sexta-feira, 30 de março de 2012

O Bosque Cintilante # 17

Frederic Chopin: Raindrop Prelude

Mais do que admiração,
surpresa
pela obstinação de encerrar o mundo numa caixa,
sabendo não haver tampa capaz.

Surpresa
também pela insubmissão,
sob um tempo em que todos seriam amestrados,
incapazes de uma extensão do espírito
para além do sofrível.

Adoração,
pelo efectivo exercício do pudor
em que tudo é sensível como uma corda tangida,
uma lágrima desfolhada no limiar do rosto,
um rosto que permanece.


in O Bosque Cintilante,  Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista


quinta-feira, 29 de março de 2012

100 Poemas para Albano Martins


A Antologia de homenagem a Albano Martins '100 Poemas para Albano Martins', vai ser apresentada amanhã,  dia 30, pelas 21horas, no auditório da Fundação Eng. António de Almeida
(rua Tenente Valadim, 325, 4100 Porto).
A apresentação está a cargo do escritor Fernando Guimarães e contará com a presença do homenageado.






Aqui deixo o poema com que colaboro nesta Antologia:




Languesce o ouro nas sombras e os fossos
ampliam-se no terreno. Mas o poeta
dá lastro aos focos de lonjura,
os seus sinais. Nas tábuas reconhece

um deserto de incêndios, um fragor
de rochas e de pântanos. Mas quer, ainda,
recrudescer pelo silêncio amplo, tomar
nas mãos a viva aresta do universo, a mordedura

em que os espaços se perderam,
entre dissipações anil, azuis e violeta.
Os dias da volúpia já estão longe, mas repercute
nas têmporas o que nota, uma zagaia,

um carril infinito, uma vergasta rápida
sobre os que à sua volta estão, desanimados.
Está nu e dança. E sabe que as vozes
se reconhecem ao longe, sendo de homens.

Diz que tem fome e partem-lhe os dentes.
Diz que tem frio e tocam-lhe o fogo.
Mas, ainda assim, escreve – escreve sempre.
E sabe que o mundo há-de escutá-lo.

E assim compõe o desgarrado rumo
dos seus versos: clâmide, esterno, punho,
enquanto a luz penetra o rombo da muralha
e, inquietando tudo, tudo ilumina.



© de Amadeu Baptista

quarta-feira, 28 de março de 2012

O Bosque Cintilante # 16

Charles Gounod: Faust Waltz

Dei comigo nesse instante
a dizer de mim para mim
que o abandono era o humilde
sinal, o último sinal.

Vozes sobre a minha cabeça
transfiguravam os anjos
e vi como à minha frente
algo seguia, ainda.

Não era a luz, sequer.
Sequer uma sombra perdida
entre as mil sombras do caminho,
ou um rosto perdido na multidão.

Algo aterrador e magnífico
estava nesse lugar
a que acedia o corpo
para que sobrevivesse a alma.

E ouvi:    Vem e segue-me!

Não era a solidão o abandono
mas uma voz inquieta
na estrela cadente.


in O Bosque Cintilante,  Maia, Cosmoroama, 2008


terça-feira, 27 de março de 2012

Henrique Manuel Bento Fialho


Henrique Manuel Bento Fialho, poeta convidado


3 POEMAS INÉDITOS


LUME BRANDO

1. (28.5.07)

Que nos prende a este lugar de sol
onde nada brilha? Estrelas cadentes,
arrastamos a sombra pela terra
das paredes, ocultamos os anseios
de quem segue para um fim certo
com meios pouco mais que inseguros.

Este lugar que habitamos, lugar
precário, este lugar lodoso, lamaçal
sombrio, este pântano de arbustos
falantes, com ossos e carne e sangue,
este lugar medonho é uma casa
difamante. Entramos nela como quem
entra no estômago de um animal
enorme, mitológico. Vamos ficando,
ora dormindo, ora lúcidos, vamos
ficando neste lugar de sol onde nada
brilha. À espera, talvez, que um dia
a terra se transforme num céu
onde possamos exibir a nossa rude
e insustentável luminosidade.

Mas sabemos improvável esse dia.
Por isso recolhemos os corpos
para dentro de uma respiração ímpar,
acordamos ao lado do desejo,
de mãos vazias, e sonhamos. Por isso
erguemos os corpos da cama
para mais uma hora anafada de medo,
para mais um dia de solidão, único
sol que ainda brilha neste lugar.





