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segunda-feira, 16 de junho de 2014

Vitor Vicente



VITOR VICENTE, POETA CONVIDADO


TRÊS POEMAS




KADISH PARA MAGDALENA W. 1971-2012 (QUASE EM KATOWICE)


Nunca a conheci, mas sei que sempre sentirei saudades suas.
Deste mundo, batido a teclado e entre um monitor e outro,
Guardarei as nossas memórias numa gaveta ou num guarda-roupa
Simbólicos, à semelhança da mobília dos quartos de hotel onde
Não nos amámos e que ficaram permanentemente pendentes.
Tínhamo-nos por irmãos. Tanto maior a irmandade, maior o
Incesto. Gémeos e génios, logo imperfeitos. Socialmente
Inadequados, separados no amalbençoado tempo do berço.
Serve todo este cinismo para que me seja permitido tratar o seu
Túmulo por tu. Ainda que nem no túmulo me dará honras de visita.
A seu pedido, suas cinzas serão levadas da Polónia e espalhadas
Nas colinas de Jerusalém. Onde, afinal de contas, daqui de Dublin
Ou de Katowice, vou todo o santo dia. Talvez por isto, tudo será como
Antes e continuaremos a conversar à distância. Sempre, sempre
Sem a ver e sem a ouvir. Sempre a senti-la de perto. Com a diferença de
Que, em vez de ansiedade por conhecê-la, sentirei saudades dela,
Sem que nunca a sequer tenha conhecido.




UM RELÓGIO CHAMADO ROSA (AINDA EM DUBLIN)

O ponteiro deste relógio é sem porquê. Sem que me
Dê uma resposta, o despertador toca. Volta a tocar,
Como quem riposta. Abro os olhos e vejo que os ponteiros
Estão deitados um sobre o outro e que ela não está mais a
Meu lado. Aquela que me tentava agarrar como uma (e cito-a)
“ Spider”. Ainda que não me tenha levantado, estou acordado.
Pelo menos, acordado para a pessoa que, algures na Foz do
Iguaçu, me deu este despertador e para o fato de, dias depois,
Ter começado a acordar ao lado de outra pessoa durante muitos dias,
Meses, mais de um ano, quase dois, o tempo suficiente para pensar
Que a seu lado iria acordar numa sucessão de dias que supomos
Ser infindável. Também estou desperto para o dia em que me
Despedi daquela me deu o despertador e que me disse:
“Vais sair deste quarto e nunca mais te vou ver”. Era verdade.
Confirmo, assim como, cabisbaixo, me envaideço e envergonho
Doutra verdade. Que, desde então, tenho sido despertado ao lado
De muitas mulheres que não voltei a ver no dia seguinte - algumas
Das quais não as voltei a ver nunca mais. O que não quer dizer
Que tenha aprendido a lidar com despedidas. Quando toca a
Pequena-morte, desmancham-se os mestres.




PRINCESA NEDA-MAIS-QUE-TUDO (DEBANDA DE BANGKOK)

Princesa de uma Pérsia mais que perdida,
Princesa sem preço, intocável. Exilada
No aparente distante reino da Tailândia.
Enquanto o seu principiado se esconde,
Atabalhoado,atrás das burkas, e, pelos
Buracos das ditas, espreita a réstia de estrelas
– Lá longe, ainda que no mesmo continente -
Ela veio à procura da vida. Quando a verdade
É que viver assim, encadeada pela alucinante
lâmina da lucidez, é viver sob o jugo do verdugo.




 © dos poemas; Vitor Vicente; da foto abaixo: Amadeu Baptista






Vitor Vicente, nasceu no Barreiro, em 1983. Em 2006 radicou-se em Barcelona e em 2010 em Dublin. Encontra-se em nova fase de mudança, desta vez para Katowice. Viajou por 50 países. Publicações: três livros de poesia, um diário e uma peça de teatro, além de crónicas e contos em revistas em Portugal, Brasil e Espanha. Blogs: autor de Diáspora de Dublin (http://portuguesevagamundo.blogspot.com/) e colaborador de Lisboa-Jerusalém (http://lisboa-telaviv.blogspot.com/)

terça-feira, 15 de abril de 2014

Fernando Grade



Fernando Grade, poeta convidado



PIER PAOLO PASOLINI FOI ASSASSINADO
NUMA VIVENDA DO ALTO ESTORIL

Pier Paolo Pasolini foi assassinado numa vivenda
do Alto Estoril.
Jamais em desértica praia italiana
ou nos olhos de quem passa contente objecto
sexual da Via Venetto
foi aqui nesta rua que desce dos Bombeiros
para a praia da Poça da minha infância.


