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segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Vitor Silva Tavares


Morreu o meu amigo Vitor Silva Tavares e estou muito triste.






Vitor Silva Tavares, 1937 - 2015

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Ana Hatherly (8 de Maio de 1929 – 5 de Agosto de 2015)



Um poema de Ana Hatherly




Esta Gente / Essa Gente


O que é preciso é gente
gente com dente
gente que tenha dente
que mostre o dente

Gente que não seja decente
nem docente
nem docemente
nem delicodocemente

Gente com mente
com sã mente
que sinta que não mente
que sinta o dente são e a mente

Gente que enterre o dente
que fira de unha  dente
e mostre o dente potente
ao prepotente

O que é preciso é gente
que atire fora com essa gente

Essa gente dominada por essa gente
não sente como a gente
não quer ser dominada por gente

NENHUMA!

A gente
só é dominada por essa gente
quando não sabe que é gente

(in Calculador de Improbabilidades)

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

MANOEL DE BARROS 1916 - 2014




O livro sobre nada

É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez.
Tudo que não invento é falso.
Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.
Tem mais presença em mim o que me falta.
Melhor jeito que achei pra me conhecer foi fazendo o contrário.
Sou muito preparado de conflitos.
Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou.
O meu amanhecer vai ser de noite.
Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção.
O que sustenta a encantação de um verso (além do ritmo) é o ilogismo.
Meu avesso é mais visível do que um poste.
Sábio é o que adivinha.
Para ter mais certezas tenho que me saber de imperfeições.
A inércia é meu ato principal.
Não saio de dentro de mim nem pra pescar.
Sabedoria pode ser que seja estar uma árvore.
Estilo é um modelo anormal de expressão: é estigma.
Peixe não tem honras nem horizontes.
Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas quando não desejo contar nada, faço poesia.
Eu queria ser lido pelas pedras.
As palavras me escondem sem cuidado.
Aonde eu não estou as palavras me acham.
Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.
Uma palavra abriu o roupão pra mim. Ela deseja que eu a seja.
A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.
Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos.
Esta tarefa de cessar é que puxa minhas frases para antes de mim.
Ateu é uma pessoa capaz de provar cientificamente que não é nada. Só se compara aos santos. Os santos querem ser os vermes de Deus.
Melhor para chegar a nada é descobrir a verdade.
O artista é erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito.
Por pudor sou impuro.
O branco me corrompe.
Não gosto de palavra acostumada.
A minha diferença é sempre menos.
Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria.
Não preciso do fim para chegar.
Do lugar onde estou já fui embora.


O apanhador de desperdícios

Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.


Retrato do artista quando coisa

A maior riqueza
do homem
é sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado.
Palavras que me aceitam
como sou
— eu não aceito.
Não aguento ser apenas
um sujeito que abre
portas, que puxa
válvulas, que olha o
relógio, que compra pão
às 6 da tarde, que vai
lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.
Eu penso
renovar o homem
usando borboletas.



Tratado geral das grandezas do ínfimo

A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.



Os deslimites da palavra

Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu
destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas


Aprendimentos

O filósofo Kierkegaard me ensinou que cultura
é o caminho que o homem percorre para se conhecer.
Sócrates fez o seu caminho de cultura e ao fim
falou que só sabia que não sabia de nada.
Não tinha as certezas científicas. Mas que aprendera coisas
di-menor com a natureza. Aprendeu que as folhas
das árvores servem para nos ensinar a cair sem
alardes. Disse que fosse ele caracol vegetado
sobre pedras, ele iria gostar. Iria certamente
aprender o idioma que as rãs falam com as águas
e ia conversar com as rãs.
E gostasse mais de ensinar que a exuberância maior está nos insetos
do que nas paisagens. Seu rosto tinha um lado de
ave. Por isso ele podia conhecer todos os pássaros
do mundo pelo coração de seus cantos. Estudara
nos livros demais. Porém aprendia melhor no ver,
no ouvir, no pegar, no provar e no cheirar.
Chegou por vezes de alcançar o sotaque das origens.
Se admirava de como um grilo sozinho, um só pequeno
grilo, podia desmontar os silêncios de uma noite!
Eu vivi antigamente com Sócrates, Platão, Aristóteles —
esse pessoal.
Eles falavam nas aulas: Quem se aproxima das origens se renova.
Píndaro falava pra mim que usava todos os fósseis linguísticos que
achava para renovar sua poesia. Os mestres pregavam
que o fascínio poético vem das raízes da fala.
Sócrates falava que as expressões mais eróticas
são donzelas. E que a Beleza se explica melhor
por não haver razão nenhuma nela. O que mais eu sei
sobre Sócrates é que ele viveu uma ascese de mosca.


