quinta-feira, 26 de março de 2015

Árvores no Coração # 8

PLATANUS ACERIFOLIA

Árvores de perseguição, é preciso correr para a janela para agarrar
A intensidade destes verdes, destes ocres, destes vermelhos,
Para saber que a vida é a predestinação dos relâmpagos, por mais
Janelas cegas que encontremos. Árvores de correr atrás, pela copa,

Para que o mundo se anime e tu voltes de onde estás, mistério
Que só estas árvores desocultam quando tudo é cinza em redor
E a desolação do horizonte a única certeza. Árvores de abraçar,
De respirar, por já não termos qualquer atenuante, por ser escura

A negligência desta hora, por tudo estar desabitado
Na extensão dos astros e o soluço do homem se ouvir
A léguas de distância, a séculos e séculos de ausência.
Árvores de fazer uma cama para dormir, para não dormir de todo,

Árvores de velar todo o dia e toda a noite na humanidade que delas
Se desprende, francas e humildes no seu mistério de árvores
Que não sabem o que seja a solidão ou a eternidade. Árvores
De tocar as raízes, de colocar na cabeça como uma coroa,

De fazer levantar os braços para cima para que seja
Um troféu que instiga a permanecer. Árvores de lamber
O tronco, a seiva, a infinita doçura que empreendem, catedrais 
De um silêncio sem fim que desdobra nas coisas sussurros

Incessantes, brilhos celestes, potestades que ajudam.
Árvores cobertas de ouro que a treva não destrói, a revivificar
O chão de húmus e sortilégios, pequenos vendavais que se amontam
Na berma dos caminhos. Árvores de gestos cautelosos,

A que é preciso ouvir como a uma criança,
Uma vereda que se atravessa, uma insónia contínua,
Um trovão que se talha, um animal que perscruta a selva
Para atravessar a cidade. Árvores a que prender fitas

Tal como tu atas o cabelo para que o possa desprender,
A que dançar de roda como se a exultação surgisse
Na soberania de ver crescer estas árvores de sombra,
Esta emocionada abundância de cintilações.

Árvores de guardar no coração e nos olhos, no corpo e no espírito,
Para dar guarida ao que divino se ergue em cada um dos plátanos
Que aqui proliferam como se mais nada houvesse,
Ou nada mais bastasse. Árvores em que escrever no tronco

O teu nome com uma navalha para que nenhuma árvore
Se abata, para que nada se ignore, para que cada um
Dos teus nomes corresponda a um outro nome

E nada se aniquile senão a solidão no universo destas árvores.


© (inédito) Amadeu Baptista 



arte de Agostinho Santos


terça-feira, 10 de março de 2015

Árvores no Coração # 7

CASTANEA SATIVA

O incessante ramalhar dos castanheiros no souto imaginário.
Ser ainda criança deve ser este movimento ampliado no tempo,
Para saber-se que não há recuo sobre os caminhos, enquanto as folhas
Destas árvores aguardam os dias luminosos do outono.
É geral esta ênfase das coisas que buscam a perenidade,
Da encruzilhada chegam as sombras dos castanheiros e sabemos

Como há um prenúncio de aves a iluminar o céu, uma delonga
De sinais que os deuses espalham sobre a terra, como se tudo
O que teve início voltasse ao princípio dos tempos e a criação
Voltasse a nascer. Sobre estas árvores deita-se a criança e o poeta,
Deita-se o pintor e tudo o que toca o torpor em que a génese está inscrita,

Velhos troncos a suster a claridade e as sombras de modo a que a clorofila
Solidifique nos pulmões e possa instituir-se sob os predomínios da arte
Esse sopro em que alguma coisa se acrescenta ao que já existe, ainda
Que imaginariamente, num gesto, numa sílaba, numa cor que se expande
Do que nunca existiu mas é nosso de súbito, agregador e tangível.

Nunca se afasta de nós, a criança. Está deitada sobre a terra
E a luz do souto embranquece-lhe os cabelos, é certo que envelhece,
Mas esse fechamento é uma abertura para o que não pára de surpreender,
Uma criança, um poeta, um pintor que uma floresta restrita protege
De todas as tempestades e de todas as bonanças, como se o que houvesse
A salvar não fosse mais que o incessante ramalhar dos castanheiros

Do souto imaginário. O que passa por aqui não tem salvação,
Mas acrescenta milagres entre lagos e montanhas ao que vive do sol
E da neve, acrescenta prodígios ao que confia na ordem celeste
E sabe que vai morrer, o que pastoreia sonhos, ilusões, incertezas
Sobre cada sombra, cada silêncio, cada uma das árvores da mata imaginária.

