segunda-feira, 30 de abril de 2012

Horizonte com Árvores # 1






Fotos: © de Amadeu Baptista



EDITA 2012


Vai realizar-se, de 3 a 5 de Maio, em Punta Umbría, Huelva (Espanha), o XXII EDITA - Encontro Internacional de Editores Independentes, uma organização do Ayuntamiento de Punta Umbría y Diputación Provincial de Huelva, com direcção de Uberto Stabile.

O evento terá, para além das respectivas apresentações de cada editora, exposições, venda de livros, música, performances e recitais.
Participam autores e editores de Espanha, Brasil, Colômbia, Equador, México, Portugal, Peru e Venezuela.

De Portugal marcarão presença:
Bíblia (Lisboa)
Chili com carne (Cascais)
Cosmorama Ediçoes (Bragança)
Mandrágora (Cascais)

No dia 4 de Maio, haverá uma homenagem ao poeta português Rui Costa (recentemente falecido), pelas 19H30, no Teatro del Mar

domingo, 29 de abril de 2012

O Bosque Cintilante # 31

Camille Saint-Seans: O Cisne, de Carnaval des Animaux

Erguemos o sonho em cinco dias, tivemos o poder
da ilusão, a areia e o vidro partilharam
este elo de múltiplas interrogações, a eternidade
que se implanta na parte mais secreta do olhar e atravessa
a superfície da verosimilhança para que algo se destrua e frutifique.
Pensámos o sonho e acrescentámos ao silêncio algum fervor,
o sonho produziu pássaros e peixes num primeiro momento,
mais tarde alguns cavalos, agora
este silêncio que acrescenta à magia
o sobressalto e a fragilidade. Eis
o estremecimento, descemos pela sombra
e encontramos outras figuras adjacentes ao rosto, lágrimas
de cristal, asas azuis, a esfera luminescente
onde uma árvore evolui, evoca,
equidistante,
a arte do augúrio.


in O Bosque Cintilante, Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista


sábado, 28 de abril de 2012

O Bosque Cintilante # 30

Johann Strauss: Wiener Bonbons

Escutando o que escuto é impossível
deixar de verter em sortilégio o que o silêncio
vem entregar-me quando a noite principia.
Produz o encantamento esta desordem,
tão próxima da luz e do deserto.


in O Bosque Cintilante, Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista


sexta-feira, 27 de abril de 2012

O Bosque Cintilante # 29

Franz Schubert: Standchen

Os pensamentos que me assaltam nesta madrugada
fria de Setembro
não estão longe da distância dos teus lábios
e do rumor suave das tuas mãos que tocam
as insígnias de Deus sob o dorso da terra.

Se olhasses para mim verias nos meus olhos
a lancinante expressão da solidão
e a esperança sem qualquer indecisão
de que é possível o teu nome ser maior
que o céu que me vela o silêncio da noite.

Amar-te desde sempre é mais que uma forma de estar vivo
e dar expressão à divindade que trago comigo
desde que atravessei a fronteira
que entre o mar e o mar estabelece
a luz mais verdadeira.

O mais sequer é tempestade que neste coração sangra,
ou dúvida subtil ou estremecimento,
sentindo o alvoroço em que te sinto
apenas peço que sejas tu o assombro
e me devolvas enfim a harmonia.

in O Bosque Cintilante, Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista

  

quinta-feira, 26 de abril de 2012

manuel a. domingos


manuel a. domingos, poeta convidado


3 POEMAS INÉDITOS


Contrapunctus 1

Sento-me à mesa
O lápis em vez da caneta
já vai algum tempo
Não sei o que espero

nem a razão deste verso
Coisas há impossíveis
de definir: tu na sala
lês um livro qualquer

e nesse livro também tu
de pernas cruzadas
na luz do fim do dia
O silêncio da casa é

um mundo novo
que não vem em nenhum
compêndio ou gramática.