2. (17.5.07)

Cuidado ao entrares neste poema,
ele é frágil como uma encomenda,
circula nele como se estivesses
numa loja de cristais com bonecas
de porcelana. Cuidado, não partas
um dos seus ângulos mais voláteis,
é que este é um poema escrito
na hora de ir à piscina, em mariposa,
a saltar por cima do lava-pés
para não sujar as solas dos sapatos.
Este é um mergulho sem prancha,
assim muito à maneira de quem
abre minis pretas com os dentes,
olha as varinas no passeio e assobia:
desse-me Deus um tanque destes…






3. (9.5.07)

Àqueles que vingam em lume brando,
com ódios de surdina improvisados,
e seguem pela calada da vingança
até ao cume dos seus próprios tremores,
eu digo: olha que coisa mais linda, mais
cheia de graça; ou, em alternativa,
faço voz grossa e canto: I see skies of blue
and clouds of white, The bright blessed day,
the dark sacred night. Se não entenderem,
então sim, ocupo-me das feridas,
limpo docilmente o corte, sopro no ardor
a ver se faz chama e brasa suficientes
para grelhar no corpo a alminha sem sal.




Fotos:  ilustração dos poemas: © de Amadeu Baptista


Henrique Manuel Bento Fialho nasceu no dia 20 de Novembro de 1974. É licenciado em Filosofia. Trabalha, desde o Natal de 2008, como livreiro. Mantém o weblog Antologia do Esquecimento. Publicou vários livros, dos quais não destaca nenhum. Tem no prelo um caderno intitulado «Rogil», a ser publicado pela editora Volta d’Mar. Palavras suas vão sendo semeadas por diversas antologias e revistas. Não está preocupado com o futuro.

segunda-feira, 26 de março de 2012

O Bosque Cintilante # 15

Felix Mendelssohn: Liede ohne Worte

A autonomia do efémero é um destino preciso.
Bastará não deixar de passar os dedos
no tronco das árvores e o mundo constituirá
um rumo inevitável e exacto,

ainda que uma engrenagem, uma rosa.
Ou um seixo polido.
Pode o rosto esconder-se nesse instante,
pode augurar a floração e o mistério,

mas existe para além do momento
e é muito mais que a expansão da brancura.
Se lhe chamássemos pedra
de nada serviria a pedra

e o imparável movimento que contém,
de nada serviriam os regatos e a multidão de homens
que codificam as sombras
e se afastam de casa.

Dentro de nós não há melodia.
Só o efémero.


in O Bosque Cintilante,  Maia, Cosmoroama, 2008


domingo, 25 de março de 2012

O Bosque Cintilante # 14

Antonio Vivaldi: Allegro, do Concerto para flauta em ré maior " IL Gardellino "

Este sol nocturno que nos vigia, que nem sequer vigia,
apenas comparece visível e invisível para celebrar
todos os acontecimentos, os que festejam
as núpcias de algo fundamental e vermelho que está solto
na vida, está solto no indescritível mistério
de alguém tomar o nosso lugar no grande círculo
da respiração comum e embelezar o esplendor e o tumulto
porque pouco possui,
nada deve possuir,
apenas uma ideia remota, além do encantamento,
a grata recordação de ter sido esse o fascínio
primitivo,
o friso onde gravámos o sonho, a ânfora onde guardámos
a sombra,
a escuridão, o brilho, a corola que a treva engendrou
para celebrar a eternidade,
insolúvel como um sobressalto,
incontornável como a vida que há-de vir,
eficaz como a fogueira no fluxo da noite.


in O Bosque Cintilante,  Maia, Cosmoroama, 2008

sábado, 24 de março de 2012

O Bosque Cintilante # 13

Ludwig van Beethoven: Minueto em sol maior

Escuta, toca a terra, recebe do fascínio
o que é imperceptível e momentaneamente
é nítido e perfeito, sob a leveza
surge para que algo renasça, vivifique, avance.

Atende a esta cadência, o golpe subtil
e infinito, reconhece
como há um espelho entre os lugares
por onde já passaste e se revela
agora novo neste lento espectro.

Adere ao que conheces e ignoras.
A música da sombra e do prodígio.


in O Bosque Cintilante,  Maia, Cosmoroama, 2008

sexta-feira, 23 de março de 2012

O Bosque Cintilante # 12

Edvard Grieg: Dança de Anitra, de Peer Gynt

Estou perdido entre uma sombra
e uma amendoeira,
mas estar perdido não significa
não reconhecer a beleza do que passa
no instante em que passas
ou estar mais próximo da desolação
neste vestígio antiquíssimo da desolação.

