sexta-feira, 20 de abril de 2012

Ruy Ventura


Ruy Ventura, poeta convidado

EXCERTOS DE 'CONTRAMINA'

I

[…]

JOÃO:
a velocidade auxilia a limpeza do motor. a incerteza do asfalto configura nos circuitos todas as sinapses que a sombra edifica. o voo não é, contudo, suficiente para limpar do habitáculo todas as marcas de ferrugem deixadas pelo sal e pela água. a oxidação toma conta das entranhas e lança sobre o estômago sedimentos e limalhas que o trânsito não consegue eliminar. mesmo limpo, o motor não ignora a entrada da erva pelas fendas do metal. chuva e calor mancham, rebentam a chapa (e a memória). o motor sobrevive ao concurso da existência. sem velocidade, sobrevive – diluído no ácido das esferas.

GRAÇA:
o ruído impede a fixação da imagem sobre a terra. rostos e palavras compõem o universo, sangue e movimento irrigam a memória – mas só o silêncio dos lagares e das fragas consegue conservar a densa melancolia de um corpo enterrado na nascente. há anjos subindo ao núcleo da montanha. sem asas, a mão mergulha por entre os ossos e dentre eles recolhe vestígios do barro que no passado unia os símbolos e a matéria.

JOÃO:
no cultivo da sombra sobre o campo, a humildade do solo transfere para os olhos um diálogo sem voz – que a luz expressa cortando e reunindo fragmentos de vida que o fogo não pôde dispensar.

GRAÇA:
carne, madeira e minério dissolvem na tinta pigmentos e saudade. nada substitui, no entanto, a rigidez de um corpo depois da morte. no calor da terra, seres e objectos fotografam imagens sem presente. na incandescência das formas, oferendas e gestos sobrepõem-se. em silêncio, somos convivas do último banquete. entre espigas e insectos, a pedra alimenta a multidão.

JOÃO:
não existe milagre nem metáfora. no eixo do planeta, a presença nasce de um encontro mineral: de um lado, moléculas ou átomos em suspensão; do outro (deste lado) a gravidade do abismo reconstruindo, sem tempo, a força das origens.

AGOSTINHO:
o ruído dos motores não impede a fixação das imagens sobre a estrada. o movimento acaba por lancetar cada uma das frases, deixando sobre a carne apenas o que lhe pertence, sem outros líquidos nascidos da decomposição da fala.

JOÃO:
o ruído dialoga com a imagem, tal como a imagem ao longo da tarde vai destruindo a essência dos motores. não há semáforos que consigam suspender a poeira sobre a mesa. nem os passos, em que a sujidade cerca os olhos sem sombra e as mãos cujas gretas representam um excesso de sangue na lembrança e na cativação dos dedos sob a pedra.

AGOSTINHO: 
a erosão é tão só um efeito de linguagem em que o freio não impede o transporte dos resíduos numa enxurrada cujo entulho ocupa todos os caminhos disponíveis. coberto o asfalto, nenhuma incisão será possível sobre os ossos ou sobre a pele. dentro deles, um cérebro resiste à entrada das vozes e à sua fixação na imagem. só o movimento admite a entrada da sombra na circulação sanguínea. sem verbo, o ruído afasta-se. dissolve-se ao entrar nas páginas e ao ver-se confrontado com outros sons cuja estrutura reforça a dissemelhança da matéria. com violência, as imagens sobrepõe-se. esfaqueiam quanto as rodeia. só assim impõem nas artérias toda a água necessária para inundar – e salgar – o mundo cuja passagem nos destrói e modifica.

[…]

II

[…]

STEFAN:
a língua arde. queima o coração, as veias, as células. entre duas árvores, a corda aperta a garganta. dissolve o anel e a saliva – essa melodia no interior do dragoeiro.

JOÃO:
o incêndio alastra, sempre de negro. sobe a escada, coloca sobre os olhos essa espada. a língua arde. deixa entre as cinzas vestígios de sombra.

STEFAN:
nada mais encontro entre os escombros. antes da derrocada, levo para longe a última gota de sangue. a saliva preenche o desespero, o sopro do oceano. fico deste lado, junto do medo. tento salvar a última fronteira. deixei um livro no sopé da montanha. consigo ler. os símbolos contudo têm pouca nitidez – mesmo quando os entendo.

WRADISLAW:
a língua arde. a flama acompanha-nos neste forno. a chama desfaz os ossos e o cabelo, o anel e a melodia onde tento navegar.

STEFAN:
de que vale cruzar o horizonte quando a cinza guarda rebentos e palavras? o incêndio alastra deste lado do oceano. o sal lava o corpo e a linguagem.o fogo devora a distância. este fogo encontra no coração (na terra?) essa ave nascida no início.

WRADISLAW:
aguardo na sombra o sangue. em ruínas, guardo sombras e palavras – o verde dessa melodia e algumas vozes cantando. recolho na síntese deste corpo a estrada, os teus olhos vigiando a cidade. respiro a pólvora. desfaço entre os dedos este muro, a linha do comboio transportando as raízes desta árvore.

JOÃO:
a madeira vai secando. a seiva desce este caminho, a cinza desse caminho sem passos, sem memória. 

WRADISLAW:
procuro a voz e o alimento, a semente (a cinza?) que nos dedos germina. na sombra e na saudade. aguardo o sangue (a morte?), esta memória. a pedra e a cal reconhecem a secura da pele em ruínas. os músculos vencem a febre e a cinza. o pilar subsiste no centro da avenida. este corpo nasce – como um rebento, entre duas raízes.

[…]

III

[…]

MANOEL:
esterco e palavras são, afinal, semelhantes. 

JOÃO:
produzem ambos uma energia surda, que alimenta as raízes, mesmo nos dias mais frios. (lembro o monte que se acumulava no pátio de uma casa hoje vazia, o odor acre mas fertilizante, o ouro espalhado sobre o campo, que a palha – pão retornado – acompanhava até às vísceras da terra. esterco? não. segmento de um círculo devolvido à humildade do mundo.)

MIGUEL:
todos os seres nos pertencem e nos modificam. palavras, transfiguram a sintaxe da floresta, fazendo estalar os veios da madeira com que vamos construindo a árvore propícia à recolha e ao registo da linguagem dos pássaros.

MANOEL:
a raiz, tão profunda, alimenta-se de magma. o vulcão rebenta. lentamente, por uma fissura aberta na superfície, o fogo vai dominando o espaço.

JOÃO:
encarna todas as folhas até povoar a língua com novos seres e palavras.

MANOEL:
ramos e tronco alastram na clareira. entra melhor o sol quando, deste lado, a cinza e a lava se tornam seres livres de erosão.


(excertos de “Contramina”, livro à espera de editor)



Foto:  ilustração dos poemas: © de Amadeu Baptista


RUY VENTURA (Portalegre, 1973) publicou os seguintes livros de poesia: Arquitectura do Silêncio (2000); Sete capítulos do mundo (2003); Assim se deixa uma casa (2003); Chave de ignição (2009); e Instrumentos de sopro (2010). Em Espanha, deu à estampa Un poco más sobre la ciudad (2004) e El lugar, la imagen (2006). A sua terceira colectânea foi traduzida nos Estados Unidos da América, num projecto cultural editado em San Francisco (Califórnia). É, ainda, investigador nas áreas do patrimómio material e imaterial.

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