Contrapunctus 5

Acordar tarde é
uma opção entre outras
como por exemplo
ficar abraçado a ti

ouvir o filho dos vizinhos
gritar pela mãe
vezes e vezes sem conta
decidir que não está

um dia tão mau para sair
Por isso dispenso
a poesia a esta hora
Que mais podemos fazer

se lá fora chove
e o edredão aquece mais
que todo o sol do mundo?






Contrapunctus 7

Há sempre uma luz
que amplia a noite
devolvendo a tua sombra
a dançar no estuque

Seria um exagero dizer
que quero para sempre
aqui ficar mas tenho
esta tendência para

a hiperbólica visão dos dias
para ser decadente
passear pela rua cigarro
atrás de cigarro

praguejar ininterrupta-
mente logo eu que nunca gostei
de advérbios de modo




Fotos ilustração dos poemas © de Amadeu Baptista


manuel a. domingos (1977) tem colaboração dispersa em várias revistas: Praça Velha (Guarda), Palavra em Mutação (Porto), Sulscrito (Faro), Big Ode (Lisboa), Sítio (Torres Vedras), Piolho (Porto) e A Sul de Nenhum Norte (Coimbra). Foi colaborador do suplemento literário Correio das Artes (João Pessoa, Brasil). Publicou, até hoje, três livros de poesia: Entre o Silêncio e o Fogo (AQUILO Teatro, 2002), Mapa (Livrododia, 2008), Teorias (Edição do Autor, 2011).

quarta-feira, 25 de abril de 2012

25 de Abril (Sempre!)



Num  só dia os deuses assinalaram
o ciclo de negrume e crueldade
que se expandia na pátria. E pararam
tudo o que, sendo inverdade,

feria fundamente todos quanto
da terra não mais queriam que a paz.
E num momento tudo foi espanto
do que pode construir-se e se perfaz

quando pelas ruas a alegria vem à luta
e o novo dá lugar ao que era velho.
Foi esse dia não mais do que vermelho

e deuses fomos na bênção absoluta
em que a exaltação de um foi a de mil
por todo o júbilo que nos trouxe Abril.

inédito - © Amadeu Baptista


terça-feira, 24 de abril de 2012

Miguel Portas

Miguel Florián


(Chuva)


A água dilui a consciência, gota a gota
encharca as imagens, agitam-se os seus reflexos,
tremem apenas um instante sobre a ferida. Nunca
acabará a chuva. Na memória chove,
volto a ver os charcos da infância, uma manta
encharcada sobre vagas cabeças, e um rosto
muito fugaz de mulher. Sempre esteve a chover,
os pássaros fugitivos procuravam aquecer-se
no nosso sangue. Aquela boca de tépida lua
emudecida e fria, sobre a erva húmida…
Onde leva a água essas sementes?, em que mar
desaguam?, em que mãe germinam?, acaso
a alma é terra e, logo, já madura, frutificam
sob o tremor da memória? Tocar o mundo
com as nossas mãos cegas, e logo, na recordação,
outro mundo renasce mais intenso. Aquela
mão pousada sobre o tempo, aquela fronte
com o seu gesto de argila, e este turvo afã
do homem em levantar a sua casa destruída
sob a tempestade, esta inquietação de abrir
nas ondas de todos os regatos a entranha
acesa do musgo. Sim, em que oceano,
em que leito se vertem as palavras?, que cais
abrigam os seus barcos? O céu é água parada,
e o pó, e os vestígios que espelham e abrasam
na sua luz a consciência. Todos náufragos sob
igual aguaceiro, peregrinos do sonho,
crescendo sob o peito do tempo, sustendo-nos
sobre a mão incerta de um deus que nos ignora.
Versão minha - © Amadeu Baptista




Miguel Florián nasceu em Ocaña, Toledo, no ano de 1953. Licenciou-se em Filosofia Pura, dedicando-se, posteriormente, ao ensino. Crítico literário e poeta, colaborou em várias publicações colectivas. Traduziu diversos poetas franceses e portugueses. Começou a publicar em 1992, com o volume Los mares, las memorias. Desde então, vários prémios foram atribuídos a obras suas. O poema que aqui reproduzimos apareceu no n.º 9 dos Cadernos de Poesia Hífen.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

