domingo, 1 de janeiro de 2012

Sobre as imagens # 6

APRESENTAÇÃO NO TEMPLO

Requer a potestade a degolação de um par de rolas
para que se não desgarrem as ovelhas.

Ou que dois pombos
se decapitem para que o que vem ao templo seja templo
e primícia, e a multidão acorra antes que Simeão o possa presumir
e os seus sonhos estranhos, por uma vez, se desvaneçam.

Ou que um anho se esfole, ainda vivo, e com as chamas se reparta,
para que o leilão das vinhas e dos órfãos não ocorra, e a blasfémia
não possa suportar-se, aqui, ali, de um extremo ao outro da cabeça,
da Galileia ao Sinai, de mais infinito a menos infinito.

Ah, mas eu amo os pardais e os chacais,
e os meus olhos arrasam-se de lágrimas,
e isto é um deserto além de um templo, o deserto
onde cada chaga é um esconjuro e a corça está ferida,
por mais contas que haja nos rosários de âmbar,
por mais balbuciante que se torne a salvação,
por mais profetas que se amparem nestas sujas goelas,
cândidas, inocentes, incandescentes.

Fosse este boi que chora uma serpente e ainda assim
deter-me-ia vexado pela ruína, e invocaria Deus e a cólera
mortífera, porque é o caminho longo para a lavra
e eu, ainda que só, me disponho para um rochedo em frente, onde não há
maior doçura que a que está nos animais, nem maior clamor
que a do azul dos céus, nem maior caça que a delirante suspeita
de não ser a noite irmã do dia, e aniquinável a raiva e a estranheza.

Magro e descalço hei-de voltar aqui. E a multidão
há-de pedir-me figos, e uma grande desordem há-de travar-se,
rasgar-se uma outra carne, ser outra a oferenda, brutal
e magnânima,  grossas gotas de sangue hão-de abater-se
para que se eleve o fio desta voz, e a multidão bastar-se
do aroma do pão, recordando a palavra nele oculto.


(in Sobre as Imagens, Cosmorama, Maia, 2008)
 
 
 
Vasco Fernandes (Grão Vasco), 'Apresentação no Templo', óleo s/ madeira, 1501/6

2 comentários:

  1. É um magnífico poema e... deixou-me sem palavras. Franca e honestamente, fiquei sem palavras.
    Um abraço.

    ResponderEliminar
  2. Meu caro, já tinha ouvido falar de si mas confesso que nunca lera nada seu até ao presente dia. Depois de encontrar o seu blog não resisto a dizer-lhe isto: vou ler o máximo possível que conseguir, começando com "Sobre as Imagens": estou apaixonado pelas suas palavras e pelos seus ritmos.

    Abraço, V.

    ResponderEliminar