quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Thurídur Gudmundsdóttir


                                            POEMAS DE THURÍDUR GUDMUNDSDÓTTIR


VAMOS

Vamos
antes que o dia se consuma
nas nossas mãos

Vamos
à margem do rio e sintamos
antes que as lágrimas
sequem nas suas margens amarelas

Vamos
olhar as flores e as cerejeiras
brancas
antes que as nossas mãos cegas
acariciem o rugoso dia
e o amor esteja ausente

Vamos

Hlátur thinn skýjadur, 1972



A TUA MORTE NA MINHA VIDA

Afundo os remos suavemente
no entardecer

Não,
no teu sangue
e aproximo-me veloz
da vida

Hlátur thinn skýjadur, 1972



JUNTO AO CAMINHO

Dá-me uma tarde cheia de cor

Telhados vermelhos
ardendo de tristeza
ao sol que morre

Barcas de pescadores
saudando a praia

E distância
que sangre na tua presença

Hlátur thinn skýjadur, 1972


ENVOLVE EM CREPÚSCULO

Envolve em crepúsculo
os arbustos

Criaremos a noite
acenderemos a noite
semearemos histórias
em olhos infantis semi-abertos
E logo me darás o teu hálito ardente
e escutaremos juntos
Veremos abrir-se o céu
e pintaremos na escuridão
os nossos múltiplos desejos

Envolve em crepúsculo os arbustos
criaremos a noite

Hlátur thinn skýjadur, 1972



FLORES DE ORVALHO

Flores de orvalho adornam as janelas
das nossas casas

Quando pões
as tua palmas cálidas
sobre o orvalho
através das tuas mãos
vejo o mundo exterior
envolta na treva
que não queremos ver

Flores de orvalho adornam os nossos corações
e nos páramos ardem os fogos-fátuos
a caminho do povoado.

 A svölunum, 1975



UMA ESPÉCIE DE AMOR

Gostaria de me afogar nos teus olhos

E depois o meu cadáver
chegaria à costa
como fugaz recordação
daquela menina
que te olhou
há mil anos

Menina
de tranças louras
e olhos azuis
não reconhecerias o cadáver

Og thad var vor, 1980



PEDAÇOS


O teu pensamento
quebra-se nas palavras
dos teus lábios

Recolho com cuidado os pedaços
ordeno-os, firo-me,
e crio um novo pensamento
meu.

Og thad var vor, 1980



O TEMPO

Pedimos a este instante
que se detivesse

Atiramos flores
ao rio
grandes e azuis
levou-as a corrente
cada vez mais longe

Vimos a nossa vida
reflectida no rio
alhear-se
como as flores azuis

Tomaste a minha mão
e disseste
o tempo é cruel

Og thad var vor, 1980



LIVRO

A tua experiência
parecia-me um livro
formoso e fortemente encadernado
posto numa prateleira
com todos os adornos valiosos

deixaste-me
uma vez
ler algumas páginas

então
olhei-te
como se fosse
a primeira vez que te via.

Thad sagdi mér haustid, 1985



COLAPSO


Desabas-te
alguma vez
sobre ti mesmo
arrastado pelas ruínas magoado
olhando surpreendido
os destroços
e pensado:
sou eu?

os presentes,
bem, todo o mundo
olham-te exigentes
recompõem-te

Cambaleias
agachaste por um pedaço
logo por outro
logo por outro mais

e planeias a reconstrução.

Ordin vaxa i kringum mig, 1989



NA CRUZ

Na cruz
cravaram os nossos pensamentos
e palavras

a cor da nossa pele

a nossa vida a nossa liberdade

na cruz
cravaram o nosso corpo atormentado

na cruz
tocamo-nos

em Cristo

no sofrimento


Ordin vaxa i kringum mig, 1989


Versão minha - © Amadeu Baptista
 
 
 


Thurídur Gudmundsdóttir, nasceu em 1939. Escreve poemas líricos sobre temas quotidianos, memórias da infância e vivências. Versos simples e expressivos que reflectem a dor, a vida. Publicou sete recolhas de poesia, desde 1969.
 