O Bosque Cintilante # 28

George Frederic Handel: Allegro, do Concerto para Harpa

Vejo todas as coisas com a irrealidade da luz
filtrada sobre o peso inverosímil da neblina.
A música evolve a água,
como uma linha de pássaros dentro da cabeça
enquanto a neve cai e flutua no horizonte o bosque cintilante.


in O Bosque Cintilante, Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista



domingo, 22 de abril de 2012

1º. ANIVERSÁRIO



Este blogue perfaz hoje o seu primeiro aniversário.

Do arquivo, saliento alguns números, como curiosidade:

                    - em 2011, publiquei 246 mensagens
                    - em 2012, publiquei   97 mensagens

o que dá um total de 343 mensagens nestes doze meses de actividade (a média poderia ter excedido 1 por dia, se em Setembro de 2011 não tivesse tido um grave problema de saúde).
                       
O número de visualizações, contadas esta manhã, ascendeu a  44.465.
            .
O número de seguidores é, até ao momento, de 281.


Aos colaboradores da rubrica  'Poeta Convidado', como reforço do agradecimento público que lhes devo, deixo aqui, de novo, registo expresso dos respectivos nomes (por ordem alfabética), sublinhando que é minha convicção que a literatura de um país se faz por acolhimento, respeito e difusão e não, como vem sendo apanágio de muitos, por omissão, premeditado desprezo e, tantas vezes, ingrato esquecimento.  Assim, o meu mais grato abraço para: Alice Macedo Campos; António Cabrita; António Ferra; Daniel Abrunheiro; Gisela Ramos Rosa; Henrique Manuel Bento Fialho; Inês Ramos; Isabel Cristina Pires; Joaquim Cardoso Dias; Jorge Velhote; José Emílio-Nelson;José Félix Duque; Margarida Ferra; Margarida Vale de Gato; Maria do Rosário Pedreira; Nuno Dempster; Paulo José Miranda; Rosa Alice Branco; Rui Almeida; Rui Cóias; Ruy Ventura; Soledad Santos; Tatiana Faia; Urbano Bettencourt.


Registo, também, os nomes dos poetas que, ao longo deste ano, fui traduzindo e aqui publiquei: Iannos Ritsos (Grécia); Gunnar Reiss-Andersn (Noruega); Hannes Pétursson (Islândia); Nina Bjork Árnadóttir (Islândia); Abdelmajid Benjelloun (Marrocos); Ílias Foukis (Grécia); Thorkild Bjørnvig (Dinamarca); Eva Durán (Colômbia).


A todos os que passaram por aqui, a todos os que são 'seguidores', a todos os que deixaram comentários, a todos os que enviaram poemas, ou sugestões, a todos os que, em suma, apreciam o trabalho que fui apresentando neste último ano,
o meu muito obrigado!!!




Na foto: Amadeu Baptista

O Bosque Cintilante # 27

Frederic Chopin: Nocturno em mi bemol Op. 9 No. 2

Ao passar pela vida a procurar em vão
sempre a criança morta te surge da diáspora
em que o destino fez desvanecer
o destino que a ti próprio anunciaste.

Sempre as mãos te tremeram nesse fósforo
que acendeste para deixar de ver
o que o contorno das sombras fez dos mortos
que no teu rosto são o que perdeste.

Calado estás agora e o silêncio é vil
nesse incêndio precário de que se consome a vida
e a breve despedida em que nos encontraste.

Que tudo está perdido e está certa a morte
quando suspensa a vida dessa chama
nada chama por ti e és a criança morta.


in O Bosque Cintilante, Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista
 


O Sonho do Elefante Tomé, em cena


De 24 de Abril a 15 de Julho, a Ludoteca “O Moinho”, situada no Bairro do Casal das Figueiras, em Setúbal, apresentará em teatro, a adaptação da história de
Amadeu Baptista: “O Sonho do Elefante Tomé “. 

A autoria da adaptação teatral é de Dalila Moura Baião.




