a comunicação com os anjos.»

Não é alheia à marca geracional em que Amadeu Baptista se funda o equilíbrio entre um modernismo já vazio de experiências e novidades, e a tentação do real quotidiano e urbano. A geração poética de oitenta (revelados nesses anos, e nascidos entre 1950 e 1960), em Portugal, viu explodir na poesia o estertor da última vanguarda, o experimentalismo, esvaziando à sua volta o modernismo construtor do século. Geração também reflectida pela assunção do romance como linguagem que melhor reflecte o Portugal pós-25 de Abril; que vê a poesia perder o carácter denunciador da situação sócio-política, e que apenas pode voltar a sátira sobre o quotidiano ou sobre o sujeito, num lirismo de destruição cujo exemplo mais marcante é precisamente a poesia de Amadeu Baptista. Outros nomes o acompanham geracionalmente, estes religando auto e hetero-ironia, como José Emílio Nelson, ou sobretudo Jorge de Sousa Braga ou Adília Lopes.

iii.
Este livro inédito age como síntese, mas muito mais como cume de uma obra. Amadeu Baptista não deixa senão que uma dupla violência percorra a estrada dos seus versos, entre a presença ausente de uma luz que entrevê na fala, no falo e no dia como contrário do visível; e uma doença do valor das palavras, do poema e dos símbolos que estruturam o ocidente:

«uma doença intrusa. preterido,
procuras perdurar no papel
ou no mármore. afogas-te
num tumulto e vais de escadaria

em escadaria buscar o teu lugar
no paraíso. a araucária serve
ao teu cansaço como um lugar de repouso
e de passagem, e hesitas,

entre tomar a poção sépia
que te estendem na colher
ou o caminho do abismo,

ali tão perto. uma doença irradiante
inscreve-se na pele como um aviso
que ninguém, nem tu, poderá ler.»

Presenças obsidiantes na sua obra são os caracteres dessa primeira violência, uma espécie de revelação falha(da): os corpos partidos, a gruta sensual, impermanente e assassina do ventre, o sentido para uma memória omnipresentemente destruidora, o caminho fragmentado e sempre verdadeiro ou falso das imagens e sombras que cruzam o quotidiano. Mas também a segunda violência do valor do passado (herança literária, biografia, do poema como lugar da memória), esse chão instável de passar um século, de combater o sem-sentido no sentido: poesia finissecular, que o negrume apenas vigia e prenuncia.

Pedro Sena-Lino








Do capítulo 'As Danações':


uma doença infecta, provocada
por balas tracejantes e episódios
retirados do acaso, ora domésticos,
sublinhados por discussões violentas,

ora fortuitos como um acidente
em que uma parte da nuca bate contra o chão
e o sangue corre, fervente, pelo passeio
em que um menino de bibe e sapatilhas pretas

leva as mãos aos ouvidos para não ter que ver
mais do que vê, insustentadamente.
um pavor de doença, que amplia

a legião de fantasmas que nos segue
e nos piores pesadelos admoesta
o sono leve com que a noite passa.

(in Negrume, Lisboa, & Etc, 2006)




 © Amadeu Baptista (poema e foto)

José Saramago

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Lassi Nummi



O VENTO DOS MONTES FAZ-ME PENSAR EM COISAS ESTRANHAS


Se o meu coração fosse tão velho como o jardim do imperador!

Se o meu coração fosse tão grande como a capital do governo do mandarim!

Então estaríamos sentados todos os dias, ela e eu,
                                   no jardim do meu coração
e cantaríamos loucas canções sobre um amor,
                                   jovem como um rebento de bambu
que a cada despedida do sol volta a nascer,
puro como bambu jovem, flexível como cana de bambu
e velho como o bosque de bambus
ou como o ancião solitário
                                    (ele sim é que é velho!)
que vive com os seus livros num templo em ruínas por detrás de Jiennah Tai,
que chamava velho a um bosque de bambu de dois anos
porque crescia numa terra muito antiga.

Sempre estenderia eu as mãos, de vez em quando assinalava
                                   como é grande o país do meu coração
e gritaria: “ Contempla esta província! Tudo, tudo isto é teu!”.

                                   Vuoripaimen, 1949



HOJE

A árvore tornou-se tão parecida com uma flor
que esquece a sua copa,
que esquece as suas raízes
quando sussurra:
“ Colhe-me, leva-me.
Quero falar
aos teus olhos. Quero encontrar alguém
ou morrer”.

A flor tornou-se igual a uma árvore.
Hoje - o dia como um milénio -
a flor enfloresceu, eleva para a luz
o seu intemporal
olhar:
“ Vem, ampara-te
a mim sussurrante formosura.”