A casa está rodeada de relva por todos os lados
como se fora um barco de cal
uma cisterna pouco nocturna
e então chegaram os bastardos (foram muitos)
com facas
guizos sangrentos    serpentes amestradas
pela boca
todos devagar diante do espelho que
estava quebrado no meio da erva
e desferiram sobre o corpo de Pier Paolo Pasolini
uma flecha venenosa. Mataram-no a sangue frio.
Ao cair da madrugada.
Numa vivenda do Alto Estoril.


Notícias muitas correram mundo
davam-no como morto algures em Itália:
tinha sido esmigalhado por uma rapariga que vestia de rapaz.
Penso que os jornais e as televisões endoidecem
de uma doença réptil como a magia dos trópicos:
porque Pier Paolo Pasolini morreu e
morre ainda todos os dias aqui
na minha terra (um pouco acima do Tamariz)
numa rua que desce dos Bombeiros
para a doméstica praia da Poça.


Não se esqueçam:
ao sapo coloca-se-lhe um cigarro na boca
até rebentar.

Estoril – Verão 1976
(in livro de poemas ‘Serenata ao Diabo’. Edições Mic, Estoril, Abril de 1978)





OBRAS NOCTURNAS
(PLANO)

“O direito à mentira é a melhor arma de defesa pessoal.”
                                               (Almada Negreiros)

O empreiteiro está autorizado a modificar as paredes interiores onde por
baixo o fogo nasce, mas exijo que os peitoris sejam angelicamente brancos, a pedra
serrada como os dentes das morsas. E os serventes devem deixar voar a alma,
assente em bélica argamassa de cimento e areia.

Mas que cantarias?

A pedra preta e os beijos a utilizar serão de boa qualidade. Prefiro um subtil
isolamento térmico, pode ser com leca, estranhos frutos tropicais e perfumes
austeros (betão celular).

Os pedreiros mais velhos – mestres de ronha, geometria e bagaço – podem
controlar-se nos assobios, nos uivos latinos, perante um magnético, ondulante e
magnífico cu de rapariga sonhador que cruza o chão dos andaimes. No que
respeita a juntas de dilatação, quero falar mais tarde. E os tampos de bancadas?

Aí podemos ser fogosos. Sugiro um assentamento de

tampos de pedra sobre as bancadas da cozinha. Pedra trans-

lúcida. Núbil. Largos tampos onde se acolham fogosas penas

de galinha preta, morangos de Cintra, espargos brancos (sou

doido por espargos amassados no almofariz das tuas mamas), bolo de mel, um
mapa de execução do emboço e reboco interior, três beringelas, um cálice
de jeropiga para tornar mais sádico o puré de castanhas. E sobretudo sentir que
sobre aqueles tampos alargados há-de um dia o teu corpo grácil abrir-se em
roseira para os moscardos que trago comigo. O amor em viagem é para ser feito na
cozinha ou ao sabor das ondas do mar. Na ausência destas, também serve a
banheira atulhada de espumas e champanhe.

            E de noite todos os gestos luzem melhor. Assenta-
-se os bidés com dois furos, munidos com válvula de ruídos
selvagens, sifão inglês e corrente cromados. Prepara-se a
masculina língua de cobra para ser um rodízio nos lábios
carnudos da rapariga a levitar.
            Finalmente, ao abrir do dia, os rodapés serão de
tijoleira cerâmica de barro ruivo, como os teus belíssimos
cabelos em desordem. O cheiro mágico que deixas na á-
gua…
Os quatro quartos, esplêndida a indicação dos porme-
nores, falta apenas a cal, o cheiro da cal a crescer
ao cimo das pernas, e as tuas palavra (em molho tártaro),
palavras densas mas violentas como ranger de pregos.
            Não deixes nunca que te possam esmagar o co-
ração com um pedaço de argila venenosa nu-
ma manta de trapos.

