sexta-feira, 30 de maio de 2014

Kjell Heggelund




POEMAS DE KJELL HEGGELUND


DESCULPAS

Tu não podes exigir-me
ouro nem plumas nem estepes infinitas
em troca eu tenho muito que te ofereça:
perdão, desculpas, etc.
e quando tudo isso se tiver gasto
uma nova ronda:
perdão, desculpas, etc.
assim é que já vês
que não posso oferecer-te grande coisa.

Reisekretser, 1966


INSUFICIENTE
Como se eu não tivesse suficientes sonhos
para colorir uma cidade a ponto de despertar
Como se não tivesse suficiente vontade
para tirar brilho dos passeantes
Como se não tivesse suficiente desprezo
para aplaudir a todos e a cada um deles
conferencistas que escutei
Como se não soubesse
que isso não é suficiente
Como se não tivesse claro
que também se necessita de vontade de sobreviver

Reisekretser, 1966


EXPLORADOR

Equipado como explorador
atracção absoluta da aldeia
objecto de censura, estímulos e comentários
mais ou menos sólidos
Os piores os graciosos,
os humorísticos
que entornavam a parte traseira do seu sentimentalismo sobre mim
explorador desamparadamente equipado
cansado com censuras,
estímulos e comentários

Deveria exigir poder, cópias, certificados
autorização, testemunhos
Eu mesmo deveria ter censurado, estimulado, comentado
para que serve um explorador?

Mas esta maldita comichão na nuca, olhos, pescoço
(para não falar da parte de trás)
intervém como elemento perturbador de propósitos,
jeito e sentido comum

Estás com um sorriso e um modo
tão totalmente explorador
como se pudesse ser

Reisekretser, 1966



TOLERÂNCIA

Os teus deuses não são os meus deuses
A tua verdade não é a minha verdade
A tua solidão não é a minha solidão

Mas também a tua solidão tem o seu valor
Também os teus deuses estão contabilizados
Também se contará com a tua verdade

Assim é e não desesperes

I min tid, 1967


EXPECTATIVAS

O silêncio derrete-se na
noite

Em breve todos os sons
Amanhecerão

Em breve recolherás tu mesmo
o doce fruto da manhã

I min tid, 1967



ENTRE NÓS

Entre nós não há ninguém
que te veja Connosco
podes sentir-te
seguro Entre nós não incham
as mãos de ninguém Connosco florescem
luzes brancas Entre nós estarás
a salvo das sombras
Connosco encontram-se o vento
e a chuva Entre nós
as noites repartem-se igualmente Connosco
convocam-se as corujas Entre nós
cumprirás o teu dever Connosco exigem-se sorrisos
mais do que palavras Entre nós
há muitos que acreditam

I min tid, 1967


TUDO TUDO TUDO É POSSÍVEL

Tudo tudo tudo é possível
tudo é possível tudo é
possível eles compreenderam tudo
é possível agora tudo pode
acontecer Tina nem tudo
nem tudo Bernhardt tu
não lhe disseste tudo a ela
é possível agora tudo
pode acontecer Tina isso
sabe-lo tu também por que
não por que por que não

Contamos até zero?

Punkt 8, 1968



AS GRANDES PALAVRAS

Deixei as grandes palavras atrás
de mim. Deixei as grandes palavras atrás
de mim. As grandes palavras vão-se fazendo
palavras cada vez mais pequenas diante de mim
As grandes palavras eram suficientes nos meus tempos
As grandes palavras proporcionam um rumo seguro
enquanto desaparecem

Punkt 8, 1968



NÃO RESTA NADA JÁ

Não resta nada já da noite
Os que depositaram a sua confiança no sol
ficaram desencantados Eu mesmo falo
da primavera como se nada tivesse acontecido
Não sei se por isso
tenho mais sentido da realidade que outros

Punkt 8, 1968

UMA MANHÃ HAVIA GUERRA

Uma manhã havia guerra. As pessoas saiam
para os terraços para ver os aviadores
que voavam tão baixo que podiam ver
Que nós os víamos. (Eu tinha desejado
muito tempo ver um aviador vivo)

Punkt 8, 1968


JULHO

Estar morto é melhor
que estar sentado a olhar o mar
ainda que isso também seja belo escreveu Alf Larsen,
um dos grandes poetas do mar.