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Tove Ditlevsen


                                             POEMAS DE TOVE DITLEVSEN



CASAMENTO

Numa paixão rememorada,
despertada pela recordação de um outro abraço,
a carícia distante de uma pele fresca,
o perfil sonhador de uma mulher desconhecida
sobre as luzes de néon da cidade –
ou talvez
por ter visto no comboio um jovem soldado
de olhos claros, em cuja serenidade ele viu
um espírito muito simples reflectir o seu
e devolver-lho, não resolvido
em toda a sua enigmática maturidade –
os seus sentidos voltam-se inquisitivos para mim,
velados por uma necessidade escura de traição.
E eu que habito inteiramente esta casa
fecundo o pó com a ideia frágil
de uma vida própria, eu que me ajoelho cada dia
perdida em orações vagas, ao lado
da fidelidade de um balde amarelo esmaltado –
observo o seu rosto furtivamente secreto,
repentinamente nu, quase indefeso,
como esses jardins abandonados que a natureza reconquistou:
só um clarão de ternura encolerizada,
entristecida, secretamente arrancada a uma morte
do amor legítimo sem causa demonstrável.
Vejo-o escapar-se e recordo-me de outras carícias
de doçura incomensurável, talvez uma vez suas,
mas que não desperta já em mim o desejo
excepto na memória, nunca mais.
Sem palavras, vingativos, negamos solitários
a faculdade de despertarmos mutuamente voluptuosidade.

Kvindesind, 1955



DOMINGO

Nunca acontece nada aos domingos.
Nunca encontras um novo amor
ao domingo.
É o dia dos infelizes.
Dia de obrigação ou dia de família.
As horas mais dolorosas da amante
quando imagina o seu amado
com os seus filhos nos joelhos
enquanto a sua mulher, sorridente,
entra e sai com tentadoras bandejas.
Um dia maldito.

Alguma vez teve que ser diferente.
Por que se não teríamos todos
que esperar com ansiedade o domingo durante toda a semana?
Talvez quando íamos à escola?
Mas já então os sinos soavam
compungidas e cinzentas como chuva e morte.
Já então as vozes dos adultos
eram débeis e insonoras como se procurassem às cegas
e em vão as palavras dominicais.

O odor a humidade e a pão bolorento,
a sonho, a botas de borracha e a chicória
já subia então pela escada
e a rua, que estava austera, vazia e diferente
de um modo desolado –
O odor dominical forrava-nos
com a grossa capa da decepção
que se segue a uma expectativa
sem fim específico.

Mas, então quando? Num lugar anterior à memória
houve felicidade, uma expectativa irresistível
que todavia ninguém tinha sido capaz de defraudar.
Então os sinos significavam que o papá estava em casa,
o bigode, as negras sobrancelhas arqueadas e o cheiro a tabaco mascado
estavam ali e ali ficavam, num lugar próximo,
e talvez o riso da tua jovem mãe
soasse mais alegre que nos outros dias.

É domingo. Tu nunca encontrarás
um novo amor neste dia.
Estás sentada na sala de estar
confundida e rígida como um boneco de cartão
aos olhos das crianças.
Escavam com os pés
e combatem-se sem energia.
«Deveríamos fazer alguma coisa», dizes.
«Sim», diz uma voz detrás do jornal.
Então calai-vos os dois, porque tudo o que tínheis ganas
de fazer é oculto e secreto
e seria inaceitável para o outro.

Os sinos da igreja soam. Os narizes das crianças
enchem-se de desesperançado odor passado.
Sobre os seus doces rostos desliza
uma fealdade passageira.
Uma luz estiolada
nasce nos seus olhos.

Mas todos esperamos o domingo
toda a semana, toda a nossa vida,
esperamos a ilusão de centos
de compridos domingos, esgotantes.
Dia familiar, dia de obrigação,
o inferno dos secretos amantes.
Esse dia em que a nauseabunda cinzentês dos adultos
impregna as crianças e estabelece
a incompreensível melancolia dominical dos anos vindouros.

Den hemmelige rude, 1961



DIVÓRCIO 1

Ele pediria
em caso de divórcio
a metade de tudo
disse ele.
Meio sofá
meio televisor
meia casa de campo
meio quilo de manteiga
meio filho.

O apartamento era dele
disse ele
porque estava em seu nome.
O caso era
que a amava.

Ela amava outro
cuja esposa ia
pedir a metade
de tudo.

Estabelecia-o a lei do casamento.
Era tão evidente como
dois e dois serem quatro.

