terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Paulo José Miranda


Paulo José Miranda, poeta convidado


Três poemas inéditos:


Experimenta escrever uma linha
E depois dessa uma outra abaixo da primeira
Escreve ainda mais uma por debaixo da segunda já traçada
Com esforço faz agora a linha quatro ser maior do que qualquer das três primeiras
Continua a escrever assim sem parar nunca
Linha após linha após linha após linha
Até que te percas do número correspondente às linhas já traçadas
E não consigas sequer escrever nem mais um ponto
Depois de fazeres tudo isto 
E talvez muito surpreendentemente
Podes ver que não acontece nada






Lembra a primeira noite do mundo
Aquela em que te abandonaram no escuro
Sequer a chama de uma vela
Para iluminar as coisas e o limite imposto
Não esqueças por favor a primeira noite do mundo
Não se saber nada e um choro profundo







É o fim da tarde
Os prédios repousam finalmente do calor do dia
E os pássaros do pequeno jardim gastam as últimas canções
Roçando de sono as asas pelos galhos das árvores
Só as perguntas tristes teimam ainda em iluminar o horizonte
Quantas pessoas a esta hora estarão mergulhadas em não fazer nada
Mergulhadas em esquecer que o mundo é o imenso património deles
Quantas dessas pessoas escondem seus rostos novos ou já muito gastos
Em lágrimas e lembranças que rasgam o que sopra cá por dentro
Quantas pessoas não sabe sequer o sabor de uma palavra
Não sabe sequer como preparar uma simples palavra
Como aquele prédio enorme e visível que nunca chegou a ser acabado
E ele será para sempre assim 
Será para sempre até que num belo dia de sol ou chuva rua sem sequer ter sido
Finalmente não se escuta mais os pássaros neste fim de tarde
O silêncio sobe pelas paredes dos edifícios 
Já não é mais o fim é o início de outra coisa





Nasceu em 1965 na Aldeia de Paio Pires. É poeta, escritor e dramaturgo. Licenciou-se em Filosofia pela Universidade de Letras de Lisboa. É membro do Pen Club desde 1998. Viveu em Istambul entre 1999 e 2003, tendo viajado nesse período pelo Mediterrâneo e Médio Oriente.

Publicou três livros de poesia, cinco novelas (a mais recente em Junho deste ano), uma peça de teatro e um livro de aforismos acerca da América (EUA). O seu primeiro livro de poesia venceu o Prémio Teixeira de Pascoaes em 1997 e a sua segunda novela arrebatou o primeiro Prémio José Saramago em 1999. Recebeu uma bolsa de criação literária do Ministério da Cultura para escrever a sua terceira novela e uma outra da Fundação Oriente, para viver três meses em Macau e escrever a sua quarta novela. Colaborou em revistas de vários países e há estudos acerca da sua obra em Portugal, Espanha, França e Brasil. Neste momento, e desde há seis anos, vive no Brasil.


Fotos: ilustração dos poemas © de Amadeu Baptista 

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