Outros tiveram a mesma sensação.
Talvez por isso muitos dizem que sentem
muito próxima a eternidade quando lêem
poemas dos poetas do mar?

Não creio que ninguém sinta
a proximidade da eternidade
quando lê jornais.
Mas são jornais o que as pessoas lêem

também no verão, que é o melhor tempo
que temos. É quando podes
ir de férias – para o mar, ou para
as grandes cidades e passear por lá

e pensar no contente que estás
porque existes
e que é uma sorte que não
vás viver eternamente.


No diário Dagbladet, 16-8-1969



Versão minha - © Amadeu Baptista




Kjell Heggelund (1932). Nasceu em Hamar. Licenciado em História da Literatura, professor universitário. Autor de numerosos ensaios e antologias de poesia. Tradutor de Éluard e outros surrealistas franceses. Co-director da revista Vinduet. Director editorial.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Väinö Kirstinä





POEMAS DE VÄINÖ KIRSTINÄ




Quando voltámos a casa
e nos inclinámos sobre a mesa do quarto
e vimos os simples veios da madeira
o cansaço transformou-se em conhecimento
sobre a necessidade da viagem
do seu sentido:
regressar e ver a mesa da nossa casa,
os seus desenhos ainda por cartografar

Lakeus, 1961



Ontem à noite permaneceu desperto até que chegou a rapariga
e construiu com palavras uma jóia, o pobre.
Com que cerimónia pensava oferecer-lha,
como se iam ornamentar mutuamente
a jóia e a rapariga.

Mas chegou a manhã
e permaneceram em silêncio.

Lakeus, 1961



QUEBRAR-SE

Quando as formas se diluem,
separam-se os homens, animais e plantas,
a ordem cai, é tempo de ressaca
e o adeus chega,
tu sabias esperar tudo diferentemente dos animais.
E hoje já te lamentas:
é duro, é difícil.
Só é o lugar que desconheces, e a hora,
podes aguentar muito tempo
ou quebras-te como um cântaro, uma janela, um coração.

Puhetta, 1963



CAMINHANTE

Quando caminhas estão todas as luzes vermelhas e o tráfego
é um caos. O guarda-chuva balança ao compasso do ruído
 dos teus tacões. Nos teus olhos cabem a abelha rainha e a cidade,
a fímbria das folhas sorriem ao vento.
As sombras, frescas, inclinam-se sobre o verdor das árvores.

A gaivota voou para o trovão, a pérola estabelecia o coração do verão
e eu escutei o último verão e escrevi na margem de uma nuvem,
dobrei a língua num gancho e calei-me,
chegou o outono, as noites cheias de ti e limpidez,

outono, límpidas são as maçãs e as noites,
em breve lubrificará a neve embriagadora,

na tília negra
azul vazio, não apenas as noites mas os dias cheios,
agora inclina-se a terra verde, silêncio e pulsações na profundidade do húmus.

Luonnollinen tanssi, 1965



A sorveira chamou à janela com dedos verdes
e escutou com os ouvidos as folhas.
Eu pensava na nossa alma imortal,
bebi vinho e fundi-me sem o meu eu com o Espírito,
esqueci o bem e o mal.

Um anjo desarrolhou-me uma garrafa de vinho que tirou de uma maleta,
cantamos como cucos até que adormecemos e em todo esse tempo
pareceu-me que eu era um despertador,
esqueci-me dos piolhos do tempo que me devoram
e do meu público finlandês.

Comi uma boa quantidade de lixo lírico
e de novo voltei a pensar na nossa alma imortal,
nos nossos irmãos cristãos que encontrei mais acima
no resplendor lunar de Saturno.

Adormeci no tapete com os pés nas constelações
e o copo sussurrava-me sem cessar toma outro
e a dormir pensei no que seria isso da propriedade colectiva
das esposas
e nos amigos mortos e no xadrez que jogámos em casa,

montei um cavalo alto
e lavaram-me com álcool por dentro e por fora.

