terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Alice Macedo Campos


Alice Macedo Campos, poeta convidada


3 Poemas do livro 'a mulher sus.pensa'


a linguagem pára diante da mulher, corpo a corpo
se encaram e se entregam, as melhores palavras, as
que chegam em bandejas de prata, com a escama ainda
exposta, e o sangue, avançam como éguas, ouve-se daqui
o seu galope, deslizam na pele à velocidade dos meus pulsos,
e correm. estavam porém um espelho e a minha voz deste lado,
a luz claramente acesa sobre o medo, pronta a cegar-nos os olhos
e a boca fechada, a gramática impura dos amantes fez do verbo estar
um filme que acontece fora de nós, na paisagem e nos brilhos, onde a
música toca um instrumento tântrico que nos adversa, na hora de cantar.


(in 'a mulher sus.pensa', edita-me, 2011)




quantas luas foram já o teu olhar, perguntei,
mas estava a interrogação contrária na linha do mar,
como um ponto frágil que derrete à primeira água, sempre
que te ausentas. e o teu nome suava ao longe uma lágrima antiga,
nunca antes chorada, que derrama no tempo, e amanhã, e depois disso,
este poema verso a verso, sobretudo os que faltam. vejo-te daqui, lânguida,
o dorso da noite como um ombro que suporta o peso excessivo de viver, e sinto,
embora a distância seja a de um grão, que é aqui que terás de morrer, para sempre.


(in 'a mulher sus.pensa', edita-me, 2011)





toda a vida chorei este dia e foi um saco lacrimal que se rompeu.
sou talvez muito nova para sofrer um cancro, este, de te amar.
esta carta é uma oração e uma prece. e sua penitência.
a deus nosso senhor e todos os seus familiares.
por eu ser a mais vulgar das raparigas.
sem perdão nem castigo.


(in 'a mulher sus.pensa', edita-me, 2011)


Alice Macedo Campo. 33 anos, natural e residente em Penafiel, publicou 3 livros, 'o ciclo menstrual da noite', em 2008, 'um cão em cada dedo', em 2010, e 'a mulher sus.pensa', em 2011 

Fotos: ilustração dos poemas © de Amadeu Baptista


quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Rui Costa (1972-2012)



Autobiografia

Não preciso mas tu sabes como eu sou
Encaminho-me pouco divirto-me assim nas copas
Das árvores soprando pensamentos para o mundo que há de noite.
As pessoas quando acordam são outras, já sabias,
Essa névoa contemporânea do medo miudinho
Que perdemos nas cidades e nos corpos, tu entraste
Antes de mim nos jogos, o enxofre da música e o
Lago do feitiço, inocente homem breve que sonha
Tu bem sabes.
Depois aluguei a bruxa por uma vasta noite.
E a minha vida mudou, a noite cresceu,
A vertigem ardeu-me nos braços até a sangria
Do tédio quando para sempre julguei que te perdia.
Na luta perdi um ou dois braços,
Mais do que o que tinha. Mas esta memória é um palácio,
São corais no pensamento. Jardins e fantasmas,
O gume nas mãos sorvendo, criança estratosférica
E profunda: sem braços e agora sem mais nada.
Não me percebeste, enchi-me de fúria.
É uma arte, queria eu dizer, matar sem retrocesso e
Atraso – ah aqueles braços para apoiar as mãos - ,
Ceifando. Saturno e o vento na proa erguendo.
O: navio:no:mar:parado:parado: completamente.
Parado.como dizer? Não dizer, eu sou.uma vida
Medonha e múltipla. E agora descanso
Deitado nestas mãos que mexem
Sem apoio, sabes, nascendo dos teus olhos
P’la manhã.


