quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

António Ferra, exposição Retratos de Nós


Amanhã, sexta-feira, dia 28 de Fevereiro, pelas 18 e 30, realiza-se, na galeria da Biblioteca-Museu República e Resistência – Espaço Grandela, Estrada de Benfica, 419, uma sessão de apresentação de um aspecto da obra plástica de António Ferra:

Retratos de Nós – pintura – colagem – objectos

A exposição, com cerca de 90 peças sobre o tema Retrato, coincide com a comemoração dos 50 anos de actividade do Autor.










13.

Olhares

Porque me olhas dessa maneira? Que fios ardem entre nós? Consegues ver o meu olhar sobre ti?

Procuras conhecer-me com os teus olhos sobre os meus, esmagando-me na tentativa de te conhecer, enquanto prolongas a luz nas flores que te crescem no cabelo. Queres desvendar-me as dúvidas, o medo, a alegria passageira de me imaginar como queres que eu seja. Já não sei a quem pertencem os olhares, os nossos olhos cruzam-se emoldurados numa delimitação dourada, onde dás sinais da tua vida, da tua permanência nos sonhos, no rosto dos teus amigos, na memória da tua família. E tudo isso se mistura com a mesquinhez das tuas aspirações de bairro, a corte mesquinha de admiradores e inimigos.

Por vezes receio ser integrado na moldura com que me cercas e que põe em causa a minha ideologia, o modo de olhar o mundo, a luta surda que travo contigo.

© António Ferra

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Hannes Sigfússon



                                           POEMAS DE HANNES SIGFÚSSON


NOITE URBANA

Branda e suave bicharada que escorre
com olhos brilhantes
na dissimulada noite
bosque de árvores vivas

Retumba no meu ouvido a noite
que corre para a desembocadura
noite que cai num mar
de luzes entorpecidas

Oh esse rosto de olhos azuis

Procuro um esconderijo
entre troncos caídos
no céspede emurchecido
com os teus olhos por fontes
manando azuis na noite
enquanto durmo

E o oceano inunda
a cinzenta terra
e a chama nos olhos
das feras apaga-se

O bosque é arrastado
por pálidas ruas

As conchas do oceano
guardam os teus olhos azuis.

Borgarnóttin, 1947 



A VIDA É MANEJÁVEL COMO UM ISQUEIRO

Não me sai da cabeça o dia de amanhã…

Fizeram o seu ninho no medo
e puseram os seus frágeis ovos no bordo dos precipícios
dos últimos promontórios.

Nidificam em toda a parte, também entre nós
e os seus ovos são mais do os dias de todos os homens
de todos os tempos

Em quanto múltiplos futuros puseram os seus ovos?

Por fim temos a nossas vidas numa casca de noz
manejáveis como isqueiros
e com paredes de aço…

Os jovens saem dos ninhos da infância
e a sua vida hospeda-se sob a asa madrasta
dessas aves de rapina

Passeiam-se entre os fios de aço
como se fosse o apeadeiro das promessas:
que o seu futuro quebre o invólucro

Também se despediram das suas vidas:
o tempo estanca-se
revoluteiam como sombras na corrente do vazio

Inclusive os seus corações pulsam noutro lugar
como o tictac de uma bomba de relógio

Cresce o fragor. Estão numa estação
onde se afogam as vozes das pessoas
e o eco dos altifalantes fala como um deus
nas abóbadas vazias
da morte.

Sprek á eldinn, 1961



ESTAMPAS

Fulgor de hélio nas nuvens

Fugaz pressentimento de uma morte próxima
derrocada de altos muros e fragor de medo

Silêncio abismal…

É o sol que acende os inflamáveis fios da mecha
que se propagam por todo o céu como uma rede estendida
de nervos sensíveis pela ambígua e exótica carga.