A sombra de que falo
vem de um lugar onde o coração
está próximo,
de um lugar onde a inocência pulsa ainda
sob a terra,
de um lugar onde os lábios pronunciam
a subtileza de um nome
com o teu nome.

Porque tu és essa ave
que o vento reconhece e agita
o coração,
a árvore branca e poderosa
a que os pássaros regressam,
a árvore que cintila na escuridão
e pelo subtil estremecimento da noite é o último refúgio
de quem se encontra perdido
entre uma sombra e uma amendoeira
com o teu nome,
algures no mundo,
neste vestígio antiquíssimo da desolação.


in O Bosque Cintilante,  Maia, Cosmoroama, 2008

quinta-feira, 22 de março de 2012

Tonino Guerra, 1921 - 2012




CANTO NONO


Terá chovido durante cem dias e a água infiltrada
pelas raízes das ervas
chegou à biblioteca banhando as palavras santas
guardadas no convento.

Quando tornou o bom tempo,
Sajat-Novà o frade mais jovem
levou os livros todos por uma escada até ao telhado
e abriu-os ao sol para que o ar quente
enxugasse o papel molhado.

Um mês de boa estação passou
e o frade de joelhos no claustro
esperava dos livros um sinal de vida.
Uma manhã finalmente as páginas começaram
a ondular ligeiras no sopro do vento
parecia que tinha chegado um enxame aos telhados
e ele chorava porque os livros falavam.

in O Mel Assírio e Alvim, 2004 (tradução de Mário Rui de Oliveira)

Greve Geral

quarta-feira, 21 de março de 2012

Dia Mundial da Poesia

APONTAMENTO, ENTRE AS PÁGINAS
DE UM LIVRO DE JORGE DE SENA

Bem mais que a expressão do inefável
seja a expressão do amor a poesia.
Mais longe ainda que o silêncio denso
onde tudo se amplia e se concentra,
seja o amor a expressão mais simples
do que se escreve e passa para o mundo
como mais nítida transparência entre os sinais
que nos entregaram um dia e soubemos
guardar inexoravelmente. Pode o vazio
vir despedaçar-nos, encher-se o coração
de solidão, enegrecer-se a alma
de não haver sentido, desesperar-se
o espírito por não ouvir o anjo,
seja a expressão do amor a poesia.
Onde quer que estejamos há-de estar o indizível,
mas não menos insondável há-de ser o nosso nome
se entre o infinito em que estivermos
for a expressão do amor a poesia.
Bem mais que a expressão do inefável
seja a expressão do amor a poesia.


in Desenho de Luzes,  Cadernos de Azertyuop. Corunha, Espanha, 1997



Foto: © de Amadeu Baptista

terça-feira, 20 de março de 2012

Urbano Bettencourt


Urbano Bettencourt, poeta convidado


3 POEMAS

Poema  por receita
A economia do lirismo
(diferente dos  lirismos
da economia)
dirá  dos materiais
e do seu uso  a justa medida,
as proporções da mistura,
o tempo de confecção
(nove anos, dizia   Horácio
muito antes ainda 
do fast food e do take away).
A patella, por exemplo,
trazida por Lineu  ao cardápio
do poema,  rimaria bem com aguarela
(fosse  eu o Cesário!)
ou  com a panela em que a mão  experiente
do escrevente
lhe juntasse   o sal, a salsa, o alho
a cebola e  a pimenta
para um vulgar poema de lapas com molho Afonso.  
Da cozedura em lume brando nada se dirá,
porquanto em brando lume se consome quem estas palavras
escreve tão longe das coisas e dos seus cheiros
e a quem sobra apenas o ofício de poeta receituário
e os despojos de um poema laparoso.

(Porto, Agosto de 2011)



Antero
                                                                    Para  Valentinous Velhinho
O reino que  procuro é perdido
e vago, sombra de um sonho inquieto
em que me invento e me desfaço.
Ilhas que foram minhas, as despeço

por sobra de matéria e de concreto
— estorvo de lava, sal, um sol finito
ferindo o puro brilho da Ideia.
Ao rosto que desenho sobre o vidro

responde um outro de perfil incerto,
anjo, demónio, cavaleiro ou morte.
E, neste jogo a que me entrego e lanço,

um fogo me consome em seu amplexo:
fosse eu como os demais, suor e sangue
e sexo!