Aqui ficam os horários e outras informações relevantes:

Horários :
De 2ª a quinta-feira, na Ludoteca "O Moinho" Rua dos Ventos - Bairro Casal das Figueiras - Setúbal (tel: 265 573408)

Manhã: 1º turno - das 10h às 11h30
2º turno - das 11h30 às 13h

Tarde: 1º turno - das 15h às 16h30
2º turno das 16h30 às 18h

(efectuam-se marcações prévias para grupos de alunos de escolas de 1º Ciclo, Jardins de Infância e outras Instituições públicas ou particulares, que trabalhem com a infância)


Personagens da História:

- Director do Circo Universal: André Cortina (licenciatura em Teatro - Artes Performativas pela E.S.T.A.L.)

- Elefante Tomé: Patrícia Santos (animadora sócio-profissional)

Trapezista: Sónia Bordalo (Técnica de Acção Educativa)

Treinador de Elefantes :Sónia Bordalo (desdobra a personagem)

Palhaço José: Dalila Moura Baião (Coordenadora Pedagógica - Professora - Formação em Teatro e Expressão Dramática)

Encenação a cargo de Dalila M. Baião e André Cortina





sábado, 21 de abril de 2012

Escola da Fontinha, protesto e solidariedade


Na foto, de que ignoro a autoria, mas utilizo certo de que o seu autor (ou autora) entenderá o uso, está bem patente a que extremos de brutalidade a carga policial recorreu para despejar a Escola da Fontinha, há dois dias atrás: material escolar, livros, cadernos, computadores, mobilário, etc., destruídos e empilhados como lixo no espaço do recreio da ES.COL.A, onde, com a força de intervenção, agentes encapuçados entraram para bloquear o edifício e em que, segundo os moradores, 'usaram tasers, bateram em alguns de nós, revistaram-nos à força, arrastaram as p'rái 30 pessoas que lá estavam, para fora'. (Gui Castro Felga). Como protesto e solidariedade, cabe-me deixar aqui um poema antigo, que publiquei pela primeira vez em 1987, mas foi escrito antes de 25 de Abril de 1974:




ÚLTIMA GERAÇÃO

ad majorem dei gloriam

O nojo, o nojo visceral, Senhor.

Dai-nos o nojo, Senhor, o sagrado, o supremo nojo
de que se irá decidir a nossa salvação e a salvação dos que, enojados como nós,
antepõem o vómito a esta mansidão de sombras paradas pelo chão.

Dai-nos o nojo, Senhor, o nojo que a marca da repugnância
favorece e docilmente nos vem lamber as feridas.

O nojo, Senhor, a agonia do nojo
para que possamos cuspir sem ressentimentos no rosto
de quem nos cospe no rosto.

Porque o rato pariu uma montanha, Senhor, e como cães assustados
esperamos o impacto do fogo sobre o fogo.

Porque mantemos os sentidos despertos, Senhor, e esperamos
o resgate, o refúgio e o êxtase.

Porque caminhamos nas trevas com extrema paixão e uma ânsia poderosa, Senhor,
dai-nos a náusea,
a abundância da náusea sobre o nosso rancor.

Dai-nos o vómito, Senhor, o vómito
carregado de fel da nossa vida violenta,
do nosso amor violento,
da nossa esperança violenta e violentada
pelo preço de um pão e o suor agónico da nossa face.

Recorremos a Ti, Senhor, neste páramo de ódios,
para que nos dês o alívio do vómito letal do nosso desespero,
esta amargura carregada de amargura
que nos lançaram sobre os ombros e tem o peso do mundo.

Com as lágrimas nos olhos, Senhor, e a cabeça coroada
de espinhos, pedimos-Te a libertação do nojo que ocultamos nos nossos corações,
o nojo intemporal
dos que nos antecederam e que virão depois de nós, o nojo
imensurável que geramos no nosso ventre e ao nosso ventre voltará sob a forma de cal
purificadora.