( in A Nuvem Prateada das Pessoas Graves, Edições Quasi, 2005)


Adenda: O funeral do Rui será no cemitério de Santa Marinha coordenadas: 41 07' 43,83''N, 8º 37' 37,64''O) pela 10h30 da manhã do dia 20 de Janeiro. O corpo estará numa das capelas mortuárias do cemitério a partir das 9h00 da manhã do mesmo dia. Após uma breve cerimónia o corpo do Rui seguirá para o cemitério de Macieira de Cambra, Vale de Cambra (coordenadas GPS: 40º 51' 31,39''N, 8º 22' 28,36''O).
Informa António Aguiar Costa, irmão do Rui.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

GUSTAVE COURBET


GUSTAVE COURBET: A ORIGEM DO MUNDO (1866)

Para os que esqueceram
a nudez com que aqui chegaram,

e de onde todos chegam,

crio.

A perda,

a perda que é sempre só resgate,
vem comigo,

quer dizer,
ponho-a nos quadros
para que, na exibição do ultraje,
nada se extinga,

nada se perca
e tudo se transforme.

Este é o rosto invisível de um quasar,

e a mulher que posa é Joanna Hiffernan,
a amante de um amigo,

enquanto o mundo,
o velho mundo,
se esquece que há em Deus
muitos mistérios

e que são os homens que os fazem.

O que se escuta, aqui?

Talvez só se escute alguma coisa estranha,

que os ocres e os vermelhos sublinham
com as insinuações brevíssimas na folhagem
que corre no talude.

Ou o ruído,
quase imperceptível,
de uma aranha a fazer a teia,
a luminosa teia da manhã.

Ou, talvez, se escute
a dimensão do universo,
com os seus firmamentos irreais,
as suas bocas, hiantes,

a adocicar os negros,
os meios tons,
a grave claridade de um grito a derramar-se
no fundo de um ribeiro.

Ou isso, ou muito mais:

o pôr-do-sol,
as raparigas que passam com os seus lenços
brancos,
perseguidas por homens em cujos olhos
vai o carro de Zeus,
e Apolo,
e as Eríneas,

e a aurora,
com o seu labor operário

no ar recém lavado
da imundície da cidade,
onde a soberba dos ricos
ainda dorme

e onde há órfãos insones,
em busca,
pelos cantos,
de um pão, ainda que recesso.

Eu crio:

estrume,
ou esterco,

crio,

para que o meu testemunho,
sob o efémero,
possa aguilhoar as almas
e consumar
a união entre o diverso e o transitório,

e não haja mais escândalo
que o escândalo
de ser a soberba a nossa ignorância

e a nossa ignorância a desventura.

O que há para ver nos genitais de Joanna?

O fogo?

A presença divina?

A parte da memória que não sabemos
onde está escondida?

A anunciação?

A carroça de feno que os peixes
empurram porque não há
estrelas na noite?

A expectação?

O ribombar dos canhões
no campo de batalha?

O fim de tudo?

A deposição?

O terror do martírio?

A serpente?

Ou só, apenas,
o indício seguro
de que a nossa humanidade é assim,
terna e tenra,
oferente e solícita,

ainda que tudo seja
aterrador
e a aflição
nos cerque?

Joanna é doce,

suporta sem queixume
a pose que lhe impus,

e sabe como,
no princípio,
cobria tudo a treva,

e a mulher chegou
toda de branco,
com uma luz nos olhos e os dedos
abertos
para a farinha,

e que, aos seus ombros,

vieram aves
que, de árvore em árvore,
cantaram o fulgor das primícias,

os frutos,

o sangue vivo
que vinha da mulher numa corrente
purificadora.

Eis o conjuro:

estar vivo.

E passam nos meus olhos
imagens dos amigos,

e Juliet Courbet, dormindo,
como uma criança,

Gabrielle Borreau,
que olha o infinito,

e Besançon,
e os campos floridos,
onde brinquei em menino

a roubar ninhos,
a explorar as grutas,
a desvendar a vida.

Joanna é doce,
sorri-me quando pode

e canta,
para entreter a monotonia
a que a pose para este quadro obriga:

e eu olho-a,
e olho-me,

e escuto-a a cantar
como se fosse um pássaro de ausência,

e eu um homem
sem mais remédio
do que pintar assim

como que fascinado,
como que enfeitiçado,

a suprir uma falta,

uma falta imensa na luz que me convoca.