O menino que carregava água na peneira

Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e
sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo
que catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces
de uma casa sobre orvalhos.
A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio, do que do cheio.
Falava que vazios são maiores e até infinitos.
Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito,
porque gostava de carregar água na peneira.
Com o tempo descobriu que
escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu
que era capaz de ser noviça,
monge ou mendigo ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor.
A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os vazios
com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!

domingo, 27 de abril de 2014

Vasco Graça Moura 1942-2014







UM POEMA DE VASCO GRAÇA MOURA


AUTO-RETRATO COM A MUSA






1.


vejo-me ao espelho: a cara
severa dos sessenta,
alguns cabelos brancos,
os óculos por vezes
já mais embaciados.

sobrancelhas espessas,
nariz nem muito ou pouco,
sinal na face esquerda, 
golpe breve no queixo
(andanças da gilette).

ia a passar fumando 
mais uma cigarrilha
medindo em tempo e cinza 
coisas atrás de mim.
que coisas? tantas coisas,

palavras e objectos,
sentimentos, paisagens.
também pessoas, claro,
e desfocagens, tudo
o que assim se mistUra

e se entrevê no espelho, 
tingindo as suas águas 
de um dúbio maneirismo 
a que hoje cedo. e fico 
feito de tinta e feio.


2


quem amo o que é que pode 
fazer deste retrato?
nem sabê-lo de cor,
nem tê-lo encaixilhado, 
nem guardá-lo num livro,

nem rasgá-lo ou queimá-lo, 
mas pode pôr-se ao lado 
e ter prazer ou pena
por nos achar parecidos 
ou não achar. quem amo

não fica desenhado,
fica dentro de mim
e é quando mais me apago 
e deixo de me ver
e apenas me confundo,

amador transformado 
na própria coisa amada 
por muito imaginar. 
assim nem john ashberry, 
nem o parmegianino,

nem espelho convexo, 
nem mesmo auto-retrato. 
só uma sombra que é 
na sombra de quem amo 
provavelmente a minha.


3


quem amo tem cabelos
castanhos e castanhos
os olhos, o nariz
direito, a boca doce.
em mais ninguém conheço

tal porte do pescoço
nem tão esguias mãos
com aro de safira,
nem tanta luz tão húmida
que sai do seu olhar,

nem riso tão contente,
contido e comovente,
nem tão discretos gestos,
nem corpo tão macio
quem amo tem feições

de uma beleza grave
e música na alma
flutua nas volutas
de um madrigal antigo
em ondas de ternura.

é quando eu sinto a musa
pousando no meu ombro
sua cabeça, assim
me enredo horas a fio
e fico a magicar.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Gabriel Garcia Marquez 1927-2014



'Yo creo que todavia no es demasiado tarde para construir una utopia que nos permita compartir la tierra'

Gabriel Garcia Marquez

sábado, 5 de abril de 2014

Jorge Fallorca 1949-2014

Um poema meu, como simples homenagem a Jorge Fallorca:




UM POEMA PARA JORGE FALLORCA, UM DIA APÓS O SEU DESAPARECIMENTO

Na adolescência o Fallorca era-me um nome estranho
Que eu gostava de ler em poemas e outras dádivas
Incorpóreas que vinham a lume nessa folha
Perversa que já antes do 25 de Abril se publicava
Na rua da Emenda, Subterrâneo 3. O Fallorca era um ser
Magro, quase diáfano, de grande generosidade,
Se é que o silêncio pode ser, alguma vez, generoso,
Que deambulava entre Salgueirais e Lisboa,
Ao contrário de mim, que sempre fui tendo peso a mais,
Sempre fumei até ao apodrecimento e do Alentejo apenas
Gostaria de ter uma mais ampla consciência da bênção
Que me foi dada, ainda que, até agora, a não tivesse
Notado nestes dias permanentes do exílio. Mais tarde,
Ainda que estivéssemos sempre longe um do outro,
Procurámos besouros na planície, habitámos regiões
Onde não era proibido arregimentar flores, perdemo-nos
Na sacrossanta via do envelhecimento e da solidão,
Como instrumentos de pesca, ou de caça, que se têm à mão
Para o que der e vier, mas a que só se dá um uso benigno
Por entrega voluntária. Dizem que apodrecemos
Quando partimos.  Nada mais errado.
O enervamento é um sinal de que a putrefacção
Nunca deixa de funcionar, tal como o assombro
Que o rio Eurotas me provocou quando o vi pela primeira vez,
Por evocação de Helena, a deusa que não cessa e vou perseguindo
Como posso desde que me conheço e encontrei na Grécia
A minha última consolação, o último reduto, essa líquida
Certeza que faz do esquecimento um lancil onde repousar
A cabeça. Com a partida do Fallorca fico mais pobre,
Seja lá o que for a pobreza por alguém ter partido
Depois de ter tomado a vida à colherada, longe, mas perto
Do mundo. Ah, raios partam, nunca mais acaba a chuva
deste Inverno infinito.

© do poema e da foto: Amadeu Baptista




quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Juan Gelmam 1930 - 2014



                                                      UM POEMA DE JUAN GELMAN




MINHA BUENOS AIRES QUERIDA

Sentado no bordo de uma cadeira sem assento
mareado, doente, quase vivo,
escrevo versos previamente chorados
pela cidade em que nasci.
Há que capturá-los, também aqui
nasceram filhos doces meus
que entre tanto castigo te dulcificam belamente.
Há que aprender a resistir.
Nem a ir nem a ficar,
a resistir,
ainda que seja certo
que haverá mais penas e esquecimento.


Versão minha - © Amadeu Baptista






sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Nelson Mandela 1918-2013




INVICTUS


Out of the night that covers me,
Black as the pit from pole to pole,
I thank whatever gods may be
For my unconquerable soul.

In the fell clutch of circumstance
I have not winced nor cried aloud.
Under the bludgeonings of chance
My head is bloody, but unbowed.

Beyond this place of wrath and tears
Looms but the horror of the shade,
And yet the menace of the years
Finds and shall find me unafraid.

It matters not how strait the gate,
How charged with punishments the scroll,
I am the master of my fate:
I am the captain of my soul.

W. E. Henley (1875)

terça-feira, 24 de setembro de 2013

António Ramos Rosa 1924-2013



NÃO POSSO ADIAR O AMOR


Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o rneu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

(in Viagem Através de Uma Nebulosa)

sábado, 31 de agosto de 2013

Seamus Heaney, 1939-2013



                                                     

I was four but I turned four hundred maybe
Encountering the ancient dampish feel
Of a clay floor. Maybe four thousand even.
Anyhow, there it was. Milk poured for cats
In a rank puddle-place, splash-darkened mould
Around the terra cotta water-crock
Ground of being. Body’s deep obedience
To all its shifting tenses. A half-door
Opening directly into starlight.
Out of that earth house I inherited
A stack of singular, cold memory-weights
To load me, hand and foot, in the scale of things.