Luonnollinen tanssi, 1965



Quando a corda realmente
se acaba
e tudo se gastou
que
mais se pode estropiar?

O extravagante
começa a procurar. O quê?
Os seus deuses?

Talo maala, 1969



Dois meses estiva a repará-la,
a casa já tem melhor aspecto.
Ficará bem?
As formigas têm o seu formigueiro sob o vestíbulo,
trepam pela macieira, têm pulgões,
a pintura cheira.
Uma abelha mete-se zunindo na parede.
Lá há um ninho.

Velei toda a noite,
levei os livros para o armário,
aqui começa-se de novo.
Sou velho,
os conhecimentos aumentam, a vitalidade diminui,
há demasiadas coisas,
faço um pequeno entalhe na árvore.

Talo maala, 1969


ROSA E MAÇÃ

Sob a roseira puseram um velho calendário e por isso floresce
a planta no S. João, que é festa móvel.
Sob a macieira enterrei uma carpa bichenta, para que não a comesse o gato.
A rosa e a maçã gostam muito dos despojos do carniceiro.
Dai à rosa sangue e vereis como floresce.
Talo maala, 1969



Durante estes anos é
como se alguém se precipitasse a olhar
quando acabasses de escrever a primeira letra de um poema
e te perguntasse por quê e o que vais dizer,
por quê, com que finalidade?
para que grupo social?
e tivesses que responder, antes de continuar.

Elämä ilman sijaista, 1977



Dia vazio, saio para um passeio,
 ocioso, desnecessário, estéril,
sem propósito fixo, apenas para me movimentar,
e ando sem ver nada novo,
 vi tudo antes
e não tenho nada que dizer,
excepto morte e inferno,
e o florescente verão à minha volta,
trevo vermelho, trevo branco, prados de ranúnculos,

a menina dá com a cabeça numa pedra, levo-a ao médico
o comprador do apartamento pede-me um desconto de 2.000 marcos,
aceito
e não tenho nada que dizer

encontro morangos silvestres, um cantarelo
e as nuvens.

Hiljaisuudesta, 1984



Que dizem, quando tudo o que fazes é estar santado a pensar?
Que não és um bom cidadão.

E – todo esse trabalho que fica por fazer, enquanto estás sentado?
Agora estás concentrado nele.

Em quantos assuntos podes pensar à vez?
Por quantos rails podes rodar à vez?


Hiljaisuudesta, 1984


Versão minha - © Amadeu Baptista








Väinö Kirstinä (1936- 2007). Nasceu em Tyrnävä. Licenciado em Letras, foi professor de finlandês. Trabalhou como dramaturgo na secção de ‘teatro’ da Rádio Finlândia. Tradutor de Breton, Baudelaire, etc.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Um poema de 'O Claro Interior'




Nem toda a ausência é ausência.

Conheço o tumulto da ausência no coração dos homens,
conheço o surpreendente silêncio da ausência
que irradia sobre a perenidade,
conheço a ausência em que o sonho
transforma a pedra em cristal,
um elemento vivo no coração.

De tanto esperar o homem fixa abruptamente o sol,
é uma cegueira atroz e benéfica,
olhar o sol fixamente é ver o ramo púrpura dos cíclames
onde o êxtase encontra um caminho,
um porto de abrigo.

Às vezes, encontro-me perdido na ausência,
na minha ausência todas as cores se recobrem
de finíssimas películas de ausência, pequenos focos
de luz onde está inscrita uma lágrima e o coração
resplandece no súbito silêncio.

Às vezes, a ausência é uma oração, uma palavra
vertida no sangue para que a escuridão se desvaneça
e da ausência irradie um feixe de relâmpagos
onde é ainda possível a salvação,
onde é ainda possível um brilho na obscuridade.

De tanto esperar o coração sobressalta-se,
o coração pode mesmo rebentar
por tanta ausência acumulada,
o coração é um animal selvagem e frágil
que percorre a ilusão do mundo
no espaço exíguo de um tronco e uma casa.