Para os que esqueceram a nudez
com que aqui chegaram,

e de onde todos chegam,

crio,

apenas.


(in Doze Cantos do Mundo, Sintra, Edição CM Sintra, 2009)

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Sobre as imagens # 14

PENTECOSTES

Tomé não acredita que é possível ouvir a harpa
sem que se lhe tanjam as cordas, e eu sorrio
do alto da sua cabeça, onde um incêndio alastra
para que o fogo se amacie.

Se leões fôssemos, também não atenderíamos
à transfiguração, uma vez que só pelo desconhecido
os lobos se acolhem, para que neles pulse um coração de cordeiro,
sendo que tudo é milagre quando
nos encanta.

E em verdade, em verdade te digo, meu amor,
que no assento etéreo a que subi
não sei como esquecer-te,
por razões e desrazões da minha carne,
que só pelo mistério se conhecem.

E assim Tomé me toca o lado,
e tu sabes que rangem estas tábuas
de discernimento e confusão sobre as imagens,
enquanto há tâmaras para oferecer-te
e esta elegia pela qual te entrego
a essência mais pura do amor,
amando-te pelo que és,
amando-te pelo que foste e em Cafarnaum
se repete, para que se perfume o ar
deste pecado que me faz aqui voltar,

porque vos amo

e só assim, porventura, há-de ficar,
por uma vez,
consumado o ardor desta paixão.


(in Sobre as Imagens, Cosmorama, Maia, 2008)


Vasco Fernandes (Grão Vasco), 'Pentecostes', óleo s/ madeira, 1501/6

domingo, 15 de janeiro de 2012

Sobre as imagens # 13

ASCENSÃO

Sobre as imagens, subo. E tal como para que cresça
diminuo, também assim, erguendo-me, descaio sobre mim
e sobre a minha intimidade. Nó a nó, progrido,
fechando-se o ciclo para que me abracem os pés
e haja no sentido da oblação um corrupio de serenos sobressaltos,
onde só eu me reconheço para que os outros
se reconheçam a si mesmos, purificando o caminho
ou subvertendo a ordem do divino.

E assim é que a terra se enrodilha aos meus joelhos,
e são como colunas de mármore as minhas pernas,
e todo eu sou um edifício
onde o céu e o globo se entrecruzam
para que não haja apenas a ressonância antiquíssima do sagrado
a vibrar-nos no corpo,
mas todo o desespero justaposto à esperança.

Como a chuva que cai e o orvalho que se ergue,
eis o que sou, no meu silêncio firme,
trazendo para os hóspedes a refeição certíssima,
cruzes e estrelas,
sem as quais, provavelmente,
não poderíamos encontrar-nos.

Não há exílios na terra que me sejam estranhos,
assim como não há exílios no céu a que eu alheio seja,
ainda que a figueira da Barbaria, por minha expressa ordem,
esteja seca e as asas do arcanjo sejam negras,
se negras as quiser.

A grandes tragos bebo desta terra
de que me distancio para que fique mais próximo
o próximo e o semelhante,
o céu e as suas nuvens reflectidas
na superfície branca que, em sonhos,
nos alegra os dias e sobrevoa as noites
em que nos sepultaram, sendo o sopro de Deus
selvagem e impiedoso.

Exalto-me, como porta. Franqueio-me
à passagem dos gentios
para que o voo se expanda
e a demanda não cesse,
serpentes a silvar eternamente
e aves a pairar na planície,
sendo que é a luz que procuramos,
a luz escura
dessa chama selvagem chamada
humanidade e compaixão.