O advogado disse
que era correcto.
Ela destruiu a metade
de tudo
e rasgou a declaração de impostos em pedaços.
Depois foi-se
ao Lar da Mulher da rua Jagtvej
com meio filho.

Escarneciam do menino na escola
porque só tinha
uma orelha.
Quanto ao mais a vida também
se podia aguentar assim,
já que não podia ser de outro modo.

De voksne, 1969



DIVÓRCIO 3

Não é fácil
estar só
as outras pessoas
olham-te com olhos impacientes
como de sala de espera.
O sonho
leva os passos
sob os teus pés.
De hora em hora
anda como que estendida da barra do ginásio.
Ao dividir o lar
não se incluiu
um vocabulário
de umas
cem palavras.

A saudade de
algo desagradável
a falta de
odores fortes.
Fumo frio
nas cortinas.
Agora a cama
é demasiado grande.
As amigas vão-se
à hora de pôr as batatas a cozer.

A liberdade
não chegará até que
não chegue
no próximo comboio
um viajante desconhecido
a que não agradam
as crianças.
A cadela
está inquieta
fareja
equivocadas pernas de calça
logo estará
com cio.

Lês livros
olhas a televisão
não percebes
nada
de repente sentes-te
muito feliz
de manhã
e desesperada
antes da noite.

Isso passa
dizem as amigas
é algo que
tens que aguentar.
Leve como
um cosmonauta
andas a flutuar
por quartos vazios
e esperas
a liberdade
de poder fazer
o que
já não tens vontade
de fazer.

De voksne, 1969



AUTO-RETRATO

Eu não sei:
cozinhar
trazer chapéu
ser acolhedora
usar jóias
oferecer flores
recordar citações
agradecer presentes
dar a gorjeta adequada
reter um homem
mostrar interesse
nas reuniões de pais.

Não posso
deixar de:
fumar
beber
comer chocolate
roubar guarda-chuvas
ficar a dormir de manhã
esquecer-me de recordar
aniversários
e limpar as unhas.
Falar
pela boca dos outros
revelar segredos
amar
lugares estranhos
e psicopatas.
Posso:
estar só
lavar pratos
ler livros
construir frases
escutar
e ser feliz
sem má consciência.

De voksne, 1969


Versão minha - © Amadeu Baptista



Tove Ditlevsen (1918-1976). Nasceu em Copenhaga. Oriunda de uma família operária, foi auto-didacta. Foi também operário. O seu primeiro livro de poesia data de 1939. Publicou poemas, contos e romances.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Tarjei Vesaas


                                                POEMAS DE TARJEI VESAAS


ERA UMA VEZ

Era uma vez uma pequena bétula
a que tinham prometido folhas novas
para meados de maio.
Apenas roçagava a terra
por isso
e porque era tão ligeiro.

E chegou também como lhe tinham prometido
um vento de maio.
Mareou-a um pouco
e adoçou-lhe o tronco
e ficou dolorida em todos os seus rebentos.
Um pássaro chegou a pousar
num ramo nu –
e disse que tinha chegado a hora –

Não se deu conta de nada
naquele dia.
Mas quando chegou a noite
a sua magra nudez e o seu esplendor
tinham-se coberto de um verde tenro.

Mareada e viva.
Libertou-se, lentamente.
Libertou-se completamente das raízes, criou.
Navegou como um velame verde pela colina.
Longe daquele lugar para sempre,
– pensou a bétula.

                Leiken och lynet, 1947



A SUPERFÍCIE ESTÁ CALMA

A superfície está calma
no país do fogo,
não se pode ver nada,
tudo está em equilíbrio.

Mas estão passando coisas
a esta hora,
como avalanches flamíferas
em montanhas interiores.
Eles sabem-no, esses poucos
que viram através das fissuras
e sentiram o golpe de calor.

Os homens sentem-se atraídos pelos homens
na sua fome de fogo através de milhares de quilómetros
– e de repente nada há incerto,
olho a olho
mutuamente, sobre a verdade, sobre
a profundidade do fogo e o selvagem encontro dos fogos.

                Løynde eldars land, 1953



OS TEUS JOELHOS E OS MEUS


Os teus joelhos e os meus
e o cálido musgo.
E os anos moços.