A minha casa é a ausência,
a minha ausência é a treva,
o fogo da minha ausência atravessa a noite
e extasia e consome o meu corpo,
um elemento vivo no coração.

Nem toda a ausência é ausência.

Conheço a transfiguração do silêncio no exercício da ausência,
conheço o sobressalto no coração quando a ausência
atravessa essa nesga de céu que nos separa,
essa nesga de céu que perscrutamos incrédulos.

De tanto esperar o homem fixa tremendamente o mar,
é uma cegueira atroz e benéfica,
olhar o mar tremendamente e encontrar a ausência irradiante
de um navio em direcção a um lugar
que apenas existe porque a ausência sulca.

Às vezes, a ausência encontra-nos perdidos,
a ausência quando nos encontra é um poderoso arco-íris,
uma finíssima película de ausência
que os anjos que passam plenos de brancura
connosco atravessam na fronteira da ausência,
a fronteira do mar.

Às vezes, a ausência é apenas um gesto,
um gesto e uma chama que ilumina o deserto,
e o deserto é a ausência,
a ausência é o deserto
onde todos os poderes invocam o silêncio
quando o silêncio é atroz
no sulfuroso tumulto que nos une e separa
e mancha a ausência com a nossa ausência.

De tanto esperar o coração sobressalta-se,
o coração pode mesmo rebentar,
um elemento vivo no coração ameaça chorar
de tanta ausência na ausência acumulada
quando nos encontra a ausência,
quando toda a ausência é a ausência
e o ramo púrpura de cíclames
não encontra o caminho, o porto de abrigo.

Nem toda a ausência é ausência.

Conheço a ausência que se transforma em luz
e queima no espaço ardente do coração,
conheço a ausência onde tudo é o êxtase
e ilumina com o oiro a salvação e a perda,
conheço a ausência que permanece e resiste
e faz da ausência o pássaro e a fogueira –
o pássaro é a luz,
a salvação a fogueira.

De tanto esperar o homem perscruta avidamente o céu,
é uma cegueira atroz e benéfica,
perscrutar o céu é ver além da ausência
onde o êxtase pacifica a ausência e tudo arde, e arde
arrebatadamente.

Às vezes, a ausência é apenas a tempestade
que prenuncia a bonança incontornável,
a ausência respira essa paixão extrema,
sucumbe e alastra,
sucumbe e amplia-se,
é o bálsamo em que a metamorfose ocorre
e o corpo se expande para a levitação dos nomes
onde o apaziguamento invade a luz.

Às vezes, a ausência é um círculo sobre a cabeça
e a perda transforma-se em dádiva e dúvida,
esse sinal arrebata o coração, e arde, arde,
transforma o cristal em estremecimento,
um elemento vivo no coração
que a ausência toca, cobre e alucina.



in O Claro Interior, Íman. Almada, 2004


© do poema e da foto: Amadeu Baptista





sexta-feira, 16 de maio de 2014

ELSA GRAVE



POEMAS DE ELSA GRAVE



Proteger-me
sob a tua couraça,
frio que reluzes na neve
e endureces sobre a água,

assim como o lago gelado
abraças folhas de nenúfar
e peixes,
abraça-me tu também a mim,
deixa-me descansar em ti
como num estojo transparente,
rígida e dormente

mas não me abandones nunca
por uns pujantes raios primaveris,
frio,
protege-me
para sempre
sob a tua dura couraça

Som en flygande skalbagge, 1945

EMBRIAGUÊZ  DE CISNES

O mar encrespou-se
e dois cisnes brancos
saíram a nadar para o acalmar
largos instantes permaneceram à sorte
e silenciosos na sua brancura
levaram a sua calma
sobre a crista das ondas
como frescas carícias.
Cresceu a escuridão sobre eles
e as nuvens turbilhonaram
e desceram
como um celeste rodovalho
até aos cisnes
e sugaram-nos
vorazmente
até que resplandeceram
acima das nuvens
como uma lua gémea
no seu fechado pátio
embriagada pela brancura dos cisnes