Amanhã não farei
Amanhã farei vinte e cinco anos
Valentinous Velhinho

Amanhã não farei vinte e cinco anos
nem mesmo os trinta e sete que o Vadinho
celebrou com música russa
e açoriana também, à  luz de um bolo
crioulo.
Amanhã ter-me-ei por certo abandonado
ao vagar dos dias
e apenas pedirei o dom de uma soleira
longe das cidades, na Calheta
ou num Calhau qualquer:
aí me será revelado, espero,
o mistério das marés e das sementes
e medirei com os braços a idade
dos montes;
aí aguardarei que Zaratustra
ressurja do pó dos caminhos
e beba da minha água antes de anunciar
a  morte de Caeiro por melancolia
incurável.



Fotos: do A. © Sara Bettencourt;  ilustração dos poemas: © de Amadeu Baptista

Urbano Bettencourt, (Piedade, ilha do Pico, 1949). Licenciado em Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa.  Lecciona  na Universidade  dos Açores desde 1990. Tem  dedicado particular atenção às literaturas insulares, sobre as quais já proferiu conferências  em Cabo Verde, Madeira, Canárias e Açores. Colaboração   em revistas da especialidade, no país e no estrangeiro.  Poesia e narrativa:   Raiz de Mágoa (1972); Marinheiro com residência fixa  (1980);   Naufrágios Inscrições (1987); Algumas das Cidades (1995); Lugares  sombras e afectos (2005);  Santo Amaro Sobre o Mar  (2005; 2.ª ed, 2009); Antero (2006); Que paisagem apagarás (2010) . Ensaio:  O Gosto das Palavras, 3 vols. (1983, 1995, 1999); Emigração e Literatura (1989); De Cabo Verde aos Açores – à luz da «Claridade  (1998); Ilhas conforme as circunstâncias (2003).


segunda-feira, 19 de março de 2012

João Rui de Sousa

João Rui de Sousa


A Associação Portuguesa de Escritores acaba de atribuir o prémio Vida Literária a João Rui de Sousa. Este prémio, atribuído a cada dois anos, no valor de 25.000 Euros, visa a consagração de autores portugueses. tendo sido, em edições anteriores, já atribuído a  José Saramago, Miguel Torga, Sophia de Mello Breyner Andersen e Eugénio de Andrade.

João Rui de Sousa é um poeta português nascido a 12 de outubro de 1928, em Lisboa. Tirou o curso da escola agrícola D. Dinis e fez a licenciatura em Ciências Histórico-Filosóficas na Faculdade de Letras de Lisboa. Desenvolveu atividade profissional na Biblioteca Nacional, foi membro do Centro Português da Associação Internacional de Críticos Literários e júri de diversos prémios de poesia. Colaborou com crítica literária e criação poética em inúmeras publicações, entre as quais Colóquio/Letras, JL, O Tempo e o Modo, Seara Nova, Crítica, Folhas de Poesia, Bandarra, Cronos, Nova Renascença, entre outras. Co-dirigiu, em 1955, com António Carlos, António Ramos Rosa, José Bento e José Terra, a revista Cassiopeia. Embora a estreia em livro date de 1960, com Circulação, a sua revelação poética deu-se na década anterior, nas páginas de Cassiopeia, Cadernos do Meio-Dia e Notícias do Bloqueio, integrando uma geração poética que assimila e supera as estéticas surrealista e neorrealista e que tende para recusar todo o tipo de tentação de facilidade, seja a nível rítmico, seja a nível da expressão imagética, vocacionando-se para a fixação do real num enquadramento de reflexão ontológica. (Fonte: infopédia).

Ao poeta e amigo fica o abraço de parabéns.

 
 

O Bosque Cintilante # 11

Johann Sebastian Bach: Largo, do Duplo concerto em ré menor

Não toquei o vento, vi-o
ungir as árvores cor de salmão
onde os caminhos se bifurcam
e um animal regride para dentro do céu
num uivo lento,
selvaticamente aterrador.
Uma vez que o vi, posso afirmar
que é como um líquido,
distinguindo-se espessamente entre as casas
em que reluz o oiro,
em que reluz o oiro e anoitece como alguém
que se emociona
e não pode conter as lágrimas,
não pode estancar o coração.
O vento é mais pesado e muitíssimo mais frágil
que o ar, vi-o em Eisenach
e foi como se visse uma criança a nascer,
uma mulher a modelar o barro, suspensa do tempo,
com as mãos carregadas de giz.
Não o toquei, vi-o
para que a cegueira chegasse mais cedo,
para que todas as coisas pudessem ampliar-se
no perigo desconhecido que recompensa e protege.