O teu sedento medo,
como o meu.
E pesado como o meu.
O olho de Deus num sol
em chamas.
A tua própria confusão
dentro da minha:
Adeus.

                Ver ny, vår draum, 1956


O PÁSSARO

O pássaro estava preparado
junto à estrada esperando.

O pássaro era um milagre.
A sua grande asa
era esquecimento.
O ritmo do pulsar do seu coração
era o meu.

Juntos navegamos
para o desconhecido.
Sem perguntas.
Sem penas.

                Lyv ved straumen, 1970



PEQUENO ROEDORES


A madeira da cerca de trigo range
sob a capa de neve.
O monte pesa como o mundo.
Mas há outras coisas
em que pensar:
A pressão da neve está
esmagando lenta
e silenciosamente
o peito de pequenos roedores
na terra que já não se vê.
Todos aqueles que não tiveram tempo de alcançar refúgio
quando desabou a tempestade de neve e os enterrou
quando corriam por ali.

Pequenos roedores
jazem entre as pálidas palhas húmidas
do verão passado,
sem que saibam onde estão
ou o que aconteceu.
Brilhantes olhos negros abertos
comprimidos contra a erva molhada.
Abertos de par em par para a tempestade.
Descansam em paz até à primavera.
Na primavera
algum pássaro os encontrará
bicá-los-á nervosamente,
levantá-los-á com o bico
e atirá-los-á para o lado.

                Lyv ved straumen, 1970



NO UMBRAL

As sombras deslizam cruzando o campo
como amigos frios, serenos
depois de um dia abrasador.

A nossa alma é um silencioso
país de sombras.
E as sombras vêm deslizando
trazendo amistosos enigmas
e um oculto florescer.

Levantamos serenamente o olhar
Estás já aí,
escura flor minha?

                Lyv ved straumen, 1970



VENTO PERIGOSO

O vento sopra e sacode.
Dançam as velhas folhas.
Rangem as velhas portas.
Mas as velhas ideias tornam-se
novas e perigosas
no vento jovem.

                Lyv ved straumen, 1970


Versão minha - © Amadeu Baptista
 
 
 


Tarjei Vesaas (187-1970). Nasceu em Vinge (no norte do país). É de origem camponesa, Estudos na Universidade Popular. PO seu primeiro livro de poesia data de 1946. Vesaas é um dos grandes romancistas noruegueses. Também escreveu teatro.


 