Isdityramb, 1960



ENQUANTO CHEGAVA A ESCURIDÃO

Enquanto chegava a escuridão
estava a lua esperando
 a lua estava silenciosamente armada
a lua esperava sem respirar
e eu perguntei
se à lua lhe agradava brilhar
ou se era por necessidade
perguntei
e a escuridão chegou
quando me voltei
um resplendor ensombreceu
o bordo da escuridão
e atrás de mim
parou a lua
parou a escutar.
Eu estou ligeiramente armada
esperando sem respirar
e a lua parou
e na escuridão diante de mim
perguntou-me alguém
se gostava de viver
ou o fazia por necessidade
Logo caiu o silêncio

Höstfärd, 1961



Duro é o homem
que aguenta a sua própria vida
e a sua própria morte
 que nunca chega ao limite
do insuportável

O repugnante
nunca basta ao seu asco
a morte não basta
para que se deixa matar
grande é o homem
e cruel na sua força
para suportar a sua própria vida

Hungersöndag, 1967



Não procures o tormento
numa imitação do sofrimento
alivia o tormento a dor
o sofrimento
afasta-te da compaixão lacerante
que parasita
a costa do sofrimento de outros
agora e desde há 2000 anos –
Procura remédio
alívio
não saias
a buscar o sofrimento
para sofrer e suportar
um sofrimento
em honra de alguém
não há qualquer dor
que mereça loa e honra
apenas aniquilação
é o que merecem o tormento e o sofrimento
todos
os que estimulam
ao sofrimento físico
contribuem para
a auto-destruição
a ânsia de dor
que esquece
o mundo exterior
encapsulado nas suas ameaçadoras
trevas
A ânsia de morte
é uma das vozes
a mais importante
e mais estridente na fuga para a auto-destruição
que o homem vocifera
em auto-aniquiladora embriaguez

Slutförbannelser, 1977



ANTI-ESPELHISMO

A vingança do mundo
e a morte das moléculas
fundem-se
nesta poderosa radiação
que se conseguiu construir
para que os homens
aniquilem os homens
e às suas respectivas nações
ninguém sabia a pesar da omnisciência
o que apareceria
nova vida
 vida
nova negativa
que com a velocidade das trevas
que é dupla
que com a velocidade da luz
se propagaria
pelo espaço
deslocando leis invisíveis
e ritmos inexplorados
Mas a inalterável lei
que a inescrutabilidade do sentimento
compreende
essa não pode perturbar
o homem:
Que cada vez
que matava o mal
matava também
o que mais amava.


Slutförbannelser, 1977


Versão minha - © Amadeu Baptista







Elsa Grave (1918-2003). Nasceu em Norra Vran (Escãnia), no sul da Suécia. Estudou arte e foi pintora. O seu primeiro livro de poesia data de 1943. Além de poesia, escreveu teatro e romance. É considerada como membro destacado da ‘geração dos anos quarenta’. Pela sua obra poética recebeu, entre muitos outros, os prémios Carl Emil Englund e o Bellman.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

João Tomaz Parreira

DOIS POEMAS DE JOÃO TOMAZ PARREIRA






HELENA DE TRÓIA




Helena de alvos braços 
Helena, divina entre as mulheres

Canto III, da Íliada, de Homero





Pela beleza dos teus olhos mil navios
fazem-se ao mar, pelo fogo
que o vento nos teus cabelos despenteia
mil olhos ficaram com insónias

Pelo amor inatingível do teu corpo
mil homens dão o peito à morte
e pelo ouro dos teus lábios, gritam
nas praias de Tróia mil heróis

Pela tua beleza transparente nos vestidos
erram ainda cegos pelos campos
à procura de vestígios.






'Helena de Tróia', por Evelyn de Morgan. 1898









A MULHER DE SAMARIA





Não é qualquer uma. É uma mulher ao meio-dia
De olhos no chão, equilibrando o cântaro
Frágil
Cada lágrima que esconde

É uma mulher que teve abraços
Beijos na sua face morena, escondida
Em silêncios

Não é qualquer uma, é uma mulher
Que conhece bem o seu rosto
No espelho triste do fundo do poço

É uma mulher ao meio-dia
Que resiste, mesmo que isso a torne
Invisível, para que outros não tenham sede.