Dai-nos o nojo, Senhor, essa flor infecta, sanguinolenta e suja
que há-de desabrochar das nossas dores

em Tua glória

e em nome do asco a que fomos submetidos.



(in Última Geração – Naifa – suplemento indestacável, nº. 4/5, Junho, Porto,1987
e Antecedentes Criminais Antologia Pessoal 1982-2007, Edições Quasi, Vila Nova de Famalicão, 2007)

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Ruy Ventura


Ruy Ventura, poeta convidado

EXCERTOS DE 'CONTRAMINA'

I

[…]

JOÃO:
a velocidade auxilia a limpeza do motor. a incerteza do asfalto configura nos circuitos todas as sinapses que a sombra edifica. o voo não é, contudo, suficiente para limpar do habitáculo todas as marcas de ferrugem deixadas pelo sal e pela água. a oxidação toma conta das entranhas e lança sobre o estômago sedimentos e limalhas que o trânsito não consegue eliminar. mesmo limpo, o motor não ignora a entrada da erva pelas fendas do metal. chuva e calor mancham, rebentam a chapa (e a memória). o motor sobrevive ao concurso da existência. sem velocidade, sobrevive – diluído no ácido das esferas.

GRAÇA:
o ruído impede a fixação da imagem sobre a terra. rostos e palavras compõem o universo, sangue e movimento irrigam a memória – mas só o silêncio dos lagares e das fragas consegue conservar a densa melancolia de um corpo enterrado na nascente. há anjos subindo ao núcleo da montanha. sem asas, a mão mergulha por entre os ossos e dentre eles recolhe vestígios do barro que no passado unia os símbolos e a matéria.

JOÃO:
no cultivo da sombra sobre o campo, a humildade do solo transfere para os olhos um diálogo sem voz – que a luz expressa cortando e reunindo fragmentos de vida que o fogo não pôde dispensar.

GRAÇA:
carne, madeira e minério dissolvem na tinta pigmentos e saudade. nada substitui, no entanto, a rigidez de um corpo depois da morte. no calor da terra, seres e objectos fotografam imagens sem presente. na incandescência das formas, oferendas e gestos sobrepõem-se. em silêncio, somos convivas do último banquete. entre espigas e insectos, a pedra alimenta a multidão.

JOÃO:
não existe milagre nem metáfora. no eixo do planeta, a presença nasce de um encontro mineral: de um lado, moléculas ou átomos em suspensão; do outro (deste lado) a gravidade do abismo reconstruindo, sem tempo, a força das origens.

AGOSTINHO:
o ruído dos motores não impede a fixação das imagens sobre a estrada. o movimento acaba por lancetar cada uma das frases, deixando sobre a carne apenas o que lhe pertence, sem outros líquidos nascidos da decomposição da fala.

JOÃO:
o ruído dialoga com a imagem, tal como a imagem ao longo da tarde vai destruindo a essência dos motores. não há semáforos que consigam suspender a poeira sobre a mesa. nem os passos, em que a sujidade cerca os olhos sem sombra e as mãos cujas gretas representam um excesso de sangue na lembrança e na cativação dos dedos sob a pedra.

AGOSTINHO: 
a erosão é tão só um efeito de linguagem em que o freio não impede o transporte dos resíduos numa enxurrada cujo entulho ocupa todos os caminhos disponíveis. coberto o asfalto, nenhuma incisão será possível sobre os ossos ou sobre a pele. dentro deles, um cérebro resiste à entrada das vozes e à sua fixação na imagem. só o movimento admite a entrada da sombra na circulação sanguínea. sem verbo, o ruído afasta-se. dissolve-se ao entrar nas páginas e ao ver-se confrontado com outros sons cuja estrutura reforça a dissemelhança da matéria. com violência, as imagens sobrepõe-se. esfaqueiam quanto as rodeia. só assim impõem nas artérias toda a água necessária para inundar – e salgar – o mundo cuja passagem nos destrói e modifica.

[…]

II

[…]

STEFAN:
a língua arde. queima o coração, as veias, as células. entre duas árvores, a corda aperta a garganta. dissolve o anel e a saliva – essa melodia no interior do dragoeiro.