in O Bosque Cintilante,  Maia, Cosmoroama, 2008

domingo, 18 de março de 2012

O Bosque Cintilante # 10

Franz Schubert: Marcha Militar

Pediram-me uma marcha militar
e escrevi isto.
Parece ignóbil, mas preciso de viver
(e esta foi a única encomenda em muitos meses).
Eu penso, no entanto: esta música, de militar tem pouco.
Os que nela desfilam são soldadinhos de chumbo
para melómanos,
que marcham ordeira, mas puerilmente:
jamais deram um tiro
e a única coisa que mataram
foi a fome de um compositor,
por acaso austríaco,
por acaso desinteressado do império militar
da Áustria triunfante.


in O Bosque Cintilante,  Maia, Cosmoroama, 2008


sábado, 17 de março de 2012

O Bosque Cintilante # 9

Enrique Granados: Intermezzo, de Goyesca

Durante a vida andamos à procura
de uma clareira onde esteja à nossa espera
uma cama de feno onde o corpo possa repousar.

Subimos a inúmeros atalhos, perscrutamos
horizontes, escalamos montanhas, procuramos
incessantemente
essa clareira e essa cama de feno,
talvez inexistente,
possivelmente única.

Há um momento em que damos connosco
a observar a mulher que nos acompanha
e tem ao pescoço o lencinho lilás
que representa o sinal dessa busca incessante.

É cálido e azul o céu por essa hora
e sequer suspeitamos que a paz se encontra perto
e vem ao nosso encontro.

Depois, subitamente, uma entidade aproxima-se de nós
sob a forma de uma explosão iminente
e mostra-nos, no fundo do mar,
a clareira e a cama de feno que tanto procuramos.

E tudo faz sentido, então, na nossa morte.

E sabemos que a vida pouco vale.


in O Bosque Cintilante,  Maia, Cosmoroama, 2008

sexta-feira, 16 de março de 2012

O Bosque Cintilante # 8

Jean Sibelius: Valse Triste

Um modo de chegar à vida: descalço e sem repouso.
Outro ainda: com um súbito movimento de roda a sitiar
o corpo, um repentino sentimento de desprotecção, as mãos
afogadas numa faixa de linho que mais do que aquecer
evidencia apenas a orfandade de só nos submetermos
por algo frágil que nos toca a garganta e espessamente rebenta
num grito que incendeia o rastilho de raiva
com que assomamos ao mundo, uma claridade pesada
para os olhos de quem ainda não vê e se chegar a ver
há-de tolher ainda mais o poder perscrutador, essa cegueira
da terra. Por isso, o recolhimento, esta incerteza fundadora
para um futuro avassalador nas estradas precárias
do destino, o modo soleníssimo de nos entregarmos ao pranto.


in O Bosque Cintilante,  Maia, Cosmoroama, 2008


quinta-feira, 15 de março de 2012

O Bosque Cintilante # 7

Sergey Prokofiev: Marcha, de Amor das Três Laranjas

Alguém plantou a aveleira no horizonte dos meus dias.
Provavelmente Deus existe após toda esta ausência.
Quem sabe é Ele mesmo este vento da tarde.
O mar saúda-me e revela-me segredos.

Confesso o meu fascínio por este brilho intenso.
Sentámo-nos sob árvores de aspecto tão sereno.
Alguns dias da infância conduziram-me ao sol.
Por alguma coisa escrevo: a alegria existe.

De onde vim a luz estava ensombrecida.
Por dúvidas e enganos a vida às vezes cansa.
Só os seres peregrinos procuram a passagem.

Esta aveleira designa uma promessa.
Quando estava triste erguia-me ao mistério.
É tarde e sempre cedo porque esta árvore canta.


in O Bosque Cintilante,  Maia, Cosmoroama, 2008


quarta-feira, 14 de março de 2012

O Bosque Cintilante # 6

Michael Glinka: Ruslan e Ludmila, abertura

Penso em todos que procuram uma linguagem
e ignoram que não há triunfo. Dos ventos da estepe
não mais guardei que esta apoteose de tudo ignorar
e o simples contentamento de me saber perdido
para além de todas as coisas e todos os lugares.
Assim, nada mais pude que perseguir o amor
sem que alguma vez tivesse visto o amor
nos dias dos meus dias,
esse mistério que onde quer que exista
há-de ser maior que a força desta música
onde além de um encontro se esconde uma partida
que ao encontro esconde a alba da partida.