Olhai, a primavera faz estalar o tecto baixo e plúmbeo da
terra
com raios e relâmpagos sem o fragor do trovão:

oh, o silêncio é um grito de alegria

O que cai: umas quantas pedras de granizo
e uma lágrimas grossas e quentes, que rompem a negrura
como chuva de chispas:

Arde a seca escuridão invernal

Ardem como petróleo os lagos
e queimam-se as estrelas nos desfiladeiros
os esconderijos da terra convertem-se em espaços
que fogem
e a resistência da rua enche-se de vida

Por toda a parte aparece animada gente
das suas caixas fechadas
a praça converte-se num campo arejado
coberto de inúmera vegetação num maio apaixonado
cabelos negros, louros, ruivos, incendiados de sol
e a erva branca como uma oração pela paz
e uma bênção das tranquilas noites de sol de junho

Porque sob os capacetes reluzentes assomam olhos avaros
rostos brancos como a cera e fechados a cal e canto
colmeias cegas fervendo com o bulício voraz
de pensamentos negros em forma de moscas

que esperam astutas a ocasião para voar como dragões
sobre a exuberante vegetação, nuvem escura, negra
para extrair o mel dourado de cada corola.

Sprek á eldinn, 1961



HORIZONTES VOLÁTILEIS

O cidadão que transita pelas avenidas
quando o dia azuleia ao entardecer
e as luzes de néon brotam das paredes
como água reluzente
satisfaz despreocupado o sue orgulho infantil
com o resplendor desta cidade iluminada
que cresce perante os olhos:
Entre outras coisa é testemunha
de como os importante arranha-céus
envergam o crepúsculo azulado
como se fosse um manto vitorioso
com botões de ouro
que afinal são estrelas
e se perdem de vista
como profetas extasiados
na gloria sobrenatural
do Todo Poderoso.

E no entanto é provável
que qualquer viajante comum
em voo mágico pelo horizonte
sobre oceanos, países e desertos,
rodeado de nuvens sem superstições
veja
o que salta à vista:
Um bosque de tumbas de brancura marmórea
escurecidas pelo crepúsculo cansado
das horas vencidas
sobre um palmo de terra.

Jarteikn, 1966



NO ENTANTO DESPERTA-ME A ALBA

No entanto desperta-me a alba
com delicados modos:
os caminhos separam-se e dispersam
estrondos, automóveis e patadas
pela calma de outros bairros

Caio num torpor inconsciente
Tudo se me oculta:
o correr do sangue e dos pensamentos
por entre os escolhos e o salto
descomunal do eco pelas paredes d desfiladeiro
e o ávido girar das rodas do moinho

Quando a noite empalidece
tenho os resultados do computador
nas minhas mãos vazias

Jarteikn, 1966




FENÓMENO DO ABISMO

A linha no teu dedo
e a maravilha do abismo
que sondas

O flutuador ladeado
balançando-se ao alcance da tua vista
e a isca amarelenta espetada

O mar que dorme
A calma que balança
A meia lua banhada de luz

E o teu braço pesa
e sopesa
a linha da dúvida…

E então aguilho-te a alegria!

Lágt muldur thrumunnar, 1988



O OPTIMISMO DAS ÁRVORES

As árvores não sacrificam os seus ramos às estrelas.
Estendem os dedos para os moinhos de vento e para
os quartos de lua. Vi as suas pontas
amansar a tormenta com a incessante
flexibilidade de quem não se deixa dominar por ela
e começa a sua minuciosa procura entre os despojos
assim que amaina: um troço azul de céu
um pedaço de prata cinzenta de claridade gelada
na escura noite. Vi-os desenhados
na cega pupila do céu de inverno
como prova de um cérebro superinteligente sob o córtex
que calculasse o lucro de cada dia que passa
em forma de sóis que pingam gotas de chuva
sobre os húmidos cristais, de pedaços de gelo
acesos pelo seu conhecimento das leis
que fazem girar a terra a despeito das verdades
meteorológicas.  Com optimismo radical
levantam a sua antena indagadora na calma gelada
para captar o longínquo rumor das cálidas brisas
que pressagiam germinações e pássaros…

A meio do inverno
paro a contemplá-las.

