quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Liberto Cruz


Liberto Cruz, poeta convidado


3 Poemas



O dia passa. A noite
Chega. Doce e dolente
Se estende na folhagem
Dos caminhos e ali

Repousa fria e ágil.
Céleres recolhem aves.
A casa voltam as gentes
E mesmo as coisas dormem.

Chega depois outra noite.
E outra noite ainda.
E outra e outra. Tudo

Recomeça se repete.
Até que a noite seja
Gente coisas animais.





Vou da montanha ao mar
E passo do mar ao rio.
Depois do rio ao vale
Desço. E outra vez subo

À montanha. E de novo
Ao rio ao mar ao vale
Corro. Paro. Descanso.
Uma vez mais recomeço.

O mar o rio o vale
A montanha noite e dia
Percorro vejo visito.

Se de ave mesma cega
Umas asas eu tivesse
Até pelo céu corria.







É de repente a noite.
Os dedos tremem a fronte
Arde uma ambulância
Passa e o tempo pára.

A morte parece certa.
Uma saudade longa
Da mulher amada vem
E da vida não vivida.

Surge depois a fronteira:
O passaporte não tens
A declarar nada há.

Junto estás do abismo:
Olhas então e hesitas.
Escolhes. À vida tornas.


(Os três poemas apresentados pertencem ao livro de 1994, Caderno de Encargos.
In Poesia Reunida 1956-2011, Coimbra, Palimage, 2012)






Fotos (ilustração dos poemas): © de Amadeu Baptista

Poemas: © Liberto Cruz



Liberto Cruz, nasceu em Sintra, em 1935, e licenciou-se em Filologia Românica, em 1959, na Faculdade de Letras de Lisboa. Entre 1967 e 1968 lecionou Literatura Portuguesa na Universidade de Alta Bretanha, em Rennes, onde, em 1969, criou a cadeira de Literatura Angolana. Foi conselheiro cultural da Embaixada de Portugal em Paris, cargo que ocupou até 1988, data a partir da qual assumiu a direção da Fundação Oriente. Poeta, romancista, ensaísta, traduziu também Samuel Beckett, Blaise Cendrars, Jean Husson, Robert Pinget, Le Clézio, Duras e Sade. Em 1961, fundou a revista literária Sibila; dirigiu, entre 1964 e 1966, a coleção Poesia e Ensaio da Ulisseia e, entre 1965 e 1966, colaborou na rubrica de crítica literária do Jornal de Letras e Artes. 
Colaborou nas revistas Poesia Experimental (1964-66) e Hidra (1966-69) e, desde 1971, na revista  Colóquio-Letras. As suas primeiras obras poéticas, Momento, 1956, A Tua Palavra, 1958, Névoa ou Sintaxe, 1959, e Itinerário, 1962,vindas à luz na viragem da década de 50 para a década de 60, reflectem um momento de transição na poesia portuguesa, pelo reequacionamento da relação entre a linguagem poética e a realidade. Após as tendências contraditórias de uma poesia de intenção social, alia, por vezes, um experimentalismo, assumido por este autor apenas, e sob o pseudónimo de Álvaro Neto, em Gramática Histórica. Entre essas primeiras obras e Distância (1976) ou Caderno de Encargos (1994), medeia um percurso marcado pela busca
de uma cada vez maior contenção imagística e metafórica, mas também discursiva, num itinerário
de conquista de uma "sabedoria apaziguadora". 
A sua poesia reunida foi recentemente publicada, neste ano de 2012. Autor de Antologias de uma fotobiografia de Ruben A, bem como de antologias sobre este autor, encontra-se agora no prelo uma biografia deste autor, em colaboração com Madalena Carretero Cruz.
É presidente da Associação Portuguesa dos Críticos Literários

 


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