JOÃO:
o incêndio alastra, sempre de negro. sobe a escada, coloca sobre os olhos essa espada. a língua arde. deixa entre as cinzas vestígios de sombra.

STEFAN:
nada mais encontro entre os escombros. antes da derrocada, levo para longe a última gota de sangue. a saliva preenche o desespero, o sopro do oceano. fico deste lado, junto do medo. tento salvar a última fronteira. deixei um livro no sopé da montanha. consigo ler. os símbolos contudo têm pouca nitidez – mesmo quando os entendo.

WRADISLAW:
a língua arde. a flama acompanha-nos neste forno. a chama desfaz os ossos e o cabelo, o anel e a melodia onde tento navegar.

STEFAN:
de que vale cruzar o horizonte quando a cinza guarda rebentos e palavras? o incêndio alastra deste lado do oceano. o sal lava o corpo e a linguagem.o fogo devora a distância. este fogo encontra no coração (na terra?) essa ave nascida no início.

WRADISLAW:
aguardo na sombra o sangue. em ruínas, guardo sombras e palavras – o verde dessa melodia e algumas vozes cantando. recolho na síntese deste corpo a estrada, os teus olhos vigiando a cidade. respiro a pólvora. desfaço entre os dedos este muro, a linha do comboio transportando as raízes desta árvore.

JOÃO:
a madeira vai secando. a seiva desce este caminho, a cinza desse caminho sem passos, sem memória. 

WRADISLAW:
procuro a voz e o alimento, a semente (a cinza?) que nos dedos germina. na sombra e na saudade. aguardo o sangue (a morte?), esta memória. a pedra e a cal reconhecem a secura da pele em ruínas. os músculos vencem a febre e a cinza. o pilar subsiste no centro da avenida. este corpo nasce – como um rebento, entre duas raízes.

[…]

III

[…]

MANOEL:
esterco e palavras são, afinal, semelhantes. 

JOÃO:
produzem ambos uma energia surda, que alimenta as raízes, mesmo nos dias mais frios. (lembro o monte que se acumulava no pátio de uma casa hoje vazia, o odor acre mas fertilizante, o ouro espalhado sobre o campo, que a palha – pão retornado – acompanhava até às vísceras da terra. esterco? não. segmento de um círculo devolvido à humildade do mundo.)

MIGUEL:
todos os seres nos pertencem e nos modificam. palavras, transfiguram a sintaxe da floresta, fazendo estalar os veios da madeira com que vamos construindo a árvore propícia à recolha e ao registo da linguagem dos pássaros.

MANOEL:
a raiz, tão profunda, alimenta-se de magma. o vulcão rebenta. lentamente, por uma fissura aberta na superfície, o fogo vai dominando o espaço.

JOÃO:
encarna todas as folhas até povoar a língua com novos seres e palavras.

MANOEL:
ramos e tronco alastram na clareira. entra melhor o sol quando, deste lado, a cinza e a lava se tornam seres livres de erosão.


(excertos de “Contramina”, livro à espera de editor)



Foto:  ilustração dos poemas: © de Amadeu Baptista


RUY VENTURA (Portalegre, 1973) publicou os seguintes livros de poesia: Arquitectura do Silêncio (2000); Sete capítulos do mundo (2003); Assim se deixa uma casa (2003); Chave de ignição (2009); e Instrumentos de sopro (2010). Em Espanha, deu à estampa Un poco más sobre la ciudad (2004) e El lugar, la imagen (2006). A sua terceira colectânea foi traduzida nos Estados Unidos da América, num projecto cultural editado em San Francisco (Califórnia). É, ainda, investigador nas áreas do patrimómio material e imaterial.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Eva Durán