                                   Taivaan ja maan merkit, 1956



COMO UM HOMEM QUE VOLTOU DE UMA GRANDE VIAGEM

Como um homem que voltou de uma grande viagem
que se deitou a dormir vencido pela noite e ao despertar de
    manhã
não reconhece imediatamente o lugar onde foi parar
e meio a dormir, desconcentrado, contempla objectos e cortinas,
    o contorno das portas
a luz mortiça do rectângulo das janelas
e sem contacto com o presente trata de procurar, recordar, e
trata de recordar onde deveria estar, aonde ir, a quem falar
e não ouve as vozes das crianças, partiram,
e procurando às cegas o lugar ao lado onde alguém respira pela
    noite
nota que está vazio
e enquanto rostos, lugares, quartos dão voltas na memória
procura entre eles este lugar, e intuindo apenas
o que procura, a imagem da sua mulher, a dos filhos
– e finalmente, atenazado por uma angústia mais profunda do que nuca
    entre estranhos
levanta a cabeça e contempla de perto este estranho lugar no mundo

assim levantei os olhos e procurei nos teus a nossa juventude comum
e vi a câmara deserta da velhice
cheia da luz severa dos invernos vindouros
que se demorou um instante e depois derreteu
no outono e na primavera,
no tremor da folhagem das primeiras bétulas
o alto silêncio do dia de verão, onde grita o mocho.

                                   Heti, melkein heti, 1980



ESTA COISA INSIGNIFICANTE

Na claridade do meio-dia
volto o meu olhar.
Na obscuridade da meia-noite
alongo a mão,
toco.
Pele contra pele:
aqui começa o homem.

                                   Kaksoiskuva, 1982




Na pele começa:
já não somos jovens.
A luz da cor da esperança, carnaval de desejos
desliza para longe.
O som do coração, forte, arrítmico
sente-se mais intenso do que antes.
Procura alguém que acredite já ter encontrado.
Procura o encontrado que crê já ter perdido.
Os áceres suspiram. Então,
                        como bem te lembras,
é a hora do amanhecer.
No horizonte adensa-se a luz
torna-se por momentos mais intensa.
Agora é a manhã do mundo.

                                   Kaksoiskuva, 1982



VISÃO DA NEVE PURA

Tinha adormecido um instante sem dúvida
à minha mesa: estavas ali
com o teu casaco de inverno, sob o nevão, luminosa, sorridente
como há duas décadas, como
há pouco esta manhã, quando te foste,
ou agora dentro de pouco à tarde quando regressares
não estavas cansada
sorrias-te luminosa
mais jovem? ou como agora, mas
dentro de nós voltava a existir a mesma leveza
que lá, naquele lugar a que quase
chegamos em direcção ao que durante todo o tempo
estivemos a caminho

e no arrojado mar do instante
desejava-te sentia a tua falta
a ti e à tua imagem, esta
familiaridade, eu futuro eu passado, esta
leveza:
imagem após imagem, a realidade com a dupla imagem
da realidade através da que
alguém sorri, és bela, alguém
és tu

                                   Kaksoiskuva, 1982



Durante muito tempo foste para mim
                        céu e terra e mar
Procuram-te todavia as minhas cegas ardentes amargas raízes
                        a ti
apesar de lhes negares
a água.

                                   Kaksoiskuva, 1982



Antes que o grande mar nos leve no seu abraço
quero-te uma vez mais.
Se nos obriga a separarmo-nos, se nos dilacera as células
da alma e do corpo,
quero que cada uma delas
cada cega partícula do corpo, cada
agitado movimento da alma
leve dentro de si este instante, te leve a ti,
imagem, recordação,
o mais belo,
o mais amargo.

                                   Kaksoikuva, 1982



DEPOIS, NAQUELA NOITE

Depois, naquela noite, quando quiseres amar-me à meia-noite,
acorda-me.
Os nossos lençóis estão frescos, brancos
como a neve no crepúsculo da paisagem.
Talvez u tenha esperado, talvez me tenha cansado de esperar, vem.
Não fiques paralisada por teres carregado o mundo como uma árvore negra, mas
vem. Acorda-me. Deixa-me despertar
através da velhice e da morte, e desperta-me tu,
vem como um nevão, funde-nos

com a unidade do mundo.
Que o nosso amor seja dubitativo e tagarela.
Através do mundo existe esse
amor, quando quiseres, desperta,
à meia-noite, quando
o mundo se entrega. Vem.

                                   Kaksoiskuva, 1982

Versão minha - © Amadeu Baptista



Lassi Nummi nasceu em Helsínquia, em 1928. Publicou o seu primeiro livro de poesia em 1949. Foi jornalista e crítico literário. Foi presidente da Associação Finlandesa de Escritores e do Pen Clube. Foi membro da comissão de tradução da Bíblia. Faleceu a 13 de Março deste ano.