CASTANEA SATIVA
O incessante ramalhar dos castanheiros no souto imaginário.
Ser ainda criança deve ser este movimento ampliado no tempo,
Para saber-se que não há recuo sobre os caminhos, enquanto
as folhas
Destas árvores aguardam os dias luminosos do outono.
É geral esta ênfase das coisas que buscam a perenidade,
Da encruzilhada chegam as sombras dos castanheiros e sabemos
Como há um prenúncio de aves a iluminar o céu, uma delonga
De sinais que os deuses espalham sobre a terra, como se tudo
O que teve início voltasse ao princípio dos tempos e a
criação
Voltasse a nascer. Sobre estas árvores deita-se a criança e
o poeta,
Deita-se o pintor e tudo o que toca o torpor em que a génese
está inscrita,
Velhos troncos a suster a claridade e as sombras de modo a
que a clorofila
Solidifique nos pulmões e possa instituir-se sob os
predomínios da arte
Esse sopro em que alguma coisa se acrescenta ao que já
existe, ainda
Que imaginariamente, num gesto, numa sílaba, numa cor que se
expande
Do que nunca existiu mas é nosso de súbito, agregador e
tangível.
Nunca se afasta de nós, a criança. Está deitada sobre a
terra
E a luz do souto embranquece-lhe os cabelos, é certo que
envelhece,
Mas esse fechamento é uma abertura para o que não pára de
surpreender,
Uma criança, um poeta, um pintor que uma floresta restrita protege
De todas as tempestades e de todas as bonanças, como se o
que houvesse
A salvar não fosse mais que o incessante ramalhar dos
castanheiros
Do souto imaginário. O que passa por aqui não tem salvação,
Mas acrescenta milagres entre lagos e montanhas ao que vive
do sol
E da neve, acrescenta prodígios ao que confia na ordem
celeste
E sabe que vai morrer, o que pastoreia sonhos, ilusões,
incertezas
Sobre cada sombra, cada silêncio, cada uma das árvores da
mata imaginária.
A arte é este souto. Estamos a dormir e alguma coisa canta
nos interstícios
Do mundo, responde-nos a perguntas que nunca foram feitas, a
questões
Que se tornam transparentes e translúcidas sob este
crescimento,
Esta jornada mortal que retoma o eterno e a imortalidade,
este jogo
De hipóteses que se reformulam sem fim, como se nenhum
desfecho
Houvesse, nenhum outro destino na desassombradas veredas.
A criança vive desse nome agreste, tal como o poeta e o
pintor
Não mais esperam que um casulo em que possa frutificar, uma
ronquidão
De árvores a avançar no solo agreste, o souto imaginário
De que as aves surgem como sombras espantosas, em busca
De uma nova fadiga, uma viagem ao centro do desconhecido,
Uma transposição de cânticos de que os vínculos do universo
Se resgatam sob as imperfeitas desinências da infância e da
morte.
Tudo se faz com um compromisso, o que entre os dedos se
prende
É o que se perde entre os dedos, a arte é o que de inadiável
os castanheiros
Anunciam, um fruto opaco que um obstáculo guarda e protege
Para que haja depois uma proximidade a retribuir, a
alimentar, vinda
De um souto imaginário, uma dúvida perpetua, o trânsito de
um corpo.
© (inédito) Amadeu Baptista
arte de Agostinho Santos
ResponderEliminarTexto muito bem escrito, ideias muito bem passadas nas tuas palavras. Gostei imenso sem dúvida:) AbraçO