ÚLTIMA CEIA
Um jogo sem dissuasões, este que vem
com o que ainda não aconteceu e vai acontecer.
Afrontar poderes e, depois, lamber as feridas,
com a boca cheia de prenúncios
para encarar a verdade. Tomar o pão
e dizer: ««Tu, aí, não temas,
dá-te ao esforço pedido porque não és de renunciar,
seja a garganta descoberta o que te pedem,
ou só umas folhas de loureiro para deitar ao fogo.»
E, depois, encarar a luz, de frente,
com os olhos a brilhar.
Dizer: «Tomas-me pela mão, doce rabi,
e acrescentas água à ânfora,
para que haja a remissão dos pecados»,
embora quem peque não saiba o que é pecar
se se excluir uma ou outra imprecação.
Mas tudo, tudo se consome: o rosto irradia,
aguarda a prece para que eu a diga e o louvor seja
um par de asas, e se transforme
a vinha em vinho,
a seara ao crepúsculo em puro movimento,
a minha carne em carne inquestionável,
sangrante, revigorada, revigoradora.
Anuncio aos presentes que há em tudo
um sentido visível e um sentido oculto;
e que todos somos irmãos, em mim, em nós.
E mais:
que tudo devo à brisa de que sou,
um homem sitiado pelas hordas dos famintos
que, tal como eu, se consomem
para ver a face de Deus,
sua, e minha, e nossa perdição.
E que esta é a última ceia,
e que eu, esguedelhado, deixo que o infortúnio
me estrangule porque há dois apelos sobre mim,
o da fome, que esta ceia há-de acalmar,
e, outro, mais magnífico,
chamado liberdade.
Ah, se eu morresse,
ah, se eu não morresse,
não seria assim?
(in Sobre as Imagens, Cosmorama, Maia, 2008)
Vasco Fernandes (Grão Vasco), 'Última Ceia', óleo s/ madeira, 1501/6
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