(in Sobre as Imagens, Cosmorama, Maia, 2008)




Vasco Fernandes (Grão Vasco), 'Ascenção', óleo s/ madeira, 1501/6

sábado, 14 de janeiro de 2012

Sobre as imagens # 12

RESSURREIÇÃO

O galo da madrugada canta e a minha cabeça crepita.
Lá fora, o mundo chama o mundo, há raparigas que passam
sob os pinheiros e os cedros, aprestam-se os barcos
para a faina da pesca, coze-se o pão, prepara-se a mesa
em Madian para o próximo repasto, e os corvos
volteiam sobre os campos semeados, em busca de alimento e água.

Ao longe, escuto os cães que uivam, escuto o alvorecer,
escuto o epilético e o paralítico, escuto os impropérios,
e sei que há um lume em cada casa a crepitar
para que profundamente se respirem os aromas do pão, sete,
setenta e sete vezes amassado,
sete,
setenta e sete vezes engolido,
porque a vida urge, a vida e o seu esplendor.

E em Judá há camponeses a arrotear a terra, escuto o pintassilgo
e o rouxinol, e a água sobre as pedras, mágica dançarina
a estender veredas sob o céu, brincando com a inocência
de quem no rio lava, escrupulosamente, as roupas da família, enquanto sonha
com uns brincos de prata ou um bracelete de bronze, ou nem sonha,
porque é a vida dura e está difícil,
está muito difícil a vida de quem lava.

E há uma mulher que afeiçoa ao seio o filho que nasceu, e um avô
que abençoa o neto e o recomenda ao céu, enquanto escuto os fulminados,
escuto aqueles a quem esta justiça ainda não basta, escuto os seus bordões
pelos caminhos, os seus passos inquietos nos desertos, seguindo as caravanas,
seguindo a estrela da manhã, tudo o que têm como seu destino,
ou tudo o que não têm,
um pouco de tomilho e segurelha que lhes alivie a treva,
um bálsamo ou um bago das vinhas vindimadas,
um grão para moer,
um dedo de farinha,
uma porção, ainda que minguada, de piedade.

E escuto, e escuto, e escuto

– e ressuscito.



(in Sobre as Imagens, Cosmorama, Maia, 2008)


Vasco Fernandes (Grão Vasco), 'Ressureição', óleo s/ madeira, 1501/6

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Sobre as imagens # 11

DESCIDA DA CRUZ

Vi os homens do alto da cruz, mas não vi o demónio.
O demónio dir-me-ia que a morte é vital, mas nada ouvi, aqui,
nesta paixão, sendo que apurei o ouvido e nem o eco das montanhas
do Moab ouvi, só ouvi como é doce a paixão e como esta crucificação
rende preito à esperança dos homens, tal como, de mim para comigo,
disse tantas vezes, e à multidão dos homens repeti.

Há coisas que não ouço e que não vejo, o demónio não vi, eis o que sei,
ele, se me visse nesta cruz, por certo choraria, pelos seus mil olhos
eu sei que choraria, pelos seus mil demónios no olhar, enquanto
chega a morte para que tudo se perfaça sobre o sofrimento,
a esponja do vinagre, a lança no flanco, os gritos das mulheres,
o grave galope dos cavalos a reter a multidão na sua esperança aflita.

Vi os homens do alto da cruz, mas não vi o demónio, essa luz
tão diferente, esse asco assinalável, mas não menos amistoso
pela demoníaca presença se aqui tivesse vindo, sendo que não me negaria
como outros me negaram, ah, não, não me negaria o que me persegue,
diria quem eu sou e qual o meu nome, e como os maltrapilhos desta terra
exercem pelo seu nome o nome que eu tenho, todos quantos
só pela minha dor rejubilam e se podem salvar.