Oeiras e São Julião da Barra – 5 de Julho de 2008

(in livro de poemas ‘Os Mortos Tratam-se Por Tu’. Edições Mic. Estoril, 2011).







O SOM E A PALHA




(Desenho da série ‘Silhuetas Latinas’, de Fernando Grade)





Ouço todas as tardes em Amsterdam
um martelo de plástico
a destruir um muro feito de pedra rija.
Música repassada de água
como os bichos no meio do feno
ou apenas uma romã.
Gesto polaco
algures nas florestas do Norte.
E todas as tardes o martelo vai e
vem sobre o musgo seco.
A pedra, sim, está por baixo e contente,
na sua felicidade de ser pedra
eternamente

Amsterdam – 1971
(in antologia pessoal ’25 Anos de Poesia Antologia 1962-1987’. Edições Mic – Colecção Salamnadra / 12. Estoril, 1988)







UM BARCO DE NÉVOAS VISITOU-ME O SANGUE
(Arte Maior)

Um barco de névoas visitou-me o sangue
e (cada vez mais nocturno) deixou marcas:
são limos, corais, potros, mel de monarcas,
asas de gaivota com que danço o tango.

Corro nesse barco em noites de morango
ilhas onde o sémen se esconde nas arcas,
par’cendo maçãs velhas em vez de farpas,
ó poetas de Bocage a Anto.

Se o barco fugir, perdido no escuro
(o meu olhar seco em forma de pão duro),
venham outras sinas dar-me as mãos em fúria…

Vou ficar no mar, a ver moças de areia,
Coberto de sial nas mamas das sereias,
Farrapo de génio, de sol e luxúria…

(in ‘Os Melhores Sonetos de Fernando Grade’. Selecção de poemas por António Cândido Franco; quatro ilustrações do pintor Artur Bual; Livro comemorativo dos 30 anos de Vida Literária de Fernando Grade – 1962-1992. Edição nº. 72 de Edições Mic/Colecção Salamandra/16. Estoril – Novembro de 1992.)




© dos poemas e do desenho: Fernando Grade




foto de Amadeu Baptista



Fernando Grade nasceu no Estoril (1 de Abril de 1943). Poeta com vasta obra publicada (autor de 30 títulos individuais), artista plástico, cronista, ficcionista e crítico de arte – ‘Jornal de Letras e Artes’, ‘Século Ilustrado’ e ‘Diário de Notícias’. Fez colóquios e recitais de poesia, deu aulas de Literatura Poética Moderna (1977-96), conferências sobre artes plásticas. Inventou o Teatro de Acção (Museu de Angola, Luanda, 1967). Foi um dos criadores e teóricos do Desintegracionismo (1964-65). Foi director da Sociedade Nacional de Belas Artes, membro do seu Conselho Técnico e director-fundador da Associação Portuguesa de Críticos.





sexta-feira, 4 de abril de 2014

Luís Quintais




LUÍS QUINTAIS, POETA CONVIDADO


Ílion

I
O que se conta em Ílion
não é da perfeição
de hexâmetros,
mas da destruição
da cidade,
da impotência de deuses,
homens, bichos.
Padrões
não modelam
sagazmente
a morte.
Tudo é erro, soberba, acidente.

II
Quando Heitor foi morto por Aquiles
e em ira finalmente desatada
seu corpo arrastado ao redor da muralha de Ílion,
uma mudez percorreu o mundo.
De escândalo se arrepiaram os deuses
e as palavras, antes apetrechadas de asas,
cessaram de habitar o nosso sangue
como chama e sombra
do que profetizámos ser.
Sobre a minha mesa está a segura soberania
da violência insistente, nó
que se derrama como líquido metal, negro desígnio.
Porque morremos? Porque matamos
depois do arrepio dos deuses
e dos símbolos sepultados?
Repõe-se a ferocidade em nós,
equilíbrio dinâmico, proporção
que a si mesma se mede e se mutila.

III
Um cavalo fala,
profetiza a morte
de Aquiles.
Depois o dom da fala
escapa-lhe, e o mundo
arrasta-se,
de ira e desespero
contaminado.
Ao instante
entre a fala
do animal
e a mordaça
irremovível,
chamámos-lhe

um dia eternidade.