DOIS POEMAS DE EVA DURÁN


fantasia

desejo ser penetrada
para além da pele
durante horas e horas e horas

o desejo apenas cabe na eternidade

para além do prazer
a carne ama o fogo
que a incendeia

a carne
cálice do amante
não tem repouso
sabendo-se mortal
entrega-se
submerge a adaga
e inicia o sacrifício

o rito milenar
do suor que ferve
do sangue que se entrega
em que o golpe e a traição
são a única saída

no fim
a memória purifica
a memória purifica-se
e o corpo do amante
regressa ao seu justo
eterno e merecido esquecimento



***




BIOGRAFIA POSSÍVEL

Se algum dia me lembrares tens que saber
que me masturbo com alegria

que me rio até às lágrimas
que os meus passos deixam onde quer que vá
uma estela de sangue

que larguei pedaços de pele por aí
(entre parques e bibliotecas,
rostos, casas, carros, cinemas)

que li por estupidez
mais de cinco mil livros
mas que descobri, não demasiado tarde,

que o melhor é ignorar a gramática
as leituras e a boa educação
(por isso arroto, por isso sou livre)
Tens que saber que falo com espíritos,
que ao pequeno-almoço bebo sangue, que me fotografei nua.

Que me agrada por igual a comida turca e os turcos
(Ainda que um marroquino musculoso e moreno
não estivesse nada mal)

Que às vezes… quando esqueço o que me aconteceu
sorrio

E então converso com as minhas flores
e sinto-me feliz

Que numa noite de paixão fulgurante
na areia branca,

a brisa barranquenha e o mar
Antonio me disse:

“Pareces um colegial ninfomaníaca
e esfomeada” E depois “Amo-te” e depois…

Se algum dia me lembrares (se me recordas)
Tens que saber que em verdade sou feliz
(só que de outra maneira)
Que cresço entre estranhos
Que amadureço a golpes

Que aos domingos vou ao jardim infantil
e subo aos balancés e aos escorregões

Que me sei imatura e tonta
E que gosto de o ser

Que ainda me ofereço rosas
Que ainda amo com loucura os cães

Quando vires Antonio José Piocuda, diz-lhe

“Na Alemanha ela espera-te com os braços abertos

com café fumegante
poemas de amor que escreveu para ti,
bom sexo e algumas canções”


Se voltares a ver António… diz-lhe…
Se ele regressa…

Versão minha - © Amadeu Baptista




Eva Durán. Poeta e jornalista. N. em Barranquilla, Colômbia, em 1976. Frequentou a Universidade de Cartagena. É autora de vários ensaios, guiões de televisão e peças de teatro. Foi colunista em jornais e revistas colombianas, como El Tiempo e El Universal, onde publicou crónicas políticas extremamente combativas. Foi produtora de televisão, na Colômbia e em Espanha. Em 1997 ganhou uma bolsa, atribuída pelo Festival Internacional de Poesia de Medellín; em 2003 venceu o Prémio Cidade de Cartagena e uma bolsa atribuída pela Fundação Gabriel Garcia Marquez. Vive na Alemanha desde 2005.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Liberto Cruz



Estaca movediça
A Pátria que se fala
Vocabulário espanto
Limita a origem
De sons e imagens
 


Liberto Cruz, 55 anos de intervenção poética. Um marco na estética
e "qualidade do silêncio"
que é a poesia.
 

Hoje, na Casa Fernando Pessoa, 18:30,
apresentação da Poesia Reunida por Fernando Martinho. 

Antero de Quental - 170º. aniversário do seu nascimento



Antero Tarquínio de Quental, Ponta Delgada, 18 de Abril de 1842 - 11 de Setembro de 1891



O PALÁCIO DA VENTURA

Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da Ventura!

Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura…
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formosura!

Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado…
Abri-vos, portas de ouro, ante meus ais!

Abrem-se as portas d’ouro com fragor…
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão - e nada mais!

(in Sonetos, 1861)




 Foto: ilustração do poema (banco onde se suicidou Antero de Quantal): © de Amadeu Baptista

terça-feira, 17 de abril de 2012

O Bosque Cintilante # 26

Johannes Brahms: Dança Húngara No. 5

São os húngaros que passam
em obscuras carroças
e entregam ao vento
a beleza avara.