sábado, 23 de março de 2013

ÓSCAR LOPES, 1917 - 2013

«Eu sei que não sou Napoleão, nem talvez doido, nem crítico, nem ensaísta, nem mesmo essencialmente professor, linguista ou político, assim como nunca me revejo, num estilo ou numa visão pessoal do mundo, a não ser pelas limitações ou pontos mortos a que se sujeita tudo aquilo a que temos o ensejo e a gana de fazer algum dia. Não confio em qualquer título de auto-reconhecimento, porque tanto as nossas imagens a um espelho polido como as nossas imagens que os olhos alheios nos devolvem estão, não apenas erradas na sua simetria axial, mas medusadas pelo reflexo inverso do nosso próprio olhar que fita, e fixa, essas imagens.
Nunca me senti a fazer crítica: apenas se trata de obedecer a uns impulsos, sempre complicados e em conflito, no sentido de continuar, de algum modo, os movimentos também conflituais de que um texto é feito, ou de que mais evidentemente participa. Não faço linguística: trata-se apenas de, com a mais rigorosa metodologia disponível, reflectir sobre certos gestos do nosso espontâneo modo de falar, gestos que têm que ver com relações especiais de tempo, de atitude e de referência da comunicação social possível. Também não sou político por vocação: apenas nasci num povo em que a luta de classes só não será evidente para uma certa cegueira de espírito, e comungo de uma nação periodicamente renegada por classes dirigentes, que há precisamente seis séculos ardiam em fidelidade dinástica castelhana, há quatro séculos se queriam integrar no grande império pluricontinental dos Habsburgos, e que hoje se pretendem entusiasmados por uma Europa problemática, uma Europa muito diferente daquela que, no Canto III d'Os Lusíadas, avança, em 15 estrofes, desde os Urales até «onde a terra acaba e o mar começa», ao passo que a nova Europa, a que afinal ainda não pertencíamos detém-se no Oder e ainda parece ter a capital militar no Pentágono.»

[excerto da alocução na entrega do Prémio Jacinto do Prado Coelho (1984), atribuída pela Associação de Críticos Literários em Maio de 1985, transcrita e actualizada in Cifras do Tempo, editorial Caminho, 1990]

quarta-feira, 6 de março de 2013

Hugo Chávez

Pela boa memória de Hugo Chávez






Hugo Chávez

(28 de Julho de 1954 - 5 de Março de 2013)

domingo, 6 de janeiro de 2013

Velhos

Pus no facebook hoje e volto a pôr aqui:

OS VELHOS DO MEU PAÍS SÃO TRATADOS COMO PRISIONEIROS DE AUSCHIWTZ

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Lêdo Ivo 1924-2012

Acabo de ter notícia da morte de Lêdo Ivo, em Sevilha, no passado dia 23. Tive a felicidade de o conhecer pessoalmente nas Correntes de Escritas, em Fevereiro de 2009. Numa das cartas que teve a amabilidade de me escrever, referiu, apesar da nossa diferença de idades, «sermos amigos de infância».


Em 1995 publiquei no nº 640 do JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias este poema, em sua homenagem:





SOBRE UMA FOTOGRAFIA  DE LÊDO IVO

Tenho agora a imagem de Lêdo
no seu sobretudo galopante
e sei como me fala de uma raposa
de bronze, na estadia precária
desta vida.

Visito-o nas palavras estranhas,
essas mesmas que usa na navalha
diária para escrever
enquanto um manto de escuridão e luz
lhe ensombra e clarifica o rosto.

Ledo o vejo ainda entre cadelas
e putas
a sobrevoar aeroportos
e a perder-se de rua em rua
como um soldado
antes de celebrar o armistício
e desfraldar ao vento
a bandeira da pátria nunca vista.

Ele acompanha-me
e faz-me bem relê-lo,
Lêdo no coração
com a professora de estética
que bem poderia ser a causa próxima de uma paixão
se fosse a outra,
a que tomou café no mesmo café
onde eu escrevo agora
e se não chama Clitemnestra,
mas ocupa secretamente uma parte do meu quotidiano deslumbrado
por aquela saia curta e esse rosto inefável.

