Digo que são salgueiros o que vejo da minha janela. Digo
De que destas árvores vem um uivo que se escuta muito longe
E que o ar se dissolve nas lágrimas sumptuosas destes ramos.
Digo que o mistério é sermos das árvores e que tudo
O que se amplia em nós vem desta reminiscência inaudível.
Digo que o rio
Abençoa estas árvores, e a chuva, e todas as tempestades do
universo,
E que a magia é saber que existes algures, muito para lá do
desaforo
De tudo ser pertença do silêncio. Onde estes ramos tocam a
minha cabeça
Estou eu com um clarão a invadir-me, a ver estas árvores
Como cavalos rudimentares e solenes, como frutos inusitados
Que ascendem da treva. Digo que há um desabrigo de ossos
Na presença destas árvores, um abismo, uma casa em ruínas
Que decompõe a noite em partes coloridas, simétricas. O
pintor
Toca-as, põe-lhes olhos e bocas, reparte-as pela tela,
invoca
O que elas têm de implacável, talvez um anjo, talvez um
demónio,
Por certo uma parte de sombra que o coração não sabe como
acolher
Mas vela as coisas com agudo discernimento. Os salgueiros
Que vejo da minha janela improvisam pactos e concordâncias,
Não sabemos porque choram, porque uivam ininterruptamente,
Nem eu sei onde estás, em que lugar me proteges,
Em que caminhos abres o coração ao que te rodeia e faz de
nós
Seres absolutos e frágeis, seres sem mais comedimentos do
que a esperança.
Talvez a natureza não seja mais do que uma interrogação, o
que cresce
Nos ramos dos salgueiros em direcção à terra sem que nenhum
mensageiro
Se anuncie, sem que nenhuma dor deixe de assinalar, do mesmo
modo
Que os salgueiros tomam o rio como um rumor verdadeiro, um
cântico,
Uma peroração que nunca cessa. Digo que os salgueiros
São o que somos a cada momento, sede que não se mitiga,
Fome que não se apazigua, ainda que os campos em volta se
iluminem
E a cada hora os pássaros reprimam a fadiga de aqui
estarmos.
Digo que os salgueiros são a minha janela, tu estás longe,
Tudo está longe quando a beleza sem mácula não me assiste
Mas sobre a terra caem pequenos milagres, pequenas núpcias
Que transformam o desencanto em encantamento, feitiço
De árvores que evoluem ao longo da minha janela e te trazem
Para perto de mim na crucial desolação do universo.
Não sei que abandono seja este, o amor é ubíquo, os
salgueiros
São a constelação esperada, segue o rio o seu curso de ser
mais do que rio,
Tudo em volta reverdece, ainda que destas árvores chegue um
uivo que não cessa,
E tu e eu sejamos a grande colheita em que tudo é fulgurante
silêncio.
© (inédito) Amadeu Baptista
arte de Agostinho Santos
Sem comentários:
Enviar um comentário