© Luís Quintais








Luís Quintais, nasceu em 1968. Poeta, ensaísta e antropólogo. Publicou dez livros de poesia: A imprecisa melancolia (1995), Lamento (1999), Umbria (1999), Verso antigo (2001), Angst (2002), Duelo (2004), Canto onde (2006), Mais espesso que a água (2008), Riscava a palavra dor no quadro negro (2010), Depois da música (2013) e O vidro (2014). Ganhou o Prémio Aula de Poesia de Barcelona, o Prémio PEN Clube Português e o Prémio Fundação Luís Miguel Nava. Vive e trabalha em Coimbra. A sua página pessoal na web pode ser encontrada em: luisquintaisweb.wordpress.com

quarta-feira, 5 de março de 2014

Rui Tinoco

4 POEMAS DE RUI TINOCO
(poeta convidado)


o leitor afinal sou eu

o leitor afinal sou eu
a rever o texto: mão
a massajar a cara em
frente ao papel. farrapos
de infância. a memória
longínqua do espanto
das coisas. o leitor afinal sou
eu a erguer-me do texto
a dizer-me: «isto é
solidão». eis uma outra
perspectiva para
a escrita.
sobra, porém, a dança
imperceptível das palavras e,
claro, a anotação meticulosa
dos lapsos.

(inédito)


Tanto sou leitor como …

Tanto sou leitor como
escritor. gosto de brincar
em frente ao espelho, rasgar
o branco com a caneta
para me descobrir, do outro
lado, sentado num cadeirão,
a ler atentamente o texto.
como será esse texto?

(in revista Diversos, nº. 17 )



a vernissage atraiu altas…

a vernissage atraiu
altas individualidades. sentia-se
um cheiro difuso a perfume
as roupas caras amaciavam
o olhar. compareci munido
apenas de uma interrogação.
vi-te a conversar no meio das pessoas
e dos gestos. parecias estar
convencida. os copos de champagne
erguiam-se em hastes esguias
os copos de champagne pareciam
espadas para intimidar. Foi
então que me dirigi ao bengaleiro
deixei a minha pergunta
a troco de uma ficha com
número. nunca me hei-de
esquecer: era
o vinte e cinco.

(in revista Diversos, nº. 17 )



o barco sulcava a espuma

o barco sulcava a espuma,
isto é as palavras e o leitor,
debruçado na proa,
gritou-me, a mim, que estava
recostado na margem: «é capaz
de ser uma boa ideia para um
poema, o que achas?»
não lhe respondi, para estas
coisas é necessária alguma
ponderação. quando cheguei
a casa porém percipitei-me
nas letras, e, concidência!,
não é que o leitor estava
precisamente aqui à minha
espera? há coisas que não
consigo compreender: desembarcou,
parecia feliz,
e eu compreendi que já era demasiado
tarde para contrariá-lo.


(in Era uma vez o Branco, 2013 )







                                                               © dos poemas: Rui Tinoco; da foto: Amadeu Baptista


Rui Tinoco nasceu em Vila Real, em 1971. Viveu em Braga na infância e na adolescência. Em setembro de 2011 publicou o livro de poesia O Segundo Aceno (Águas Santas, Edições Sempre-em-Pé) e o Era uma Vez o Branco em 2013 (Volta d’Mar, Nazaré). Licenciou-se na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, no Porto, onde se doutorou em 2005 e actualmente reside. 



quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

José Manuel Teixeira da Silva

                                                                                                Foto - © Amadeu Baptista




                             JOSÉ MANUEL TEIXEIRA DA SILVA,
                                      POETA CONVIDADO





ROMA, CEMITÉRIO PROTESTANTE

Ali fica o lugar dos estrangeiros
o inverso jardim anunciado
pelo sopro dos ciprestes, o baque repetido
das folhas dispostas sobre o musgo
Recolhe-se um murmúrio, o nome
do poeta escrito para sempre pela água
Eis a selva delicada, violetas
lírios violentos, um império dos gatos
Retomam o salto primitivo, soltam uma vida
por entre a tepidez terrífica das asas
Como se afundam as donzelas em relvados
todo o tempo para as tranças de pedra
as mãos em abandono sobre os seios
pomos longamente congelados