Não vi aqui o demónio, nem vi Deus, vi o cálice e vi o abandono,
e vi a terra toda ensanguentada e Adonai ausente, ausente em parte incerta,
enquanto as mulheres e os homens se enlaçavam,
e foi a manhã inicial,
e a coroa de espinhos perfurava as minhas têmporas,
e os homens e as mulheres se enlaçavam,
e foi a noite inicial,
e por amor se uniram e geraram filhos,


(in Sobre as Imagens, Cosmorama, Maia, 2008)


Vasco Fernandes (Grão Vasco), 'Descida da Cruz', óleo s/ madeira, 1501/6

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Paulo José Miranda


Paulo José Miranda, poeta convidado


Três poemas inéditos:


Experimenta escrever uma linha
E depois dessa uma outra abaixo da primeira
Escreve ainda mais uma por debaixo da segunda já traçada
Com esforço faz agora a linha quatro ser maior do que qualquer das três primeiras
Continua a escrever assim sem parar nunca
Linha após linha após linha após linha
Até que te percas do número correspondente às linhas já traçadas
E não consigas sequer escrever nem mais um ponto
Depois de fazeres tudo isto 
E talvez muito surpreendentemente
Podes ver que não acontece nada






Lembra a primeira noite do mundo
Aquela em que te abandonaram no escuro
Sequer a chama de uma vela
Para iluminar as coisas e o limite imposto
Não esqueças por favor a primeira noite do mundo
Não se saber nada e um choro profundo







É o fim da tarde
Os prédios repousam finalmente do calor do dia
E os pássaros do pequeno jardim gastam as últimas canções
Roçando de sono as asas pelos galhos das árvores
Só as perguntas tristes teimam ainda em iluminar o horizonte
Quantas pessoas a esta hora estarão mergulhadas em não fazer nada
Mergulhadas em esquecer que o mundo é o imenso património deles
Quantas dessas pessoas escondem seus rostos novos ou já muito gastos
Em lágrimas e lembranças que rasgam o que sopra cá por dentro
Quantas pessoas não sabe sequer o sabor de uma palavra
Não sabe sequer como preparar uma simples palavra
Como aquele prédio enorme e visível que nunca chegou a ser acabado
E ele será para sempre assim 
Será para sempre até que num belo dia de sol ou chuva rua sem sequer ter sido
Finalmente não se escuta mais os pássaros neste fim de tarde
O silêncio sobe pelas paredes dos edifícios 
Já não é mais o fim é o início de outra coisa





Nasceu em 1965 na Aldeia de Paio Pires. É poeta, escritor e dramaturgo. Licenciou-se em Filosofia pela Universidade de Letras de Lisboa. É membro do Pen Club desde 1998. Viveu em Istambul entre 1999 e 2003, tendo viajado nesse período pelo Mediterrâneo e Médio Oriente.

Publicou três livros de poesia, cinco novelas (a mais recente em Junho deste ano), uma peça de teatro e um livro de aforismos acerca da América (EUA). O seu primeiro livro de poesia venceu o Prémio Teixeira de Pascoaes em 1997 e a sua segunda novela arrebatou o primeiro Prémio José Saramago em 1999. Recebeu uma bolsa de criação literária do Ministério da Cultura para escrever a sua terceira novela e uma outra da Fundação Oriente, para viver três meses em Macau e escrever a sua quarta novela. Colaborou em revistas de vários países e há estudos acerca da sua obra em Portugal, Espanha, França e Brasil. Neste momento, e desde há seis anos, vive no Brasil.


Fotos: ilustração dos poemas © de Amadeu Baptista 

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Ilias Foukis



Ilias Foukis



IMORTALIDADE

Se nós os dois
nos amássemos durante um dia
na manhã seguinte
acordaríamos a pensar
que com a mesma energia
poderíamos amar-nos durante um ano.

E amando-nos nós
durante um ano
como um nítido horizonte flutuaria
perante nós a ideia
de que contrariamente ao desvanecimento
                                   da luz dos olhos
nos amaríamos cada vez com mais fulgor
durante um século.

E se nós os dois
conseguíssemos tal milagre
ligeiros e despreocupados como todas as jornadas
apressar-nos-íamos a pensar
que poderíamos amar-nos
por todos os séculos.

Mas esta última ideia
seria já gravosa…
Gravidade omnipotente
que ao fazer-nos levantar
nos mataria.

