sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Manuel António Pina (1943-2012)


Ontem uma amiga pediu-me que aqui pusesse um poema de Manuel António Pina, mal eu sabia
que o iria fazer hoje, pelas piores razões.
Faleceu Manuel António Pina, de quem deixo aqui a sua poesia, com um aceno
cúmplice no café Orfeuzinho há alguns anos atrás. 



De Manuel António Pina:


Cuidados Intensivos

A esta hora e neste sítio
(miocárdio ventricular esquerdo)
é a abstracta vida que me assalta.
Eles não sabem
que o seu coração pulsa,
ferido, no meu coração,
que a minha dor alheia
vagarosamente mata
os seus sonhos, os seus sentidos,
os seus dias visíveis e invisíveis,
a linha dos telhados
ao longe sobre o céu.
Como saberiam
(com que palavras exteriores?)
que existem
dentro de mim
de um modo fora de mim,
os parentes, os amigos,
a vaga enfermeira da noite,
que enquanto o meu Único coração
morre na minha cabeça
a luz do quarto se
apaga para sempre
e o silêncio se fecha
sobre os corredores?
No quarto ao lado alguém
a noite passada morreu,
provavelmente eu.
Os livros, as flores
da mesa de cabeceira
conhecerão estas últimas coisas
em algum sítio da minha alma?

 

*******                     

Vê se há mensagens
no gravador de chamadas;
rega as roseiras;
as chaves estão
na mesa do telefone;
traz o meu
caderno de apontamentos
(o de folhas
sem linhas, as linhas distraem-me).
Não digas nada
a ninguém,
o tempo, agora,
é de poucas palavras,
e de ainda menos sentido.
Embora eu, pelos vistos,
não tenha razão de queixa.

Senhor, permite que algo permaneça,
alguma palavra ou alguma lembrança,
que alguma coisa possa ter sido
de outra maneira,
não digo a morte, nem a vida,
mas alguma coisa mais insubstancial.
Se não para que me deste os substantivos e os verbos,
o medo e a esperança,
a urze e o salgueiro,
os meus heróis e os meus livros?

Agora o meu coração
está cheio de passos
e de vozes falando baixo,
de nomes passados
lembrando-me onde
as minhas palavras não chegam
nem a minha vida
Nem provavelmente o Adalat ou o Nitromint.

 

(in Cuidados Intensivos, 1994)

  Manuel António Pina, jornalista e escritor, nasceu em Sabugal a 18 de Novembro de 1943. A sua obra é principalmente constituída por poesia e literatura infanto-juvenil. É, ainda, autor de peças de teatro, obras de ficção e de crónica. Durante mais de três décadas foi jornalista no Jornal de Notícias, do Porto. Em 2002, sob a chancela da Assírio & Alvim, publicou ‘Poesia Reunida’. Em 2011, foi galardoado com o Prémio Camões.

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