Chegaram pelo claro vapor da manhã
vaguearam as tardes estiradas pelas praças
pressentem nocturno o suspiro das fontes
o cerco de colunas derrubadas
sabiamente dispersas pelas colinas

e ali alcançam uma vida atrás da outra
as cúpulas mais distantes da cidade

in As Súbitas Permanências, Quasi edições, 2001



NA ESTALAGEM DE J. VERMEER

Alguma coisa deve unir os bebedores de todo o mundo
e, nas veredas do tempo, a tua respiração à nossa embriaguez
Habitará algures a eterna rapariga do brinco de pérola
toda essa conversa, mas não a conhecemos de lado nenhum
Sofremos apenas de visões voluptuosas
daquelas que não apuram, dilatam o olhar
Brinco de pérola, sol iluminado pela alma
joalharia fina, fulgor incrustado nas alcovas
subtilezas que nem conseguimos dizer
Bebemos, apenas bebemos

Haverá outros modos de escapar à vida
em Delft ou nesse lugar em que nos lês
já pouco sóbrio das palavras, do seu aroma 
que vem do álcool das manhãs, da crosta dos dias 
ainda metáforas que nunca conheceremos
São tudo já palavras, sonhos teus?
A estimável estalagem do mestre pintor
o sarro que retarda os passos entre as mesas
nossas canecas, os laços de cerveja espessa  
camadas delicadas de gordura nas paredes
telas com todo o tempo para o tempo?
Dirás que entretanto desaba a tempestade
a sua minúcia sobre os vivos
acrescentamos coisa pouca
confirmamos que o mestre confere os trocos
impaciente, a cada fim do mês

Dedicamos-te o desleixo ébrio com que tudo perdemos
o amarelo limão, cinzento claro, azul inimitável 
momentos de nuvens tão perfeitas 
sobre a prosaica solidez de cidade comercial
Os cúmulos trabalham, é certo, para os nossos dias de chuva
enlameiam as botas, alagam carreiros dos países baixos 
mas produzem acenos vibrantes entre vidraças
e os ligeiríssimos, soberbos contrastes
indispensáveis à contemplação dessas mulheres
Por que fazem renda, de quem é o seu sorriso
entre bilhetinhos, cartas penetradas pela luz
senhoras sentadas ao virginal
o que espreitam, o que tanto suspendem?
Não dirias melhor
Conhecemos, isso sim, algumas jovens leiteiras 
fica demasiado próximo o seu corpo oferecido
e, desculpa recordá-lo, foi sublime
o quadro de fogo e artifício
quando explodiu o paiol destes lugares
Morreu, sabias?, em labareda e sangue 
o grande mestre do mestre taberneiro

Cúmplices e alheios, algum dia, em certo lugar
a mesma realidade se desfaz de todos nós 
Sossega, bebemos, apenas bebemos
à tua tão precária saúde

in Música de Anónimo - poesia 2001-2009 (livro inédito) 



MIRADOUROS

As mães levam os filhos pela mão
mostram as ruas, os pequenos comércios
apontam o mar, planícies
outros campos muito rasos

Alcançam depois as paragens mais altas
conduzem-nos para o extremo dos caminhos
abordam os abismos, a placidez
Guardam os seus olhos em segredo
usam de serena violência
que volte tudo um dia apenas como sonhos

Acende-se o rastilho de miradouros na cidade
 chapas de sol longamente trocadas  
um código de clarões que aproxima
as coisas que não vemos
Quando a luz em si decai
aparece a grande nitidez
vem chamar vultos para a noite

As mães trespassam o labirinto
dessa teia, por nós cegos
pontas soltas que enleiam viandantes
afastam-nos para sempre
Há dias em que perguntam

de que mais vasto miradouro nos saberá alguém

onde o lugar que seja o mesmo olhar?