'Mulher da Samaria', por George Richmond. 1828


© dos poemas: João Tomaz Parreira

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Steinunn Sigurdardóttir



POEMAS DE STEINUNN SIGURDARDÓTTIR



FLORA DO CÉU E DA TERRA

I
Transpor muitas vezes
os caminhos mais frequentados
cansar-se lentamente sob as árvores
ao longo das suas raízes

(As fontes fora do campo)

Ninguém cai
dão-te sempre a mão.
Etecetera.

II
Madrugada. Para o amanhecer
encaminhavas-te só
para a fábrica de estrelas.

Eu estarei atenta, como um casaco verde
moendo-te estrelas numa grande máquina.

Faremos um esforço
levantaremos o telhado da casa
e deixá-las-emos livres.

Verksummerki, 1979


NO MEIO DA MONTANHA MÁGICA

Os doentes da montanha
não podem descer
e muito menos subir.
Morrer morrendo
tal como os vivos. E ele leva-lhes flores.

No baile de máscaras, eles. Tu e eu.
Nunca antes.
Está em francês. Remendam o sonho.
A radiografia da sua prometida
guarda-a junto a si
horizontal no banco.

Tudo é confuso. Transtornado
Na Montanha Mágica
e continuará a piorar.

Verksummerki, 1979




VESTÍGIOS

Os que chegam ao vazio
vêem terras cor de fungo
árvores queimadas
água estagnada

pássaros no ar
degelo pela metade.

Ninguém sabe o que se passou
só o que se nota.

Verksummerki, 1979



DUAS MIL PEDRAS

Apagadas as paisagens juvenis.

Sobrevoadas as nossas rochas
perante o profundo abismo
sob nenhuma casa.

Estivemos lá em maio. Maio.

Agora a rocha são duas mil pedras
dispersas por colinas desconhecidas

nosso cerro, desolada ilha deserta.

Lembro que me beijaste suave suavemente.

Guardião do corpo.

Defensor da mente.

Não me chega uma vida para chorar-te como tu mereces.

Ninguém te substituiu
ninguém estava comigo
lá onde os sonhos circulam.

Amor de minha alma jovem

não chega uma vida…

Oh se pudesse renascer
dó para chorar-te.

Kartöfluprinsessan, 1987



CANÇÃO MATUTINA PARA TODO O ANO

A manhã promete, sem que saibamos nada do que trará o dia.

É humano contentarmo-nos perante a esfera vermelha
que assoma nos cumes. Embotado de sonho
e ao mesmo tempo ardendo de interesse.

É algo muito nosso perguntarmo-nos pela marcha
dessas massas de nuvens na sua viagem caótica
à largura e ao comprimento
dos pontos cardeais.

Aonde vão? Pergunta inútil.
Nós seguimo-las.

Kartöfluprinsessan, 1987



RECORDAÇÕES INVERNAIS

I
Hoje cabe lamentar-me do que esqueci:
as nossas mãos unidas, o céu avermelhado.

Hoje cabe recordar, foi aqui,
onde o mar começa, nas dunas, em março.

Não tínhamos casa aonde ir. Nem um tecto sobre as lágrimas.
Apenas nuvens sobre os beijos.

Agora duas crianças correm sobre patins, com um cão,
sobre um tanque gelado que aqui não estava.

Hoje cabe recordar, foi aqui
onde o mar começa, aqui é.


II
Já nada resta
excepto a recordação de uns lábios
sorridentes, risonhos, antes das tuas histórias
(e uns lábios tranquilos, antes do beijo).

Vejo o mesmo sorriso, mas já não há histórias.

A tua boca amada é agora um quadro
os teus lábios um objecto de arte
não tocar, não tocar.

Já nada resta
excepto a recordação de umas mãos
mãos na treva de um quarto de uma casa.

Já não te encontro mais numa casa
uma casa que foi demolida.