in O Bosque Cintilante,  Maia, Cosmoroama, 2008


segunda-feira, 12 de março de 2012

José Félix Duque


José Félix Duque, poeta convidado




3 POEMAS




Dizem-lhe – 
ó Duque
Andas outra vez místico? canta agora se queres cantar, 
Canta-nos uma dessas tuas canções Longas líricas Ridículas, 
Uma canção que te faça andar por entre nós com um corpo a sair do tempo 
Um corpo que se pensa imorredouro. 
Anda por entre nós Imediato e canta 
Uma canção que seja dessas que cantas, 
          Longas Líricas Ridículas loucas 
Enquanto nós ficamos aqui a olhar para ti
Para nos rirmos à gargalhada
E virarmos as costas
     antes mesmo de te mandarmos para dentro.


Fragmento de Super Flumina Babylonis, no Contador, de Domingos Fernandes Leitão (inédito)







Para ti 

O meu canto cantado sobre as ginjeiras 
O meu canto cantado sobre os salgueiros 
O meu canto cantado sobre os rios 
O meu canto cantado sobre o castelo 
O meu canto cantado Já fora do exílio!
Canto com as harpas e as liras todas
Canto com as mãos a esmagar até ao caroço
Canto com força
                           Pulsante
                                      Toante
                                               Bastante
Ah leitor!
Um só leitor basta-me para isto
Eu tenho os teus olhos a ler-me –
Não há maior libertação –
                                           Vamos, 
                                Ergamos 
                                        o copo! 
                              O Poema vai adiante, 
                ei-lo a levantar-se dos depósitos, 
        soltando os canais da espremedura, 
                abrindo as comportas da adega 
Ei-lo a quebrar a laje que fica à esquina da vinha dos mortos, 
Ei-lo sentado à mesa deste café, 
Ou à porta da biblioteca, 
Ou à porta da livraria
Depois de ter encontrado a pequena estante dos versos
(Não desistas,
Talvez estejam arrumados na última secção da Literatura Estrangeira)
Ei-lo que rejubila por ter descoberto um novo poeta
Ei-lo que sai inquieto com os clássicos e os Neo-Não-Sei-Quantos,
Em busca de um assento para logo abrir cada volume
Para logo ler, para logo devorar –
Ah, o cheiro dos cadernos! O cheiro do papel e da tinta!
Ah, o odor de Santidade o cheiro dos céus, 
Corações ao alto!
Corações ao alto!


Fragmento de Super Flumina Babylonis, no Contador, de Domingos Fernandes Leitão (inédito)








Sic transit gloria mundi 

      Esqueceres-te de quem sou, 
e mais ainda de Quem Fui – do Sonho, do meu combate.
Da minha cabeça em agonia
Que já pouco vai recordando.
Esqueceres-te totalmente do que tenho escrito.
E também do que tenho lido.
Isso – profunda tristeza, não haver Fama
Nem glória.
Assim – Profunda, não teres memória 
de mim
Não ergueres monumentos [nem sequer os mortuários]
Não veres o meu nome inscrito na madeira dos cedros.
Não saberes, Pois
Do que vivo
                 Do que penso
                                     Do que sinto – 
Cair doente e miserável
Na corrupção do livro – 
Capítulo a capítulo, 
               Arrojado ao pó.
Ali – capitulando no fosso da Literatura.
        Primeiro o miolo carcomido,
Depois,
Ah depois a capa, a lombada 
A armadura
A espada 
e tudo o mais que houver.
Nada restando do original
Nada ficando das muitas versões que ele teve. 
[Talvez ainda tenhas piedade
Lendo-me dois versos de algum poeta (aclamado ou derrotado, 
Tanto me faz, desde que o seja)
Enquanto eu morro na minha esplêndida cama de campanha]


In Contador, de Domingos Fernandes Leitão (inédito)




Fotos ilustração dos poemas: © de Amadeu Baptista


José Félix Duque nasceu a 29 de Abril de 1975. Publicou Canções para os meus filhos mortos (Cosmorama, 2005) e Quando mais luz (Cosmorama, 2006), bem como vários poemas dispersos por antologias e revistas, alguns traduzidos para inglês e francês. Organizou, com Alexandre Nave e Pedro Sena-Lino, a antologia O livro de Natércia (Quasi, 2006). Tem por publicar os livros Salvator Mundi e Contador, este último sob o nome do seu oitavo-avô Domingos Fernandes Leitão, o Moço (1602-1680).