in O Lugar que Muda o Lugar, Língua Morta, 2013


Poemas - © José Manuel Teixeira da Silva




José Manuel Teixeira da Silva, nasceu no Porto, em 1959. Vive em Vila Nova de Gaia, onde é professor. Escreve poesia, alguma prosa, faz fotografia. Participou nas antologias poéticas  EnCantada Coimbra (Publ. D. Quixote, 2003) e Anthologie de la jeune poésie portugaise (Maison de la Poésie Rhône-Alpes, 2004), bem como  no volume colectivo Quarto de Hóspedes (Língua Morta, 2013). Colaborou nas revistas Cadernos de Literatura, Hífen, DiVersos e Falar/Hablar de Poesia. Realizou sequências fotográficas para antologias de poesia (Ao Porto, Pub. D. Quixote, 2001 e EnCantada Coimbra, Pub. D. Quixote, 2003) e para a obra Porto- A Arte do Ferro, Ed. Asa, 1997. É autor, desde 2009, do blogue súbito [http://subito-jmts.blogspot.pt/] Principais publicações: O Lugar Que Muda O Lugar (poesia, Língua Morta, 2013), Anima (poesia, com ilustrações de Ana Abreu, Língua Morta, 2011), As Súbitas Permanências (poesia, Quasi Edições, 2001), Súbito a mão (poesia, Fac. Letras da Univ. Porto, 1983), A Minha Palavra Favorita (prosa, obra colectiva, Centro Atlântico, 2007),Ver.  - 59 anotações fotográficas (fotografia, ed. autor/Blurb, 2012) .

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Nicolau Saião


                                               NICOLAU SAIÃO, POETA CONVIDADO


                                                                  5 POEMAS INÉDITOS



ATÉ AO FIM

Quando entrei na sala vi num relance que o meu demónio 
estava deitado
A boca entreaberta, um resto de baba no queixo de quem 
Dorme justamente como um anjo.
A janela pouco cerrada e o sofá chegado 
à plena luz
A manta já antiga azul e amarela roçava o chão como se
Tivesse havido por ali discreta borracheira dominical. 
Congeminei
Que ele antes de reentrar vindo do etéreo passara 
por uma tasca ou que 
aceitara a oferta toma lá dá cá de um qualquer maltrapilho
Cheio àquelas horas entradotas de uma modesta
fraternidade bebedora.
Olhando bem via-se-lhe contudo no rosto 
uma vaga felicidade
Dizendo melhor uma centelha de contentamento 
ou alegria, ou
assim como que a sensação de quem vira o mundo 
no seu lugar real
Vamos a ver, no fundo a lonjura dominava
Como se visse o cavalheiro por uns binóculos ao contrário
Cheirava um pouco a flores e vagamente 
a desodorizante
Um livro tombara no chão, ficara à espera 
aberto anquilosado
Quando abri a porta da cozinha vi sobre 
o fogão um tacho com
Uma iguaria qualquer com que se entretivera 
certamente antes de cair no leito vencido
talvez pelas canseiras das últimas horas.
Se minha mãe estivesse viva decerto 
lhe teria aplicado um raspanete
Uma expressão em dialecto se calhar 
um tabefe levezinho. O meu pai
Poria na cara aquele sorriso suave dos dias sem idade
Lá fora estrepitavam ruídos da cidade barulhenta
Contos do dia e da noite, o irresistível 
fascínio do desconhecido.
Sentei-me, a angústia apoderara-se de mim. Uma frase estranha 
Revirava-se-me na cabeça. 
Quando olhei pela janela o horizonte 
pareceu-me uma linha ténue.
Mais tarde, pensei, falaríamos a preceito. Ou antes
por entre dentes eu diria talvez
coisas sobre a grande aurora ou então sobre a memória
Sibilina dos sobreviventes imutáveis.



AQUI, ALI, ACOLÁ

Não se vai longe correndo
não se vai longe
a carne é fraca
o vento quebra ao nosso lado   as visões  os sinais
as presenças de gente e de lugares  de grandes 
árvores solitárias
de portas que se abrem e de rostos sobre o seu 
rodapé   de suas cicatrizes na madeira em que se bate
não se vai longe
dói por dentro a memória
o desejo
os grandes passos  as passadas ferindo lume
chispas mordentes de cavalo ou de avestruz no deserto
nas ruas imprecisas
mortalmente atentas
Não
não se vai longe
o peito ressoa
a mão grita
o olho soluça
e é por dentro um motor sufocando nas bermas
o nosso crescimento implume
Por isso é necessário
e vivente como andar de coruja ou leopardo
como rapariga apaixonada num café de vila remota
ir devagar
passo a passo
devagarinho como um ribeiro na pradaria   entre
árvores de fruto e plantas campestres
pé ante pé
com os dedos adejando  com os lábios
rebrilhando
e soletrar fragmentos de uma palavra serena
sonora
breve
Ir devagar
como se adormecêssemos
como se habitássemos um bosque
como se de novo chegássemos à primeira luz.



VISLUMBRE

No bote, os polícias jazem amorosos
no virar da semana
com as suas adoradas em passeio
naquele jardim com o lago meio adormecido
em que depois de remarem, como os cisnes do parque
como a lua se tivesse caído na água
ficam no vazio, olhando os bancos e a relva 
dessas horas em que as ramagens cobrem
os corpos de quem descansa e os ausentes
comem sua merenda debaixo de outras folhas
em diferentes lugares.
No barco ou ao balcão do quiosque eles sustêm
na sua mão a mão de alguém que os prolonga.
Onde estão as crianças e a música? Quando não é manhã
os barcos vogam
em busca de um horizonte em que haja noite
dentro mesmo dos corpos, até do peito fendido
em que eu contemplo as silhuetas seculares
quase no fim dos bosques onde depois se amam
e se interrogam por um nada
bocejando aqui e além.
Tocas com essa mão a primeira palavra. E notas 
no céu negro figuras como havia
na tua adolescência sussurrante. Agora
olhas ao pé do castelo um pequenino embrulho
e foi há muito tempo que o sentiste
uma e outra hora e ainda uma outra hora, essas
que de repente param e tu sorris
na evidencia que te chama. E dizes, como se nada fosse
- Ouve, jovem polícia, o teu barco quedou-se ali
e por entre as pálpebras semicerradas
o teu amor esvoaça. Oito nove de noventa e seis
repara bem
o taumaturgo testa a tua sede. O teu raro momento
tão plácido e completo como um hall sem ninguém.
Vamos embora, meu Senhor. 
Seco e magro como um vislumbre
que estimula os quartos ao derredor
andas de continente em continente
e os risos aumentam e aumenta
o choro ao canto do jardim ensolarado.
Uma palavra em calão e uma reza, uma reza
saindo sem que o soubessem alegremente das trevas.



ANUNCIAÇÃO

As mulheres do vento   parado como um planeta extinto
as mulheres doentes   as mulheres que cantam com surpresa
o seu vestido estranho como uma renda   como uma absurda mancha
as mulheres do meu dia como um peso de cores distintas
entre mim e o céu
Entram pela minha boca e censuram-me docemente
Aqui, diz uma, puseste o horror de um velho instante
ali, diz outra, não deixaste repousar os devaneios
Há uma que paira, como se me fitasse a direito, com as mãos
junto da testa, perto dos olhos, os lábios palpitando
estremecendo como uma pétala sobre a água
Mulheres de negro, afagando pastas de couro em lojas improváveis
escrevendo em papéis antigos fórmulas de gentileza
Mulheres que a diabetes assolou como praga medieval
mulheres de pernas como lírios rosados
andando ao longo duma estrada francesa
as árvores coloridas formando uma cortina imprecisa
Job de rosto erguido amargo senhor das angústias
a sua face trémula tão igual à do Senhor na noite de suor e remorsos
a sua mulher por detrás, arrepanhando as vestes
Dizei-me mulheres  onde com que luz a vossa fotografia se encarquilhou
na madeira queimada das velhas casas onde medrava a guerra
Vós sois o sustento dos pontos cardeais
Lembro-me de ti, Marion, o rosto rodando como um guindaste
e o fumo que soltavas com um meneio elegante da mão esquerda
o fumo espalhado no parque abandonado
os olhos tranquilos frios
A rua solitariamente sob a noite de Junho
e o cão o velho cão dos bosques que trotava muito devagar
A vossa figura palpitante, mulheres, irisada obscura
à luz frouxa da manhã   e o frio subindo até às portas como um animal 
a morrer.