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Um inédito




RONDA DOS TRAIDORES

Povos traídos já o foram muitos.
De gregos a romanos a mais de muitos centos
todos foram incorporados no grande índice
dos bichos que sentiram a lâmina na goela,
ou a entrar nos flancos para que não pudessem
ser o quanto queriam nos seus sonhos débeis.
O mal é esse mesmo, que possa a traição
grudar-se aos ossos e os mentecaptos
se sirvam dela nos banquetes férteis
em que de lampreia e faisão se embrutecem,
enquanto nos baldios a pobreza cresce.
Contudo, os brutos serão sempre os outros,
que ao longo da história se omitiram
por um gesto em falso ou um maligno passo,
ou até mesmo um decreto do senado.
Ou dormiram demais, ou no seu sono leve
trabalharam muito para que a indulgência
lhes custasse a família, os filhos, o sustento
e fossem retalhados como cordeiros mansos
que das regiões claras só podem conhecer
a escuridão infrene que os aniquila.
Traídos os traidores da ousadia
de permanecerem traídos para sempre
melhor seria que sangrassem dos ouvidos
ou que a boca de raiva lhes espumasse
pelas lídimas trafulhices de que são vítimas.
Ainda assim, não se passa nada. À vida
vão uns tantos para sofrê-la, a ranger
os poucos dentes ralos e a pôr as unhas
a salvo de qualquer lima, que está caro
o aço e nada é mais diverso
do que querer-se algo e nada se fazer
para que alguma coisa mude para que tudo
fique tal como estava antes do que se quis
 mudar no âmbito das pirâmides
ou dos jardins suspensos. Traidores, portanto,
é o que mais há nas longas multidões
que os povos significam, ajoelhadas
bestas que aqui ovacionam e mais além
irão querer linchar sem que para isso
tenham paixão bastante. Dúvidas há
de que sejam homens, ou que da sua
espécie a humanidade seja em seu ardor
e escala de ansiar o pão, a paz, a liberdade,
sem que, no entanto, alastrem pelo mundo
a reclamar a luz que deveria pertencer-lhes.
E ainda falam do tempo irrepetível,
dos becos sem saída, das vozes inaudíveis,
da coroação do espanto, dos mares repletos
de fúrias e desmandos. A uns e outros todos
se vão traindo, cheios de culpa mas nunca
 com remorsos de enquistarem assim os corações
nefastos, demasiado puros da pulhice alheia
que só deles mana. Não se lhes cansa o olhar
das grades  que em volta  assestam
as prisões que para si criaram,
danados de requebros não mais do que servis
à espera das migalhas que irão cair
do espavento dos bolsos que alguns benévolos
premeditadamente planeiam denegar
à fome secular e à calamidade.
Melífluo é o combate marcado por recuos,
surtos de aleivosias, suplicações, errâncias,
e a boa-fé fenece entre os traídos, prostrados
sobre a lama que os seus pés abriram
sem que de nada mais se arroguem que a traição
que lhes corre no sangue e lhes domina o espírito.
A uns e outros se abatem pelas costas.
Os de cima os de baixo e os de baixo
os de baixo, que é sempre a cair
que há-de ficar-se em coisas de ignomínia,
ou nas sujeições ignóbeis da desgraça,
ou no destemor que alguns da covardia
sacam, havendo sequazes e facas disponíveis,
usadas com perícia  a perorar
as circunstâncias graves em que se vive
num território de recursos parcos.
Traidor é sempre quem trair se deixa,
atento ou desatento à luz dos anos,
pasmado ou exaltado no seu entusiasmo
de ser sem terra, ou ter sido dela
há muito expulso, ou ser seu pasto
em vida como o será quando for morto,
a privar com os vermes que, afoitos,
em cada aresta sopesam o momento
para abocanhar a carne das ovelhas
que, cegas e ordeiras, transitam
no foco de infecção  para que alastre
a irredimível doença de que todos
sofrem. Ah, os rostos giram
nas quadraturas dos séculos, vãos uns
ceder e outros descompor-se, outros
empenham a palavra e voltarão com ela
atrás,  pelo caminho ínvio, ainda outros
murmurarão a surdina entorpecente
de um rumor, de uma conjura, de um juro
que se cobra, de uma mácula caída
sobre a melhor nódoa , de uma arma aperrada
contra o dilecto amigo, de um rei que abjurou,
de um crente que se fiou, do alento
de um homem que a si mesmo se traiu,
assim como traiu os seus mortos antecedentes
e consequentes, em velhas e novas gerações 
de traidores no comum descampado
dos tempos indizíveis, coberto de fósseis e sangue
ressequido. Ah, todos traímos a infância, o menino
selvagem, o castanheiro espesso, o regaço
de quem nos olhou  pela primeira e pela última
vez como um filho querido e nos deixou partir
para a imobilização, a providência, o sossego,
a contagem incólume dos cabelos,
o beijo na face e a mão sobre o ombro,
a candura aos portões da Babilónia, os catorze
mil cegos que Samuel viu arrastar-se
nas montanhas da Macedónia a caminho de Ohrid,
vítimas estes da traição que a fereza é.
É desse lixo que os monturos se ampliam,
traição sobre traição sem mais remédio
do que ver o mundo a dissipar-se nos resquícios
da compaixão, do nojo, da bondade.
E no horizonte crespo o deserto amplia-se,
passam os comboios mas tudo está perdido,
o mar adensa-se e as traições
progridem, obsessiva e suja
a noite cobre tudo a ocultar quanto se fez
de criminoso e baixo e se sepulta nos bustos
de estuque que as galerias mostram,
um rol de heróis que a própria mãe venderam,
sem mais consolo do que viverem disso,
por um domínio, um lugar, uma quantia,
uma vara de porcos, castrados e cevados.


Inédito - © Amadeu Baptista

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Mário Dionísio




UM POEMA DE MÁRIO DIONÍSIO



Que nojo   São carcaças
de gente morta por dentro
Escondem mucos pegajosos
que empestam toda a paisagem

São abutres pelados são carcaças
de olhos vítreos de intenção
são bostas de sangue e o centro
de onde mana a corrupção
Só nunca serão carrascos
porque lhes falta a coragem

O medo os faz silenciosos
pelas costas atrevidos
Movem-os ódios e ascos
flatulências de ambição
pequeninos verrinosos
gordurosos retraídos

São fura-greves são espias
vaidosos de ser pisados
segregam epidemias
de vergonha   São repolhos
de gangrena engravatados
São piolhos são piolhos
são piolhos


sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Gunnar Ekelöf

                      
                                               Poemas de Gunnar Ekelöf


CADA HOMEM É UM MUNDO

Cada homem é um mundo, habitado
por seres cegos em obscura rebelião
contra o rei eu que nos governa.
Em cada alma há mil almas prisioneiras,
em cada mundo há mil mundos soterrados
e esses mundos cegos, subterrâneos
são vivos e verdadeiros, ainda que imperfeitos,
tão certos como eu sou real. E nós, reis
e príncipes dos mil possíveis que há em nós,
somos ao mesmo tempo servos, prisioneiros
de algum ser maior, cujo ser e essência
compreendemos tão pouco como o nosso superior
ao seu superior. Da sua morte e do seu amor
se tingiram os nossos próprios sentimentos.

Como quando um enorme navio passa
ao longe, sob o horizonte, onde o mar é
o espelho de entardecer.  – E não sabemos dele
até que chega o seu ondular à praia,
uma onda primeiro, depois outras e muitas mais
que rebentam num murmúrio até que tudo fica
como antes. – No entanto, tudo é diferente.

Assim somos nós, sombras, presas de uma estranha inquietação
quando algo nos diz que viajámos,
que algum dos possíveis foi libertado.

            Färjesång, 1941



Creio no homem solitário,
naquele que caminha solitário,
que não acorre como um cão farejar um homem,
que não foge como um lobo ao farejar um homem:
Ao mesmo tempo homem e anti-homem.

Como alcançar a amizade?
Foge do caminho superior e exterior:
O que é rebanho nos outros é-o também em ti.
Vai pelo caminho inferior e interior:
O que é fundo em ti é-o também nos outros.
É difícil acostumar-nos a nós mesmos.
É difícil desacostumar-nos de nós mesmos.

No entanto o que arrisca jamais se verá desamparado.
No entanto o que o faça continuará a ser um solitário.
O não prático é o único prático
sem medida.

            Färjesång, 1941




EUFORIA

Estou sentado no jardim, só, com o teu caderno de apontamentos, uma
    sanduíche, uma garrafa e o cachimbo.
É de noite e há tal calma que a luz da vela arde sem flamejar,
derrama a sua luz sobre as toscos tábuas da mesa
e brilha na garrafa e no copo.

Tomas um gole, enches o cacimbo e acende-lo.
Escreves uma linha ou duas e fazes uma pausa e contemplas
a franja de clarão vespertino no seu lento caminho até ao clarão
    matutino,
o mar de ramagens, espumando no seu branco verdoso sob a
    incerta luz da noite estival,
nem uma borboleta em torno da luz mas sim coros de mosquitos no carvalho,
as folhas tão imóveis contra o céu… E o álamo range na
    calma:
À tua volta derrama-se a natureza de amor e morte.
Como se fosse a véspera de uma longa viagem, pela noite:
Já tens o bilhete no bolso e por fim fazes as malas.
E podes sentar-te e sentir a proximidade de países longínquos,
sentir como tudo está em tudo, ao mesmo tempo o seu fim e o seu princípio,
sentir que aqui e agora são tanto a tua partida como o teu regresso,
sentir que morte e a vida são tão fortes como o vinho dentro de ti!

Sim, fazer-se um com a noite, um consigo mesmo, como a chama da
    vela
que me olha nos olhos com calma, inescrutável e tranquila,
como o álamo que palpita e sussurra,
um como o bando de flores que assoma da escuridão e
    escutam
algo que tinha na ponta da língua mas nunca consegui dizer,
algo que nunca quis trair ainda que o tivesse podido fazer.
E dentro de mim borbulha a mais pura felicidade!

E a chama ascende… É como se as flores se fossem aproximando, se fossem
aproximando mais e mais da luz, em luminosos ponto de arco-íris.
O álamo estremece rumoroso, o clarão vespertino
    prossegue
e tudo o que era indizível e distante é indizível e próximo.

    Eu canto o único que concilia,
    o único que é prático, igual para todos.

            Färjesång, 1941



NOTA A «DEDICATÓRIA»

Em atenção às exigências estéticas
(que também são as da funcionalidade)
os arquitectos fizeram as nuvens quadradas.
Sobre os bosques desolados estendem-se assim os subúrbios
Por cima das colinas, alinham-se as altas nuvens cúbicas
reflectindo-se profundamente no confiante lago florestal,
imensas filas de janelas vazias
sublinhadas pelo belo néon do pôr do sol.
Ali brincam, em montões de cúmulos piedosamente respeitados,
    saudáveis meninos
(jamais tocados por mãos humanas)
enquanto revoluteiam em volta deles com sombrinhas rotativas
amas municipais severamente remuneradas.
Cada dia se faz noite e assexuados trabalhadores vitaminados
chegam em rebanhos às suas casas, por turnos, segundo convénios colectivos
à sua vida privada, a Svea, a rainha das hormonas,
rigorosamente vigiada por guardas que inspiram segurança.


E faz-se noite e silêncio. Somente o helicóptero do lixo
sussurra devagar de porta em porta
conduzido por um futuro pária, um anarquista e poeta
perpetuamente condenado a retirar toda a pornografia da fantasia.
À distância parece um gigantesco insecto
zunindo perante o grupo de madressilvas rosáceas
por cima, oh, muito por cima dos saudáveis bosques dos
    desportistas
onde não vagabundeará jamais vagabundo algum.


N. do A.: Svea é um nome feminino, comum na Suécia, que deriva do nome da tribo que conquistou a terra que hoje é a Suécia.

            Non serviam, 1945





NON SERVIAM

Sou um estrangeiro neste país
mas este país não é um estrangeiro dentro de mim!
Não me sinto em casa neste país
mas esta país comporta-se como na sua própria casa dentro de mim!

De um sangue que não se pode aguar
tenho nas minhas veias um vaso cheio!

E o judeu, o lapão, o artista que há em mim
sempre procurará a sua consanguinidade: investigar nos registos,
dar uma volta em torno do fetiche lapão no ermo desolado
com uma veneração sem palavras por algo já esquecido,
cantar canções lapónias conta o vento: Selvagem! Negro! –
Lutar e protestar contra a pedra; Judeu! Negro! –
à margem da lei e sob a lei:
prisioneiro na sua, a dos brancos, e no entanto
– bendita seja a minha lei! – na minha.

Converti-me pois num estrangeiro neste país
mas este país instalou-se comodamente dentro de mim!
Não posso viver neste país
mas este país vive como um veneno dentro de mim!

Certa vez, a Suécia selvagem,
a dos instantes breves, suaves, pobres,
sim, foi a minha pátria! Enchia tudo!
Aqui, na estreita e confortável Suécia,
a dos compridos e bem abocanhados instantes
onde tudo está fechado para evitar correntes de ar… tenho frio.

N. do A. Non Serviam: frase latina atribuída a Lucífer como recusa de servir a Deus: ‘não servirei’.

Non serviam, 1945


A PROVA DA ÁGUA

Então disse-me:
Os únicos poetas que me interessam
são os que levam cuidadosamente
com mãos nervosas
um vaso cheio de sangue
em que caiu uma gota de leite
ou um vaso cheio de leite
em que caiu uma gota de sangue…
Agora que já o vi, agora quero ver
a firme captura de um vaso cheio até cima
de água do manancial.

Om hösten, 1951


POÉTICA

É o silêncio o que deves escutar
o silêncio escondido atrás de apóstrofes, alusões
o silêncio na retórica
ou na assim chamada perfeição formal
Isto é a busca de um sem sentido
e vice-versa
E tudo o que com tanta arte tento escrever
é por contraste algo sem arte
e todo o repleto está vazio
O que escrevi
está escrito entre linhas

Opus incertum, 1959



DE «O LIVRO DO SUICÍDIO»

Calma. Basta de palavras duras. Já não resta muito de mim
Não chores por mim. Aqui já não há fogo que apagar
Não me olhes. Sou uma ruína, em qualquer instante derrubar-me-ei
Não quero que ma vejas a derrubar-me
Já não resta sensação alguma do meu eu, do meu peso
Perco o pé, flutuo no ar. Aqui a força da gravidade da terra e
    a do céu anulam-se mutuamente
Já não me resta sensação alguma do que sou e do que não sou
Olho em volta: sou eu este? ou aquele?
Não chores por mim, aqui já não há fogo que apagar
Estou-me a repetir, mas isto que escrevo agora é tudo
    tudo o que tenho
Acaso é culpa minha? Apenas sou uma pedra que alguém atirou,
    um pedaço de madeira que alguém talhou
Desculpo-me. A culpa não é de ninguém, é minha e não de alguém
Escrevo isto lentamente, reflectindo: é tudo o que tenho mas
    não resolve nada
Mas a mim que me importa, eu amo-te
Tu és o meu formoso espelhismo
Lembro o tempo em que tu eras o meu formoso espelhismo
Tu és bela
Quis voar contigo, tal como voam todos, sim, como se foge voando
Mas os dois estávamos doentes e logo acabará tudo
Então, de que serve tudo isto?
Quero-te, logo me derrubarei
Acaso posso evita-lo? Estou a ficar invisível
Faço-te sinais com a mão, tu só vês a minha mão
A porta abre-se. é de noite, tarde
A luz se apaga, dei tudo o que tinha
Não guardei nada com que viver, por isso me estou a tornar
    cada vez mais invisível
Mas não morrerei
Algo fica: uma porta. Que outra coisa posso fazer senão sair de um
    quarto de mim mesmo
Não morro, simplesmente desapareço
Talvez, minha angústia, acorde um dia cheio de sabedoria e dúvida
então voltarei e buscar-te-ei.

Opus incertum, 1959


CONSIDERAMOS, PENSAMOS, SUSPIRAMOS, FALAMOS

Não posso contemplar os países meridionais
sem ver também o burro, o boi e a ovelha
as galinhas presas pelas patas em molhe, abandonadas
em ambos os lados da grelha da motocicleta
com as cabeças para baixo, paralisadas, cacarejando debilmente
o cordeiro com a carcaça aberta e depois cosido
com o espeto metido pelo cu e a dolente cabeça esfolada
sobre o carvão
e com os intestinos, kokorétsi, numa grelha próxima
o branco e manso boi sob o jugo, emparelhado com uma vaca
praticamente infinitos na Toscânia
ao asno gritando como uma porta de celeiro por olear
mas também trotando sob o peso de uma família inteira
ou sob um feixe de ramos grande como o universo
pássaros aos molhos que poderiam ter cheio o espaço com
    a nossa nostalgia
esses seres que nos alimentam, nos vestem, nos transportam
resignados sob nós, talvez perdoando-nos
esses são os verdadeiros cristãos!


N. do A. kokorétsi: em grego no original; kokorétsi é uma espetada de borrego
feitas as fressuras de borrego, preparada tradicionalmente para a Páscoa na Grécia

En natt i Otocăc, 1961



Vivo em virtude desta visão:
Duas torres
Um éden
Quatro caminhos
Uma entrada
Dois mananciais onde olhar-me
Uma fonte de que beber
Dois búzios a que escutar
e a que sussurrar
uma resposta a uma pergunta
que era uma resposta

Como se pudéssemos perguntar
como se pudéssemos sussurrar uma resposta
como se algum de nós perguntando respondendo
quisesse ter a confirmação de algo que não fosse
a imperfeição dos sentidos

No entanto o teu rosto é o jardim das minhas mãos cegas
Os teus seios são torres na sua sensibilidade dessa forma
que separa e une
A ta saída é a minha entrada
Os quatro caminhos são o nosso abraço
com braços e pernas:

Assim seremos oito
No entanto tu és uma deusa, intocada
e eu não sou mais do que um príncipe!

O que vale um príncipe
entre as tuas montanhas?
Um lugar que evitam os caminhantes

Partitur, 1969 póstumo


Versão minha - © Amadeu Baptista


Gunnar Ekelöf (1907-1968) Nasceu em Estocolmo. Estudou línguas orientais em Londres e Upsala, e música em Paris. Participou nas revistas literárias Spektrum e Karavan. Crítico literário de diversos jornais e revistas. Tradutor de T. S. Eliot, Rimbaud, Malraux. Ingressou na Academia sueca em 1958. Considerado um dos maiores poetas suecos do século XX.