(versão de Amadeu Baptista)


Ilias Foukis nasceu a 20 de Agosto de 1969, em Kefallovriso Ioannina, Grécia.
Escreve poesia desde 1988. Em 2007 publicou ‘Testamento de um Deus Menor’, que foi traduzido em inglês, francês, italiano, checo e castelhano. Desde o ano 2000 vive e trabalha em Atenas.

domingo, 8 de janeiro de 2012

Sobre as imagens # 10

PRISÃO DE CRISTO

Malco está a meus pés, com a cabeça ensanguentada
pela orelha cortada. Simão Pedro empunha, ainda, a espada,
ou porque ouviu as trombetas, ou porque alguma coisa o deslumbra,
em mim, ou na soldadesca que avança. E Judas, vestido de amarelo,
toma a minha face direita e beija-me, ternamente. A minha solidão
é insuportável, mas nada faço contra tantas moedas, o preço raso
de um campo de sangue. Aguardo, apenas. E faço-me o viático
que me alimentará, sendo que a bruma é uma lei inexorável.

O que me respondo que não seja só silêncio, não sei.
Sei pouco do que sou, entre homem e noivo a caminho do Tetraca
que me apresentará ao Cônsul
de quem não posso dizer não ser mais um amigo,
embora ele não saiba muito bem o que é a amizade
e eu só tenha o exemplo de Iscariotes para lhe dar: segue-me
para todo o lado, adivinha-me os passos, lê-me o pensamento
e entrega-me, quando é chegada a hora
– entrega-me, sem mais.

Agora é tudo simples, límpido e simples
como num salmo ou um poema:
Malco reconcilia Simão Pedro e a sua espada
e Simão Pedro reconcilia Malco, pelo seu ferimento,
bem como Judas me concilia
com o meu destino e eu reconcilio o destino
de Judas e da soldadesca
que me veio colher à flor do mar e do enigma,
enquanto eu, com tanta solidão insuportável,
 rejubilo por esta companhia,
a companhia de dois toros de oliveira,
um cão e um braçado de sarmentos
para que baste o que basta
e já não basta.


(in Sobre as Imagens, Cosmorama, Maia, 2008)
 

Vasco Fernandes (Grão Vasco), 'Prisão de Cristo', óleo s/ madeira, 1501/6

sábado, 7 de janeiro de 2012

Sobre as imagens # 9

CRISTO NO HORTO

a)

Disse Maria:
«Todos têm um filho, menos eu».

Disse Maria Madalena:
«Todos têm um homem, menos eu,
que os tive a todos».

Diz João, o Baptista:
«És tu aquele que há-de vir ou devemos esperar outro?»

Dizem os discípulos:
«Todos te querem ter,
mas, deixa-nos dormir, agora,
este sono de justos, Jesus».

Dizem Anás e Caifás:
«Quem dizes tu que és?»

E diz a Escritura:
«Eu sou aquele que é».

E eu, aqui, neste reduto derradeiro,
ato as minhas mãos às Tuas
e sei que sou a voz que brada no deserto,
e o cego que esmola na estrada de Jericó,

todo um caminho de água viva e verdadeira
onde só a minha carpintaria flutua.

Ah, como nós, assim reunidos, ultrapassamos
os limites,
sem nos darmos conta.


b)

Há, em Genesaré, uma estrada cheia de bodes azuis
que confinam o pecado às portas violentas do sagrado
– e eu, meu Deus, que posso mais fazer que invectivar
o anjo para que cesse, por uma vez, de nos matar?

E eu, aqui, que posso mais fazer do que abrir a porta e ver
a cintilante planície que o sonho mostra,
os seus punhais?

Que posso mais dizer senão que não virá o Messias
mas o homem que sou a este páramo,
sem mais fascinação que a dos mendigos,
trémulos de rouquidão e ansiedade,
porque toda a noite não dormiram

– e há a peste, a lepra, a fome e a tristeza
enquanto, neste horto, neva?