Apenas restam ruínas, informes, com arestas
e a recordação fugaz da tua mão na minha mão.

Já nada resta
excepto a recordação
daquele passeio de dezembro pelo caminho gelado.

Vento de terra dento alvoroçada
o cabelo e o rumor do mar enchia os ouvidos

a chuvarada do céu queimava as faces
presságio de umas lágrimas que caíram depois.

Kúaskítur og nordurljós, 1991



NOTÍCIAS DESTE INVERNO

As notícias deste inverno são:
que sopra a mesma nortada do teu tempo
que ainda tece a névoa mantos sobre a triste imagem
desta terra

que os homens e os animais se arrastam aterrorizados
pelo gelo

e que a minha ausência, por fim, se irá notar.

Kúaskítur og nordurljós, 1991


AUTO-RETRATO NUMA EXPOSIÇÃO

A minha alma era ontem um anão no baile
que esfregava contente os joelhos
e sacava as raparigas para dançar.

Todas se escandalizaram e rechaçaram aquela alma disforme.

Teve que contentar-se em refugiar-se no bar
e dançou só depois das duas
se a isso se pode chamar baile.

Kúaskítur og nordurljós, 1991


LUGARES HISTÓRICOS

Rumo ao sul encontramos um  pedaço do arco-íris
lua cheia saindo
de um monte triangular.

Exploramos a paisagem
à luz do escurecer.

Tínhamos ovelhas
e pássaros desertos e rios.

Tínhamos uma antiga história
que nos marcava o rumo
e encontramos um caminho novo.

E chegou a manhã ao nosso encontro, sol na parede
do cemitério
dia com céu azul na lava do páramo.

Tudo isso não te bastava. Querias uma aurora boreal
com as cores do arco-íris, querias uma montanha
redonda e uma espiral por sol.

Mas eu queria um pedaço de arco-íris
a lua cheia saindo
da montanha triângulo.

Já desapareceu tudo o que tínhamos, o sol, a lua
e a montanha.
Espera-nos uma cabana no promontório.
Inverno todo o ano.
E o mar gelado em volta.

Kúaskítur og nordurljós, 1991


Versão minha - © Amadeu Baptista




Steinunn Sigurdardóttir (1950). Retrata a vida quotidiana com inusitado sarcasmo. Escreve também sobre o amor e a relação entre sexos nas suas diversas formas, com palavras e imagens que maneja de forma original. O seu estilo é vivo e baseia-se no uso siples e inesperado da língua, carregado de ironia. Publicou livros de poesia, romance, muitos livros de crónicas e um livro sobre Finnbogadóttir, antiga presidente islandesa.








terça-feira, 6 de maio de 2014

Aniversário

POEMA DO SEXAGÉSIMO PRIMEIRO ANIVERSÁRIO

Do pai ausente quis seguir o exemplo
E cantar coisas que não podia ter,
Intrepidez, aventura,  insubordinação,
Lápis coloridos para pintar as rosas.

Gostava de ter tido uma mãe
Que me levasse ao colo, a ver os patos.
Mas nem essa sorte tive, os lagos
Congelaram no ano em que nasci

E nunca disso puderam refazer-se.
Aos meu filhos também disse adeus.
A água da comporta foi-me areia
Que se tornou com o tempo movediça.

Com os anos tudo o mais perdi.
Talvez porque cultivo versos
Perante a desonestidade idiota que me cerca.
Com a faca apontada ao peito,

O que me resta é apenas a montanha
Em que observo a junça a invadir
Os campos férteis. Volvidos os sessenta
Mijo para os sapatos com a mesma decisão

Com que compro cigarros. Não tenho
Emenda. Os pés inchados de nada
Me asseguram do que é errado ou certo.
Nem mesmo a morte, que virá não tarda.

Despeço-me das ravinas e dos canaviais.
As praias envolventes estão erodidas,
Assim como as sementes estiolam,
Lírios, delírios, tenacidades, perdas.

A noite é circular e é uma desvantagem
Espreitar de longe as transumâncias
Com que os meus contemporâneos
Se afastaram da fonte e do sonho original.

Queria conhecer o que é estranho
E da árvore da vida se recolhe.
Esta maçã tem bicho e não se sabe
Quem entre nós fomenta a desventura

Social, económica e financeira
E faz com que tudo remonte à decadência
Em que todos somos escravos de uns poucos.
Estou de joelhos, sobre a terra imposta.

Acompanha-me um cão e uma estrela.
O amor é um barco e sou um naufrago,
Que não sabe o que faça o coração.
Incompatível, avanço na ruína

Para escrever não sei se uma elegia,
Se uma ode. O meu maior desgosto
É ver que há séculos o povo morre à fome.
Não faço testamento. Quem vier por último

Que feche a porta e apague a luz.
Duas moedas tenho sob a língua
Para entregar ao barqueiro que me leve
Deste inferno para outro mais honrado.

Nesta zona onde os comboios param
E, sem remédio, os mais jovens partem
Para o estrangeiro, não me conteis alheio
Da revolta de ter nascido aqui.

Sem que saiba o que seja o real e a realidade,
Fui sempre um pessimista pró-activo.
À pátria nada devo, que me comeu a carne
E agora esmaga os ossos.

Dia de aniversário, dia de me agarrar
Ao corrimão porque a vertigem
É uma epidemia de pragas e uma rusga
Do que ao longo dos anos me roubaram.

A ninguém quero mal, ainda que  o bem
Que possa desejar seja limitado. Que os melhores
Prevariquem e que o rebanho tenha disponível
Um prado de azevém em que se ceve.

Continuarei a sangrar pelos ouvidos.
Entre o desterro e o exílio porém não pararei
De me rir muito e de chorar, às vezes.
O riso pela dor – o pranto digno.

Cadáver adiado não serei. A minha vez
Virá mas hei-de espernear como um danado,
A distribuir manguitos pelos que
A morte me acirram em cada dia.

Para o ano espero vir aqui de novo
Meter o nojo que há muito meto.
Não serei cão de cego, nem passarei ao largo.
Hei-de ladrar e morder a um só tempo

Como um bom cão de caça que, querendo,
Também sabe pescar no mar bravio.
Ignore-me a crítica e esses chanfrados
Que escrevem poesia no vácuo do vazio

Como se os atendesse o eterno e metessem
P’ra veia o ópio niilista do seu ódio
Para ficarem bem no pedestal. Não sou maior
Nem menor que os outros todos.

O alçapão que tenho é abrangente,
Cabe lá muita gente, amigos, inimigos,
E o mais que venha cair no meu expresso
Servido com açúcar pela manhã,

Assim que o sol se ergue e a sombra arde.
Por este desatino me decido, a aguardar
O decisivo enfarte que me leve. Hip hip
Hurrah! Sem exagero ou modéstia falsa

Digo que esta pomada é do outro mundo.
Bebamos, Lídia. Deixemos por instantes
Os astros, o governo das orbes, a indiferença.
São do Correia Garção os cristais limpos

E enorme a vontade que tenho de esquecer
O infortúnio de alguns convivas
Que mesmo assim beberão comigo,
Este tinto, este néctar, esta cicuta.

Que nada fique aqui por celebrar,
Os pastores que cantam nos montes,
As areias brancas da infância,
As mulheres magníficas que os sonhos

Perpetraram nos ermos da memória
Como bálsamo, bênção e alucinação
Que se há-de querer sempre até que morte
Seja a única carícia que se espera.

Por hoje fiquem as palavras que me deram,
Um livro, um búzio e umas sandálias
Que hei-de encher de areia para que o mundo
Vá nos meus passos para qualquer parte.

O mais há-de ficar como já está.
Ortigas nos lameiros e gatos nos telhados,
Cerejeiras em flor naquele pátio,
O encantador perfume dos limões,

A frescura das fontes e dos poços,
A luz que declina, toldada e leve,
Uma ou outra fogueira dos despojos da floresta
De nuvens que carrego sobre os ombros.




Nota: as palavras em itálico roubei-as a Correia Garção, poeta português do século XVIII



inédito © do poema e da foto: Amadeu Baptista