A arte é este souto. Estamos a dormir e alguma coisa canta nos interstícios
Do mundo, responde-nos a perguntas que nunca foram feitas, a questões
Que se tornam transparentes e translúcidas sob este crescimento,
Esta jornada mortal que retoma o eterno e a imortalidade, este jogo
De hipóteses que se reformulam sem fim, como se nenhum desfecho
Houvesse, nenhum outro destino na desassombradas veredas.

A criança vive desse nome agreste, tal como o poeta e o pintor
Não mais esperam que um casulo em que possa frutificar, uma ronquidão
De árvores a avançar no solo agreste, o souto imaginário
De que as aves surgem como sombras espantosas, em busca
De uma nova fadiga, uma viagem ao centro do desconhecido,
Uma transposição de cânticos de que os vínculos do universo
Se resgatam sob as imperfeitas desinências da infância e da morte.

Tudo se faz com um compromisso, o que entre os dedos se prende
É o que se perde entre os dedos, a arte é o que de inadiável os castanheiros
Anunciam, um fruto opaco que um obstáculo guarda e protege
Para que haja depois uma proximidade a retribuir, a alimentar, vinda

De um souto imaginário, uma dúvida perpetua, o trânsito de um corpo.


© (inédito) Amadeu Baptista 



arte de Agostinho Santos

quarta-feira, 4 de março de 2015

Árvores no Coração # 6


 SALIZ SALICACEAE

Digo que são salgueiros o que vejo da minha janela. Digo
De que destas árvores vem um uivo que se escuta muito longe
E que o ar se dissolve nas lágrimas sumptuosas destes ramos.
Digo que o mistério é sermos das árvores e que tudo

O que se amplia em nós vem desta reminiscência inaudível. Digo que o rio
Abençoa estas árvores, e a chuva, e todas as tempestades do universo,
E que a magia é saber que existes algures, muito para lá do desaforo
De tudo ser pertença do silêncio. Onde estes ramos tocam a minha cabeça

Estou eu com um clarão a invadir-me, a ver estas árvores
Como cavalos rudimentares e solenes, como frutos inusitados
Que ascendem da treva. Digo que há um desabrigo de ossos
Na presença destas árvores, um abismo, uma casa em ruínas

Que decompõe a noite em partes coloridas, simétricas. O pintor
Toca-as, põe-lhes olhos e bocas, reparte-as pela tela, invoca
O que elas têm de implacável, talvez um anjo, talvez um demónio,
Por certo uma parte de sombra que o coração não sabe como acolher

Mas vela as coisas com agudo discernimento. Os salgueiros
Que vejo da minha janela improvisam pactos e concordâncias,
Não sabemos porque choram, porque uivam ininterruptamente,
Nem eu sei onde estás, em que lugar me proteges,

Em que caminhos abres o coração ao que te rodeia e faz de nós
Seres absolutos e frágeis, seres sem mais comedimentos do que a esperança.
Talvez a natureza não seja mais do que uma interrogação, o que cresce
Nos ramos dos salgueiros em direcção à terra sem que nenhum mensageiro

Se anuncie, sem que nenhuma dor deixe de assinalar, do mesmo modo
Que os salgueiros tomam o rio como um rumor verdadeiro, um cântico,
Uma peroração que nunca cessa. Digo que os salgueiros
São o que somos a cada momento, sede que não se mitiga,

Fome que não se apazigua, ainda que os campos em volta se iluminem
E a cada hora os pássaros reprimam a fadiga de aqui estarmos.
Digo que os salgueiros são a minha janela, tu estás longe,
Tudo está longe quando a beleza sem mácula não me assiste

Mas sobre a terra caem pequenos milagres, pequenas núpcias
Que transformam o desencanto em encantamento, feitiço
De árvores que evoluem ao longo da minha janela e te trazem
Para perto de mim na crucial desolação do universo.

Não sei que abandono seja este, o amor é ubíquo, os salgueiros
São a constelação esperada, segue o rio o seu curso de ser mais do que rio,
Tudo em volta reverdece, ainda que destas árvores chegue um uivo que não cessa,
E tu e eu sejamos a grande colheita em que tudo é fulgurante silêncio.


© (inédito) Amadeu Baptista 





  arte de Agostinho Santos