Correm pelos campos
a perseguir a dança
e entregam ao vento
a beleza avara.

A beleza avara
dos húngaros que passam:
estarmos vivos
e irmos com o vento.

Com a dança intuímos
as obscuras carroças
dos húngaros que passam.
A beleza avara a correr pelos campos.


in O Bosque Cintilante, Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista
 


segunda-feira, 16 de abril de 2012

O Bosque Cintilante # 25

Georges Bizet: Intermezzo, da Suite Arlésienne

Coisas admiráveis, indeléveis, onde o escopro das mãos
submete a alma à intranquilidade, vento de coisa nenhuma, ardor
arborescente da pele e da morte, a finitude
do olhar a demarcar a fronteira entre a glória e o oiro, a alma
e os seus instrumentos precários, um pau, um ferro, aquela boca hiante
à entrada das grutas, a inútil arma de arremesso,
a desprotecção, a carência, o número dos vivos
a engrossar a legião dos anjos expulsos, sem nome,
arrastando na lama apenas um nome antiquíssimo, erosão
da montanha, inquieto mistério, levante
de grandes sóis semoventes,
transfiguração da inocência,
outros domínios.

in O Bosque Cintilante, Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista
 


domingo, 15 de abril de 2012

O Bosque Cintilante # 24

Guiseppe Verdi: Marcha Triunfal, de Aïda

Só hoje o poeta passa a acreditar em definitivo.
O quotidiano tantas vezes o encontrou desprevenido
que não viu e não foi visto nesse mistério
de além de partilhar uma palavra
partilhar também a alma, o olhar e o espírito,
e o mais ansioso lugar que o coração preserva.
Só a pedra do mar incidia até agora
no ângulo devastador das suas mãos vazias
e o que viu foi pouco mais que o incêndio
que a nebulosa dos dias um dia lhe entregou
quando não tinha dúvidas sobre a dimensão do céu
e a vida era pouco mais que duas estações,
sempre outono e inverno.
Há quem chame milagre a isto de estar vivo.
Há quem passe pela vida e jamais acredite.
Há quem não tenha fé ou simplesmente a use
para exorcizar os medos soterrados
sobre outros medos sempre inconfessáveis,
com esse rosto terrível de não terem rosto.
Há quem duvide sobre o que persiste.
Tantas perguntas celebra o poeta
que às vezes o olhamos celerado
e pensamos que é já suficiente
saber que a dúvida é o milagre
e no frágil estado em que vive é suportável
esse júbilo secreto que o acompanha.
Falando da tristeza há um vínculo de sangue.
O espaço estuante do horizonte em chamas
em que o poeta vive tem tudo a ver com a crença
que a noite ramifica em segmentos de oiro,
o silêncio e a solidão em que foi sitiado,
e mais do que a ilusão entrega a incerteza
de haver sobre a terra pouco mais que hesitação,
pese embora esse nome chamado confiança.
Coisas há que a vida transfigura
como se de repente o tempo se abrisse
e o que era sagrado fosse mais sagrado
e mais belo o movimento sobre o movimento
e em cada cúpula a pomba anunciasse
o derradeiro sinal
tantas vezes sonhado e esperado.
Sobre a surpresa outra surpresa paira
e a sucessão dos dias e das noites
é à memória que sempre deve tudo
quando na cintilação outra luz se abre
e sobre a praia uma criança corre
com o passado nos olhos onde o futuro vibra
e a fulguração de um rosto alastra para sempre
sobre a linha clara da rebentação.
Falando de tristeza há um vínculo que se cumpre
porque tudo se cumpre quando se acredita
e há-de ser o amor o bem que se procura
nesse laço que a memória pressente no presente
e vem iluminar o fio indivisível
do mistério que arde em toda a parte.
O poema o revele e o nome que o assine
e a total alegria com que se entregue o poeta,
nem sequer inocente, nem sequer indeciso,
porque o céu testemunha o que já está escrito
e a estrela que brilha é a estrela da tarde
e brilha mais o brilho em que se acredita.


in O Bosque Cintilante, Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista