sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Negrume

Nunca é tarde para receber o que não se espera: razões várias fizeram com que os exemplares que me eram devidos da edição de 'Negrume' no Brasil, que data de 2007  (Lumme Editor, São Paulo, 2007), só esta semana me tivessem chegado à mão. Nem interessa referir a responsabilidade de tal coisa ter acontecido, mas assinalar e celebrar esta publicação aqui no blogue. Assim sendo, deixo aqui a reprodução da capa, o prefácio de autoria de Pedro Sena-Lino, a capa da edição portuguesa (&Etc, 2006) 
e um poema do livro:




DE UMA DUPLA VIOLÊNCIA
Prefácio a Negrume

                i.
                O poema não é da alma, mas da sua geografia.
Se o modernismo algo de território novo trouxe à humanidade foi a consolidação de que o poema é um mapa – do invisível, mas do abraço constituinte entre o desconhecido e o corpo que estruturam (um vário, e não já alma vs. corpo) o homem. Mais: a poesia ainda hoje enfrenta essa luta epistemológica consigo mesma, consequência do modernismo, como geografia do não-visto, pré-ciência, astronomia do corpo. Ninguém duvida hoje, passado o pórtico do século XXI, que o romance psicológico de Dostoievsky e Proust resgatou a psicologia como um dos eixos fundamentais da civilização; mas ainda não é possível nem muito menos claro que a poesia salve o invisível de dentro do homem e do universo como constituinte do que chamamos mundo. Essa luta, imemorial e agora renovada, ainda não terminou.

ii.
Donde o título desta colectânea de Amadeu Baptista (n. Porto, 1953): Negrume – essa é a aparência e mesmo a forma do invisível quando se lhe toca pela primeira vez.
Uma viagem breve pelos títulos dos seus dezasseis livros de poesia publicados até 2005 o demonstram: As Passagens Secretas, O Sossego da Luz, A Sombra Iluminada, Desenho de Luzes, Arte do Regresso, Sal Negro; uma permanência da sombra à volta da fala, e esta princípio genesíaco, dizendo para criar. Outro nome para criar: revelar, fazer a luz sobre o informe:

«Perscruta-o a incendiar o chão em volta
Com intensa brancura e um halo de frescura
exerce pelo fascínio um poder obscuro
para exemplo dos secretos animais
que, tal como tu, crescem sobre o dia
aos gritos para encontrar tudo o que há
na claridade omnipresente. Em chamas (...)».

Um poema defronta o silêncio na fala; bate com as suas sílabas de sombra no universo inteiro, convoca a memória ainda antes de ser corpo, e liga sentidos que qualquer coisa de anterior traz guardado no eixo da sintaxe e da semântica:

«Estou entregue a esta doença incurável, ignoro
o que adio por este estupefaciente, a vida,
a morte, por esta máscara sou talvez
definitivamente alheio à obediência das coisas,
o pássaro efémero. Desconheço
que reciprocidade aqui me recrimina, sombras,
papéis, o exercício de uma pulsão secreta
no perímetro ameaçador do coração e do medo.
A paixão perscruto pela sinuosidade do mundo,
o êxtase, a febre, este inefável despojo
sob a proximidade do perigo, a precaridade
uníssona, a comunicação com os anjos.»

Não é alheia à marca geracional em que Amadeu Baptista se funda o equilíbrio entre um modernismo já vazio de experiências e novidades, e a tentação do real quotidiano e urbano. A geração poética de oitenta (revelados nesses anos, e nascidos entre 1950 e 1960), em Portugal, viu explodir na poesia o estertor da última vanguarda, o experimentalismo, esvaziando à sua volta o modernismo construtor do século. Geração também reflectida pela assunção do romance como linguagem que melhor reflecte o Portugal pós-25 de Abril; que vê a poesia perder o carácter denunciador da situação sócio-política, e que apenas pode voltar a sátira sobre o quotidiano ou sobre o sujeito, num lirismo de destruição cujo exemplo mais marcante é precisamente a poesia de Amadeu Baptista. Outros nomes o acompanham geracionalmente, estes religando auto e hetero-ironia, como José Emílio Nelson, ou sobretudo Jorge de Sousa Braga ou Adília Lopes.

iii.
Este livro inédito age como síntese, mas muito mais como cume de uma obra. Amadeu Baptista não deixa senão que uma dupla violência percorra a estrada dos seus versos, entre a presença ausente de uma luz que entrevê na fala, no falo e no dia como contrário do visível; e uma doença do valor das palavras, do poema e dos símbolos que estruturam o ocidente:

«uma doença intrusa. preterido,
procuras perdurar no papel
ou no mármore. afogas-te
num tumulto e vais de escadaria

em escadaria buscar o teu lugar
no paraíso. a araucária serve
ao teu cansaço como um lugar de repouso
e de passagem, e hesitas,

entre tomar a poção sépia
que te estendem na colher
ou o caminho do abismo,

ali tão perto. uma doença irradiante
inscreve-se na pele como um aviso
que ninguém, nem tu, poderá ler.»

Presenças obsidiantes na sua obra são os caracteres dessa primeira violência, uma espécie de revelação falha(da): os corpos partidos, a gruta sensual, impermanente e assassina do ventre, o sentido para uma memória omnipresentemente destruidora, o caminho fragmentado e sempre verdadeiro ou falso das imagens e sombras que cruzam o quotidiano. Mas também a segunda violência do valor do passado (herança literária, biografia, do poema como lugar da memória), esse chão instável de passar um século, de combater o sem-sentido no sentido: poesia finissecular, que o negrume apenas vigia e prenuncia.

Pedro Sena-Lino








Do capítulo 'As Danações':


uma doença infecta, provocada
por balas tracejantes e episódios
retirados do acaso, ora domésticos,
sublinhados por discussões violentas,

ora fortuitos como um acidente
em que uma parte da nuca bate contra o chão
e o sangue corre, fervente, pelo passeio
em que um menino de bibe e sapatilhas pretas

leva as mãos aos ouvidos para não ter que ver
mais do que vê, insustentadamente.
um pavor de doença, que amplia

a legião de fantasmas que nos segue
e nos piores pesadelos admoesta
o sono leve com que a noite passa.

(in Negrume, Lisboa, & Etc, 2006)




 © Amadeu Baptista (poema e foto)

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