quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Cecília Barreira


Cecília Barreira, poeta convidada



TRÊS POEMAS



País


Chove sempre nesta 
terra de dor, vazio 
e morte. Chove 
tanto. Terra do 
sul, terra da 
morte dos toiros.
Terra do esplendor 
de impérios que já 
não são.
Terra de encómios, 
de cinzas, de 
memórias tão intensas.
Terra suja de 
cal e marasmos.
Terra sem sabor,
 pouca terra de 
aldeias.
Pouca terra. comboios.
ausências. Tanta 
dor do meu país.





Vómito

Não sei por que sofro.
Não sei por que 
estar só é uma 
condição de existir.
Não sei de imaginários 
de fruição, nem 
de escolas do bem.
Sei de solidão, de 
vómitos, de cruzamentos, 
de esperas.
Sei do refinamento; 
sei do riso de 
quem descobre que 
sofrer é a suprema 
condição da felicidade.







Pessoas

Todas as pessoas têm família.
As pessoas que não têm família
deviam ser sepultadas vivas.
Porque a família é a condição de existir,
única e autêntica.
Vivam as famílias,
atribuladas com os sacos de compras
de natal.
Amarguradas com a espera 
para a televisão.
Seduzidas pelos totolotos da fama.
Todas as pessoas têm família.
As pessoas que não têm família
deviam ser enterradas dentro 
de morgues apropriadas.
As famílias vivem felizes para sempre,
como nos contos de fadas.
As famílias são todas iguais,
como as formigas em casas de madeira.
As famílias são arquitectos do dever,
da moral e dos bons costumes.
As famílias observam o mundo
por detrás dos buracos de fechadura
e masturbam-se lentamente.
As famílias convivem  com os pecados,
e a ingenuidade dos novos ricos.
As famílias fazem amor
aos sábados, depois do banho
e do hipermercado.
As famílias são a base
para compreendermos o que afinal
nos preenche a mágoa.
As famílias são a prova
fundamentada da nossa iniquidade
e vontade de vomitar e defecar.
Vivam todas as famílias
de todos os países do universo
extraterrestre e terrestre.
Vivam as famílias e as pessoas
que, por acaso, também vivem nas famílias.
Morram os sem família, os sem abrigo,
e os sem amor, e os sem sentido.
Morram e vivam, 
mesmo que não seja permitido.



in 7&10, Lisboa, Europress, 2003




Fotos (ilustração dos poemas): © de Amadeu Baptista

Poemas: © Cecília Barreira



Cecília Barreira é actualmente professora de Cultura Contemporânea na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da UNL. Escreveu alguns livros de poesia, entre eles, o livro 7&10 em 2003. Dedica-se mais à escrita ensaística no universo da história das mentalidades. Tem um heterónimo: mas não revela o nome.

2 comentários:

  1. Boa escolha. A Professora Cecília Barreira, nestes poemas, toca nas sensíveis teclas da triste música das pegadas do sul. O seu voo livre, traz uma profunda melancolia na asa das palavras e semeia a inquietude. Poetas assim são alimento para a minha in(adaptação)...Bem haja!

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  2. Um livro que tenho e ao qual volto frequentemente. Gostei dos três poemas escolhidos e das fotos que os acompanham. Parabéns pelas escolhas.

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