Olhe, Lêdo, há muito tempo que a poesia
me deslumbra, sobretudo a sua,
com esse acento trágico e efémero
a desafiar a noite
e a entregá-la ao sono e ao sonho
de ser sobrevivente de um naufrágio
que nunca aconteceu
mas vivemos juntos tantas vezes
que o oceano que nos separa
acaba por unir-nos
no rastro de tanta gente que caminha
connosco sobre as águas.


© de Amadeu Baptista



(Foto de Fevereiro de 2009, na Póvoa de Varzim.
Da esquerda para a direita: Lêdo Ivo, Amadeu Baptista e Eduardo Bettencourt Pinto)
 

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Aristídes de Sousa Mendes

Passei há dias por Cabanas de Viriato e tirei as fotografias que a seguir aqui ponho.

As imagens mostram o que foi a casa de Aristídes de Sousa Mendes,
na ruína infame que aqui se mostra.

O respeito pela memória deste homem maior deveria merecer outra sorte,
que não esta ignóbil incúria que a todos portugueses deveria envergonhar.

Por mim, fazendo o que posso, sinto o peso da desonra sobre os ombros.



Fotos © de Amadeu Baptista


sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Manuel António Pina (1943-2012)


Ontem uma amiga pediu-me que aqui pusesse um poema de Manuel António Pina, mal eu sabia
que o iria fazer hoje, pelas piores razões.
Faleceu Manuel António Pina, de quem deixo aqui a sua poesia, com um aceno
cúmplice no café Orfeuzinho há alguns anos atrás. 



De Manuel António Pina:


Cuidados Intensivos

A esta hora e neste sítio
(miocárdio ventricular esquerdo)
é a abstracta vida que me assalta.
Eles não sabem
que o seu coração pulsa,
ferido, no meu coração,
que a minha dor alheia
vagarosamente mata
os seus sonhos, os seus sentidos,
os seus dias visíveis e invisíveis,
a linha dos telhados
ao longe sobre o céu.
Como saberiam
(com que palavras exteriores?)
que existem
dentro de mim
de um modo fora de mim,
os parentes, os amigos,
a vaga enfermeira da noite,
que enquanto o meu Único coração
morre na minha cabeça
a luz do quarto se
apaga para sempre
e o silêncio se fecha
sobre os corredores?
No quarto ao lado alguém
a noite passada morreu,
provavelmente eu.
Os livros, as flores
da mesa de cabeceira
conhecerão estas últimas coisas
em algum sítio da minha alma?

 

*******                     

Vê se há mensagens
no gravador de chamadas;
rega as roseiras;
as chaves estão
na mesa do telefone;
traz o meu
caderno de apontamentos
(o de folhas
sem linhas, as linhas distraem-me).
Não digas nada
a ninguém,
o tempo, agora,
é de poucas palavras,
e de ainda menos sentido.
Embora eu, pelos vistos,
não tenha razão de queixa.

Senhor, permite que algo permaneça,
alguma palavra ou alguma lembrança,
que alguma coisa possa ter sido
de outra maneira,
não digo a morte, nem a vida,
mas alguma coisa mais insubstancial.
Se não para que me deste os substantivos e os verbos,
o medo e a esperança,
a urze e o salgueiro,
os meus heróis e os meus livros?

Agora o meu coração
está cheio de passos
e de vozes falando baixo,
de nomes passados
lembrando-me onde
as minhas palavras não chegam
nem a minha vida
Nem provavelmente o Adalat ou o Nitromint.

 

(in Cuidados Intensivos, 1994)

  Manuel António Pina, jornalista e escritor, nasceu em Sabugal a 18 de Novembro de 1943. A sua obra é principalmente constituída por poesia e literatura infanto-juvenil. É, ainda, autor de peças de teatro, obras de ficção e de crónica. Durante mais de três décadas foi jornalista no Jornal de Notícias, do Porto. Em 2002, sob a chancela da Assírio & Alvim, publicou ‘Poesia Reunida’. Em 2011, foi galardoado com o Prémio Camões.