Cecília Barreira, poeta convidada
TRÊS POEMAS
País
Chove sempre nesta
terra de dor, vazio
e morte. Chove
tanto. Terra do
sul, terra da
morte dos toiros.
Terra do esplendor
de impérios que já
não são.
Terra de encómios,
de cinzas, de
memórias tão intensas.
Terra suja de
cal e marasmos.
Terra sem sabor,
pouca terra de
aldeias.
Pouca terra. comboios.
ausências. Tanta
dor do meu país.
Vómito
Não sei por que sofro.
Não sei por que
estar só é uma
condição de existir.
Não sei de imaginários
de fruição, nem
de escolas do bem.
Sei de solidão, de
vómitos, de cruzamentos,
de esperas.
Sei do refinamento;
sei do riso de
quem descobre que
sofrer é a suprema
condição da felicidade.
Pessoas
Todas as pessoas têm família.
As pessoas que não têm família
deviam ser sepultadas vivas.
Porque a família é a condição de existir,
única e autêntica.
Vivam as famílias,
atribuladas com os sacos de compras
de natal.
Amarguradas com a espera
para a televisão.
Seduzidas pelos totolotos da fama.
Todas as pessoas têm família.
As pessoas que não têm família
deviam ser enterradas dentro
de morgues apropriadas.
As famílias vivem felizes para sempre,
como nos contos de fadas.
As famílias são todas iguais,
como as formigas em casas de madeira.
As famílias são arquitectos do dever,
da moral e dos bons costumes.
As famílias observam o mundo
por detrás dos buracos de fechadura
e masturbam-se lentamente.
As famílias convivem com os pecados,
e a ingenuidade dos novos ricos.
As famílias fazem amor
aos sábados, depois do banho
e do hipermercado.
As famílias são a base
para compreendermos o que afinal
nos preenche a mágoa.
As famílias são a prova
fundamentada da nossa iniquidade
e vontade de vomitar e defecar.
Vivam todas as famílias
de todos os países do universo
extraterrestre e terrestre.
Vivam as famílias e as pessoas
que, por acaso, também vivem nas famílias.
Morram os sem família, os sem abrigo,
e os sem amor, e os sem sentido.
Morram e vivam,
mesmo que não seja permitido.
in 7&10, Lisboa, Europress, 2003
Fotos (ilustração dos poemas): © de Amadeu Baptista
Poemas: © Cecília Barreira
Cecília Barreira é actualmente professora de Cultura Contemporânea na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da UNL. Escreveu alguns livros de poesia, entre eles, o livro 7&10 em 2003. Dedica-se mais à escrita ensaística no universo da história das mentalidades. Tem um heterónimo: mas não revela o nome.
Boa escolha. A Professora Cecília Barreira, nestes poemas, toca nas sensíveis teclas da triste música das pegadas do sul. O seu voo livre, traz uma profunda melancolia na asa das palavras e semeia a inquietude. Poetas assim são alimento para a minha in(adaptação)...Bem haja!
ResponderEliminarUm livro que tenho e ao qual volto frequentemente. Gostei dos três poemas escolhidos e das fotos que os acompanham. Parabéns pelas escolhas.
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