sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Nuno Dempster escreve a propósito de 'Açougue'


Açougue, de Amadeu Baptista
por Nuno Dempster



Em 2008, Açougue, livro de poemas de Amadeu Baptista, foi galardoado em La Coruña, Galiza, com o XIV Prémio de Poesia Espiral Maior. No mesmo ano, a obra é publicada pela editora que organiza esse concurso. Passados quatro anos da edição galega, foi editada este ano em Portugal pela & Etc.

Como os livros de poesia que conheço de Amadeu Baptista, uns com mais visibilidade que outros, Açougue obedeceu a um programa de concepção e montagem perfeitamente determinado: cada ano de vida do poeta, o seu poema, e cada poema tendo, como título, o ano em que se insere. Do poema Mil Novecentos e Cinquenta e Três, ano de nascimento do autor, ao Dois Mil e Oito, o ano do prémio e da edição galega, vão cinquenta e seis poemas; na edição portuguesa deste ano, o autor acrescentou quatro poemas, tantos quantos os anos que medeiam entre as duas edições. Portanto, Açougue saiu em Portugal com sessenta poemas.

Não tendo esta edição sofrido outras alterações que a junção desses poemas, é legítimo imaginar que Açougue poderia ser um livro em contínuo, digamos assim, os anos como marcos miliários da vida do poeta. Se viesse a ser reeditado novamente, não seria de rejeitar que essa edição fosse acrescentada de um poema por cada ano passado, se a anterior o foi. Esta particularidade faz-me pensar que, sob o mesmo título, poderíamos ter um livro que, em cada edição, se acrescentasse e, sendo o mesmo, não deixaria de ser diferente. Esta hipótese, a meu ver, resultaria num esquema original e numa surpresa, se tal fosse viável, quer por escolha do autor, quer pela realidade económica e editorial de hoje.

Amadeu Baptista reúne neste livro os temas que fundamentam a sua poesia. Pela estrutura concebida para a obra e da sua leitura, retira-se um claro sentido antológico, quer pelo espectro temático diria que total, quer sob o aspecto da forma, que vai da mancha leve do poema, de versos mais ou menos curtos (1) à mancha cerrada, de versos quase uniformemente longos (2) ou mesmo muito longos no caso do ultimo poema do livro, Doze Mil e Doze. Por outro lado, a forma vai do poema curto, ao médio, ao longo e ao muito longo, variantes que se encontram facilmente na vasta poesia de Amadeu Baptista. A estes aspectos soma-se o do discurso poético, alternando muito pontualmente com a norma, que é a poesia ser facilmente entendida, alternância sem mais significado do que uma variação própria da dita qualidade antológica, assumindo sentidos metafóricos a nível de poema (3), hermetismo tout court (4) e mesmo um caso de surrealismo (5). Curiosamente, estas excepções e variações encaixam com perfeição na ideia impossível do livro em contínuo, que ao longo da sucessão dos anos adquiriria forçosamente um carácter antológico.

Para lá destes aspectos formais da obra, menos interessantes para quem não se entretém – é o termo – a pensar nestas coisas com o teclado, temos a poesia de Amadeu Baptista, que Açougue representa amplamente

A infância com o seu cenário de lugares como origem primeira, Miragaia, o Norte, o cortejo dos seus mortos, o amor, o erotismo, o sonho, o dia-a-dia, o encontro consigo mesmo, as quedas decorrentes de se viver, a morte, por vezes um pendor metafísico, um pendor para o sonho do ser, para o inominado e o sentido da incompletude que suscita esse sonho. Uma poesia que é também mais da vida própria, mais do poeta e do seu entorno do que a relação com o mundo exterior, embora esta exista na poesia de Amadeu Baptista, mas pontualmente (6).

O olhar do poeta foca e retira ilações do que ou de quem lhe está próximo, o poeta incluído como sujeito, e, com frequência, exprime o sentir pensando em poesia, mais dedutiva que especulativamente, sobre os factos e circunstâncias que o poema apresenta, socorrendo-se por vezes do jogo da antítese nos seus versos, um dos modos de ampliar o sentido do poema.

Falar, pois, de Açougue é falar da poesia em geral de Amadeu Baptista, tão completamente estão os seus vectores de força neste livro, premiado num ano em que viu publicados mais cinco livros seus de poesia e em que arrecadou mais quatro prémios.

(1)     pp. 10, 11, 12, 13, 14, etc
(2)     pp. 53, 66, 75, 77, 78, 80, 85
(3)     pp. 10, 43, 51
(4)     p. 55, três últimas estrofes
(5)     p. 87
(6)   p. 77

Este texto também pode ser lido no blogue de Nuno Dempster, cujo endereço é: http://esquerda-da-virgula.blogspot.pt/


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