Ah, Senhor, faça-se e não se faça
quanto ordenas,
porque nos é impossível possuir a planície
e deter a sombra, áurea.


(in Sobre as Imagens, Cosmorama, Maia, 2008)



Vasco Fernandes (Grão Vasco), 'Oração no Horto', óleo s/ madeira, 1501/6

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Os sons da planície / 2

para a Catarina













Fotos: © de Amadeu Baptista

Sobre as imagens # 8

ÚLTIMA CEIA

Um jogo sem dissuasões, este que vem
com o que ainda não aconteceu e vai acontecer.
Afrontar poderes e, depois, lamber as feridas,
com a boca cheia de prenúncios
para encarar a verdade. Tomar o pão
e dizer: ««Tu, aí, não temas,
dá-te ao esforço pedido porque não és de renunciar,
seja a garganta descoberta o que te pedem,
ou só umas folhas de loureiro para deitar ao fogo.»

E, depois, encarar a luz, de frente,
com os olhos a brilhar.

Dizer: «Tomas-me pela mão, doce rabi,
e acrescentas água à ânfora,
para que haja a remissão dos pecados»,
embora quem peque não saiba o que é pecar
se se excluir uma ou outra imprecação.

Mas tudo, tudo se consome: o rosto irradia,
aguarda a prece para que eu a diga e o louvor seja
um par de asas, e se transforme
a vinha em vinho,
a seara ao crepúsculo em puro movimento,
a minha carne em carne inquestionável,
sangrante, revigorada, revigoradora.

Anuncio aos presentes que há em tudo
um sentido visível e um sentido oculto;
e que todos somos irmãos, em mim, em nós.

E mais:
que tudo devo à brisa de que sou,
um homem sitiado pelas hordas dos famintos
que, tal como eu, se consomem
para ver a face de Deus,
sua, e minha, e nossa perdição.

E que esta é a última ceia,

e que eu, esguedelhado, deixo que o infortúnio
me estrangule porque há dois apelos sobre mim,

o da fome, que esta ceia há-de acalmar,
e, outro, mais magnífico,
chamado liberdade.

Ah, se eu morresse,

ah, se eu não morresse,

não seria assim?


(in Sobre as Imagens, Cosmorama, Maia, 2008)



Vasco Fernandes (Grão Vasco), 'Última Ceia', óleo s/ madeira, 1501/6

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Os sons da planície/ 1

para a Catarina







Fotos: © de Amadeu Baptista

 

Rui Cóias


Rui Cóias, poeta convidado



Nada existe que não tivesse começado.
Mesmo na lonjura, decisiva porção iluminada,
em territórios despojados de todo o fim, em
areais de mares a desaguar desconhecidamente,
mais não olhamos senão a extensão do que vimos.
Se campos da livónia vão dar a campos da mazúria,
se mosaicos amaciam na água de banhos mornos,
e além houver só cemitérios seguindo cemitérios, e
a meio deles, parado sem vento, o bosque de bétulas,
se o sol é o lume do azeite a esmiolar o pão
ou o clarão lascado nas muralhas de helsingor,
se o enredo da morte é igual em toda a parte,
seja na flauta de santa maria ou no gaiteiro de tallinn,
é porque modulamos num lugar o que lastrou de outro.
Mesmo sem querer, ou sejam sombras afastando-se,
mais não tecemos que a linha de acasos e acertos
que uma corrente conduz, a cada um, em separado,
à passagem mais sensível do acabamento.
Mesmo isolando os lugares numa função laboriosa,
detalhando as suas divergências, e as pontas extremas
— a parecença entre o que são e o que pensámos serem,
mesmo nas regiões cruzadas por comboios extensos,
onde a noite cairá em escamas de lavanda,
seguiremos a mesma história — afundamos os pés no mesmo solo.
Naquilo por que vamos repetidamente levados,
ansiando o que se manifeste acolá na próxima enseada,
alisando com a mão os castanheiros onde inscrevemos, depois
de outros, nossos sinuosos nomes, nossos amores,
sempre tornamos ao ponto em que tudo se repete e inicia,
de que atingimos apenas um minuto só — um instante,
a lâmina que medeia o ano que passa e o ano que vem.


(in A Ordem do Mundo, 2005)



Foto: © de Alexandra Cool



2 Inéditos:

Schwarze Milch der Frühe wir trinken sie abends
 wir trinken sie mittags und morgens wir trinken sie nachts
 wir trinken und trinken
  Paul Celan, Todesfuge

Leite negro da madrugada bebemo-lo ao entardecer
bebemo-lo ao meio-dia e pela manhã bebemo-lo de noite
bebemos e bebemos
Paul Celan, Todesfuge


Onde vieres também tu a sussurrar nas valas, nem que faminta esteja a tua voz
e se teus olhos os vir de madrugada, perdidos pelos campos, em sítios que estremecem - eu regresso – «eu
até nas ondas do meio-dia, na linha calma das cerejas, se te vejo, margarete, eu «escureço – «e escureço
como o cabelo com o tom escuro dos violinos me escurece, como 
escurece o vento nos bosques frios em que morremos, escurecem as alamedas
escurece o leite negro que bebemos e bebemos. 
Onde vieres também tu pelo adordo sublime do infortúnio, nem que franzido seja o teu sangue
e se teus lábios os vir ao entardecer, à hora mágica, lendo os poemas da galícia – eu regresso - «eu 
até nos combóios que cavam um túmulo pelos ares, se te vejo, sulamith, eu «escureço – «e escureço
como o entardecer nas horas mais pequenas me escurece, como 
escurecem as rugas pelos rostos, escurecem os poemas
escurece o leite negro que bebemos e bebemos. 


 
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A few light taps upon the pane made him turn to the window. It had begun to snow again. He watched sleepily the flakes, silver and dark, falling obliquely against the lamplight. The time had come for him to set out on his journey westward. Yes, the newspapers were right: snow was general all over Ireland. It was falling on every part of the dark central plain, on the treeless hills, falling softly upon the Bog of Allen and, farther westward, softly falling into the dark mutinous Shannon waves. It was falling, too, upon every part of the lonely churchyard on the hill where Michael Furey lay buried. It lay thickly drifted on the crooked crosses and headstones, on the spears of the little gate, on the barren thorns. His soul swooned slowly as he heard the snow falling faintly through the universe and faintly falling, like the descent of their last end, upon all the living and the dead.
James Joyce, The Dead


Na matinal iridiscência dos ulmeiros, entre o trinado do futuro e a rédea da memória
entre a florestação da secura e o leito de novembro
as ervas e a terra suspiram a pérola inanimada, e também os sinos, como outrora em connemara
deixam custódias na feição dos teixos – raízes para o fundo 
no ar mais transformado em ar escuro, galgando uma natureza mais fria do que o vento
irisada de verdes pelas orlas, como a morte na sombra da sua sombra
de ano para ano, nos rostos, debaixo dos passos
de ano para ano, solenemente débil, como a visão definitiva de todos começos, toda a confidência. 
Então vem o inverno, de ondulações incertas – o inverno entre as suas cercas
abandonando pequenos cismas na distância, entre a neve azul comprimindo o seu longo crescimento
na balança entre uma e outra mão despejando a sua existência imersa
e a ronda do ano dá uma outra volta na charneca
abre-se na cor do cabelo que assim parece um lenço branco no xadrez das rosas brancas  
sob os pavilhões das herdades, abre-se no clamor da hera
para deixar hirsuta, escassa, a caminhar na cratera do castanho
a fina, tímida passagem, dos que vivem e que morrem.



Reprodução da gravura 'Birth of the poet', sobre o a.m de autoria de Gabrielle Jones



Rui Cóias, nasceu em 1966. Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Livros publicados: A Função do Geógrafo, Quasi Edições, V. N. de Famalicão, 2000; A Ordem do Mundo, Quasi Edições, V. N. de Famalicão, 2005.