FUGA PARA O EGIPTO
Acaso fogem os corpos celestes? Acaso o paraíso
se apaga por um trovão? Acaso os inocentes
arrasam a inocência quando a iniquidade se mostra
subterrânea e deixa o pó de ser pó? E estes gritos,
estes gritos nocturnos que Deus não recenseia mas a gládio
ceifa, acaso são menos inocentes porque de mim provêm
e eu não sei como contê-los ou como merecê-los?
E eu fujo? E não é esta solidão demasiadamente ruidosa
para que eu não me envergonhe de mim mesmo
e os meus nervos se dobrem, e a minha sede,
e o meu apaziguamento, ainda que fugitivo?
E não tem perdão Herodes, porque foi firmada a justa
sobre ritmos errados, ainda que na sua túnica haja um leão bordado
e se lhe cole língua ao céu da sua boca, por tanta raiva,
porque é indissolúvel o espanto de quem nada sabe do divino e mata?
Eu fujo, e leva-me para onde a minha fuga?
Para a recordação? Ah, em verdade,
em verdade me digo que há recordações tremendas para quem foge
enquanto o sangue corre e a inocência me devora
as entranhas,
e uma pena imensa me abisma o espírito,
e se me dana a alma,
por nada me condenar, ainda.
Por nada condenar o condenado.
Por nada me atingir senão a fuga.
(in Sobre as Imagens, Cosmorama, Maia, 2008)
Vasco Fernandes (Grão Vasco), 'Fuga para o Egipto', óleo s/ madeira, 1501/6
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