Lágt muldur thrumunnar, 1988



BALEIAS E HOMENS

Dispersar icebergues
em forma de foguetes
com o único propósito inocente
de beber a limpidez do céu
antes de explorar o abismo…

Se fôssemos
de dois mundos
como as baleias
e rasgássemos o céu
e bebêssemos a escuridão
da sua abóbada
antes de afundar
na claridade

compreenderíamos então
melhor
as sombras da nossa vida?

Jardmunir, 1991



CURVAS E ARCOS NATURAIS

Lançadas sobre a charneca
sendas, trilhos e veredas
como amplos laços
que alcançam verdes vales
e águas nascentes

Nos seus rumos sinuosos
penso
que se podem
ler as existências de animais desaparecidos
entre montículos e pedras
entre a dor e o prazer
A sua liberdade
estava nas curvas

penso
assombrado
no meu mundo rectangular

Jardmunir, 1991



FENÓMENO DA ESCURIDÃO

A minha rede eléctrica
de alta frequência estendida
do pescoço até aos dedos dos pés
ramificada
impetuosa
e sempre em guarda
como a rede de radares de uma superpotência

Zelosamente escondida
sob a pele lisa

E provavelmente oculta para todos
menos para ti
quando nas tardes escuras
tiro a camisa

e tu a ouves ranger 
e vês os seus azulados
clarões

Jardmunir, 1991



BALEIAS ENCALHADAS


Isso branco
que se estende interminável pela enseada
não é espuma
nem flores
nem peixe salgado
posto a secar quando tu eras jovem
e chegaste do campo

É gente
massa de corpos
horizontais
reluzentes como Moby Dick
brilhantes de bronzeador e gordura

Jardmunir, 1991



ILUSÃO

A tela tensa
O bastidor
mostra a sua brancura
como um olho torto

Que arrepio
recorrerá a pupila
pensa
e vacila perante o cavalete
num novo desmaio…

Então tomo o pincel
e ofereço-lhe uma ideia.

Jardmunir, 1991



IDEIA INOPORTUNA

Junto ao caminho vi uma jovem bétula
com uma folha verde na botoeira

E assaltou-me uma ideia absurda:
Ajoelhei-me no musgo
e desabotoei
todos os botões do meu negro
fato justo
que só me deixa solta a minha reprimida vegetação

Bem, e depois?

Como e depois?

Era inverno!

Jardmunir, 1991


ALEGRIA ATRASADA

No entanto posso arrancar as minhas horas
livremente
dos maduros cachos dos dias
longínquos

fincar o dente na sua casca azul e morde-la

As minhas papilas gustativas
encontram neles um prazer insólito

Também eles
por fim amadureceram

Jardmunir, 1991



EQUILÍBRIO

Desde que deixei de voar em reactores
pela abóbada do céu
vou por um corda solta
sobre o abismo

uso as mãos como asas
guardo o equilíbrio
e eu mesmo sou a probidade

Os meus joelhos
fraquejam ante o perigo

Jardmunir, 1991




SORRISO NA ESCURIDÃO

Fotografia!

Como se a luz deslumbrante
que entrou pela janela
fosse a mãe
desta eternidade
que tenho entre as mãos.

Tudo o mais
são sombras chinesas.

Jardmunir, 1991



Versão minha - © Amadeu Baptista


Hannes Sigfússon (1922-1997). Poeta atómico. O seu primeiro livro – um original ciclo de poemas de interpretação fragmentária e difícil – apareceu em 1949. Os seus poemas apresentam uma visão ampla da política, da cultura e do homem em geral. Tradutor activo de poesia.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

CINCO SALTOS COM OS SURREALISTAS # 4






JUAN MIRÓ: VERÃO

no verão, nas praias do mediterrâneo, há encontros
inesperados, com seres que vêm de outras paragens
e outras formas. qualquer um pode ver um gato
a invectivar os céus contra o abandono absoluto
na ininterrupta preia-mar ou um cão a endoidecer,
enquanto se afasta para as dunas longínquas e a lua
o persegue e alucina, ou um camponês a cantar
as doenças da infância, com as mãos
muita abertas sobre o mar e losangos claríssimos
na boca cheia de luz, ou um grupo de joviais
raparigas a dançar a sardana, vestidas de vermelho
e a gritar de alegria.



in A Ideia - revista de cultura libertária, nº. 71/2, Évora, Nov. de 2013)
© do poema: Amadeu Baptista


segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Ole Sarvig



                                                     POEMAS DE OLE SARVIG


CRISTO NO TRIGAL

Esta noite vi o trigo,
o trigo sonhador,
o trigo e a espiga de toda a humanidade
nestes campos.

Vi-o, esta manhã pelas cinco,
quando chegou Cristo,
a hora pálida em que nascem as crianças,
em que principiam os incêndios.

Era tão formoso. Dormiam tão aprazivelmente.
E Cristo caminhava como uma lua através do trigo.

            Jeghuset, 1944



A MINHA PENA

O estranho chalé antigo da minha pena
com as suas varandas frias viradas a norte
e os quartos inutilizáveis das suas torres.

Sempre à sombra
do pinheiro verde escuro do jardim,
esquecido, atormentado por má erva,
evitado pelos homens.

Aí passeio muitas vezes só
pelos quartos sonoros da humidade,
no silêncio bafiento,
apenas quebrado pelo golpe nas paredes
que a fome dos insectos produz
– esses pequenos seres estaladiços,
que dentro de cem anos
terão transformado a casa em cinzas.

            Jeghuset, 1944



NOITE JOVEM

A lua pendia repicando como um som eléctrico
na noite
que todos ouviam

Mas a alma corria por um campo
brincando como uma criança.

            Jeghuset, 1944



CANÇÃO DE DESTINO

Ouço uma canção estranha
que vem de uma janela
como um destino que canta
na rua glacial
com a juba solta.

            Jeghuset, 1944



CLARABÓIAS

Nuvens, barcos, grandes, negros,
as cinzentas armadas de guerra
passam a navegar por ali.

E eu estou aqui à janela
junto às minhas flores,
que procuram a luz
arrastando-se por detrás dos vidros.

Assim pois são todos eles,
os artista, os pintores,
plantas trepadoras sobre as clarabóias.

Uns não florescem nunca.
Outros dão formosas flores.

            Jeghuset, 1944



PENSAMENTO EM CALMA
        texto para Chirico

Atrás de templos desertos,
a praça vazia
onde a alma caminha gritando.

Uma rua desvanece-se no horizonte.

Negras sombras mortais caem pesadamente,
e o sol queima a vida deixando-a branca,
irreal.

Como pontos umas pessoas distantes cruzam
as ruas
e caminham ao longo do bordo da deserta praça da esperança.

Uma guerra espreita
muito longe dos telhados.

E o pensamento permanece silencioso
na sua torre.

            Jeghuset, 1944



UMA TARDE

(dedicado a Edv. Munch)


As árvores erguiam-se
solícitas, cuidadosas, grandes,
dubitativas,
por fim verdes.
Atrás delas estava a casa,
grande.

E ao redor da praça
estavam as casas,
estranhas como sótãos e portas
como destinos.

Havia escuridão na escuridão
e uma franja branca
na rua
por onde andavam as pessoas
com os rostos fechados.

E não abrem
as suas portas-rostos
quando chamas.

            Jeghuset, 1944



A TERRA PERDIDA

Lentamente levitam as cabeças dos recém falecidos
muito altas por cima da Terra.
São as enormes nuvens.
(Aquele é o jovem
que caiu com a moto.
Essa a mulher cansada
que acabou por tirar a vida.
Aquela é a rapariga que assombrada
viu florescer o fogo nas paredes do estábulo.
E há outros que se escondem por detrás deles
e não quiseram mostrar a cara.)
Silenciosas levitam agora
sobre a costa
onde a branca chama das ondas
palpita na distância.
Viajam silenciosas
(diluem-se, juntam-se)
através da acocorada abóbada cinzenta do dia.
Perderam o horizonte,
e o sol, que agora nasce e divide
a árvore da costa,
a infinitude das largas ruas das cidades
na névoa,
a multidão que se aproxima lentamente com o ataúde.
Perderam o ataúde.
A entrada e a saída secreta dos vivos
para o espaço do dia.
Olham fixamente o interior da pedra;
triste imagem das cidades.
Procuram os caminhos:
aqueles pelos quais nunca caminharam.

Da profundidade levanta um rosto o olhar.

Forstadsgigte, 1974


Versão minha - © Amadeu Baptista
 
 
 
 


Ole Sarvig (1921-1981). Nasceu em Copenhaga, onde estudou arte e desenho.  Estreou-se em 1943. Viveu em Espanha. Tradutor de Ortega e Gasset. Ficcionista.
 

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Claes Gill



                                                 POEMAS DE CLAES GILL


FORMOSAS VOZES COMOVIDAS! COLOCAI PALAVRAS

Formosas vozes comovidas! colocai palavras
no pálido brilho da alba
no este dorme um fiorde cinzento plúmbeo
dorme e encrespa-se de amarga doçura
na força das algas varadas –
colocai palavras – vozes comovidas –  colocai palavras
a isto e ao que mais
clareia no frio acorde de azul
do olho – coloca palavras, oh dúvida – que ocorre
quando o olho está fechado pela terra – terra.

Fragment av et magik liv, 1939




MARIA

Estás morta.
                    Homens vivos
separaram há já muito tempo a violência das suas mãos
e derramam agora o selvagem esplendor dos seus sonhos
em outros lugares.
                    Porque estás morta.

E esquecida por um copo qualquer de água.
Mas as tuas palavras moribundas sobre o destino da vida
respiram no fumo de uma catarata oculta num dia de outono:
sobre isto de morrer
                   a redemoinhos
de um jogo de sombras no fluir da água.

                        * * *

Novembro já está
aqui: estendidas em eriçada loucura
estão as árvores envoltas em estrias de chuva; e tu
estás só, a morte sabe onde. – Queimada
amarga intelectual, deixa uma paixão
como em febre água sobre a cinza
para assim, altivamente envolta em fumo,
zombar da dor do signo dos mortos,
rindo-se, como aquela enlouquecida cujo arco
avança cantante sobre cordas de chuva.

                        * * *

Ainda se sente: gritos roucos
esquivos na luz da madrugada. Fogo
aceso numa janela vazia e as lâmpadas
apagadas por frios passos na areia
pelo caminho ascende uma visão de sombras
em veloz fuga sobre o linho cinzento pálido da almofada
intui-se em vagos contornos a tua boca
semi-aberta a palavras que impronunciadas
deixam um vazio na vida. Spleen!
oh spleen na impotente queda das fontes.

Fragment av et magik liv, 1939



A VIDA É FUGA

Sempre fugindo? tu, frio
sensualista da janela. – Sim,
nada: crianças brincando, cujos gritos,

ténues gritos numa tarde de abril,
fazem em pedaços a tua alma; mulheres distantes
cuja palidez outonal mascarada

sob as árvores te sacode selvaticamente
com pânico impotente: – nada disto
detém a tua fuga até àquela escura

Marselha, o porto dos despropositados
o porto da Psique, onde ela, em vão
esgotada – ébria de éter – letárgica

como chamas de gás numa noite serena, já tarde,
brilha em correntes de vida e morte,
luminosa e pálida até à tua chegada.

* * *

Sim, eu chego.
uma tarde húmida, alta
escutas selvaticamente
os gritos dos barcos a vapor

e o véu da janela
de fina chuva
precipita-se em faixas
sobre o teu olhar.

Arrepias-te!
a canção do marinheiro
passa ao largo
fria e altiva

como um requiem
de uma vida
vivida por assim dizer
no índice

ruptura e fuga:
sempre fugindo
ouves agora
os segundos

bramar como cascalho
de um caminho vizinho
de um morto aparente

* * *
O sopro suave, frio e branco da cortina
a humidade entra pela janela aberta de par em par
o varão cede a golpezinhos ténues como gemidos
de uma apática – oh mar espumante – gélida

palidez sobre o teu rosto amena
respiração voam de imobilidade e os gritos solitários
das sombras – gritos no sonho dos amantes
da eterna nostalgia do corpo.

Fragment av et magik liv, 1939



O POETA CANTA A SUA INDESCRITÍVEL BELEZA

Tudo, vi tudo!
a alba rosácea do mito
em palavras escuras sobre
a mulher comovida por eros de Ilión
e a luz que empalidecia
nas crepusculares visões febris de Tristão
na distância no oeste,
e o fumo das sagas de terra que germina,
e os sonhos desamparados
de homens vivos – e de mortos –
tudo vi, porque tudo encontrou morada
nisto que é a tua indescritível beleza.

            E tudo foi compreendido, tudo!
            por quem cujo espírito inseguro
            se arrasta com cada explosão
            de um vento artificial sobre água dragada
                        sempre abrigado –

Agora se tudo vi, tudo foi compreendido
tudo – tudo pode ocorrer.

Fragment av et magik liv, 1939



MOZART

Morte em dezembro aplaudida
por pesadas batidas de cansados corações:
uma porta aberta que bate e bate
no branco vento da tormenta invernal.

Ainda mais branco! a eterna primavera
– tempestuosa luz – sobre uma tumba esquecida;
o formoso milagre: o véu primaveril
– intemporal como a vida das lágrimas no âmbar –

sussurra na erva sobre uma tumba.
Tu de tudo inspirador! Cálida terra…
luminosa folhagem das tílias… doçura silvestre
de violeta silvestre… pegadas de alba

do resplandecente brilho matutino
suavemente estendido sobre o frio véu do orvalho,
tudo cresce das milagrosas marcas
primaveris na terra geada de Dezembro.

Morte em Dezembro… o teu triunfo:
a última batida do coração cansado
transforma-se na perdida pulsação da morte
no meio da branca urgência da tempestade de inverno.

Ord i jœn, 1942



JUVENTUDE FUGITIVA

Juventude fugitiva!
    Uma corça
perseguida por uma matilha
    de cães arquejantes.

O grande Caçador
examina com fria
    calma as suas mãos.

Ord i jœn, 1942




GLORIA VICTIS!

Gloria Victis! – Não os esqueças nunca!
Não esqueças jamais os caídos
que nos gritam com morte na boca
que a vida, longa ou curta, no instante da morte
pesa-se na balança com o vertiginoso segundo da esperança
    na vitória.

Gloria Victus! – Não os esqueças nunca!
Não esqueças jamais os vivos,
os que com a morte na alma têm que desafiar a sua derrota,
viver, cantar para os seus filhos, esforçar-se dia a dia
sem esperar nada – nada excepto a última pulsação do seu coração.

Til Ungarn, 1957 (Publicação de solidariedade com a Hungria)



Versão minha - © Amadeu Baptista




Claes Gill (1910-1973). Nasceu em Odda, perto de Hardanger, no norte da Noruega. Fez o bacharelato e depois levou uma vida misteriosa e aventureira. Foi marinheiro, baleeiro e ascensorista nos Estados Unidos. Estreou-se como poeta em 1939. Após dois breves livros de poemas, que o colocaram como um dos pioneiros do modernismo norueguês, abandonou a poesia e dedicou-se ao teatro, como actor e encenador.






segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

CINCO SALTOS COM OS SURREALISTAS # 3



RENÉ MAGRITTE: O IMPÉRIO DAS LUZES

lamentos há que, de tão agudos,
só os cães podem ouvir.

momentos há em que os cães uivam
como se fossem lobos.



(in A Ideia - revista de cultura libertária, nº. 71/2, Évora, Nov. de 2013)
© do poema: Amadeu Baptista