LEVANTAMENTO DE RANCHO

O meu sargento desculpe mas ali não havia sonhos
Nem sequer daquele arroz que a prima Maria fazia
Doce como os sonhos o meu sargento desculpe
Mas é tão estúpido tão escalabitano tão
A norte de Bafatá ou mesmo 
Castelo Branco o meu sargento é um nabo
Sonhos de ovos em castelo misturados na farinha
O meu coronel desculpe mas tive de o abater
O gajo não entendia que os sonhos eram os outros
Eu não ia gastar na tropa recordações de noites várias
E já agora também lhe digo que na bolanha entre as árvores
Há um ar em silencio extremamente melancólico
O meu capitão desculpe mas não chamei a amargura
De quando conheci a Domingas uma vez encontrei-a
Já havia muitos meses que me lavava a roupa
Junto ao mercado do Pixiguiti   chorava
Era sofrida como uma mulher
Doce e tão calada como um objecto partido
O meu capitão desculpe mas tive que o abater
É uma coisa que me chateia entrarem-me nos afectos
O que é que você sua besta sabia da ternura em comissão
De serviço   o senhor que olhava de alto os taratas e os mancarras
O meu major desculpe mas era chegada a hora 
Tantos anos depois ficaram todos em fila
A vingança é o que mais mora numa cabeça de soldado
Pensa-se nisso sempre quando se passa à peluda
De modo que foi assim   fiz levantamento de memórias
E o melhor de tudo foi que já não me podiam tocar
Eram nabos frios como o esparguete o arroz sensaborão
Ficaram todos em fila pois então
Mesmo que em sonhos   e agora estes não são
De ovos e farinha como almejava nesse tempo
Quando aguardava sem chegar uma encomenda familiar
Os olhos antigos tão fundos como o pego do rio Geba
E já agora que estamos com a mão na outra massa
Que é como quem diz com a pata na G3
O meu general vá à fava   palavra de civil tão sem galões
O meu general é um nabo como na caserna se dizia.


(do livro inédito 'Escrita e o seu Contrário')


© Nicolau Saião
 
 
 
 


Nicolau Saião – Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico. Reside no agregado populacional de Atalaião.
Participou em mostras de Arte Postal em diversos países. Em 1992 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor ainda de “Assembleia geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro (1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O armário de Midas” (Moçambique, 2005), “O desejo dança na poeira do tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a publicar).
No Brasil foi editada em finais de 2006 pela Ed. Escrituras uma antologia da sua obra poética e plástica (“Olhares perdidos”) e, em 2011 o tomo em prosa “As vozes ausentes”. Fez para a “Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002) que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana “Bichos” (2005).
Tem colaborado em espaços culturais de vários países: “Saudade”, “Bíblia”, “Bicicleta”, “Callipolle”, “A cidade”, “Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”, “Revista 365”, “Jornal de Poetas e Trovadores”, “DiVersos” (Portugal/Bruxelas), “Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”, Cronópios, “Jornal de Poesia”, “António Miranda”, “Laboratório de poéticas”(Brasil), “Espacio/EspaçoEscrito”, “A Xanela”(Espanha), “La Lupe”, “Decires”(Argentina), “Botella del Náufrago”(Chile), “Blanco Móvil” (México), “Mele” (Honolulu).

 

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Fernando Esteves Pinto





Fernando Esteves Pinto, poeta convidado, três poemas:




O TEMPO QUE FALTA

I
Vê como as coisas são. 
Chega um dia e o passado não falha 
a sua correspondência moral. 
Consagra-me o dever de confirmar reconhecimento
sem que a memória confunda o que foi as minhas regiões perversas
e o que representa agora estes fantasmas do presente.

Como se o tempo escrevesse cartas de despedida
e eu sempre fingisse exílios inocentes
rendida como estou ao monólogo do corpo
e tão sensível e fragmentada como um diário efémero.

II
Como esta parede que larga a sua tinta
também a minha pele deixou de ilustrar 
qualquer frescura, tão ferida e derrubada
se parece que já nada testemunha
do artifício que eu usava quando escoltada
por cosméticos e fantasia 
tomava em minhas mãos o passaporte da boémia, 
por sombras que assinalavam a melhor direcção, 
o mais seguro desamparo do meu tesouro, 
sempre as mesmas condições e renúncias
que acabavam em contrato de desespero e hemorragia.

III
Vêm visitar-me e com elas trazem
As misérias por onde passaram.
Desfiam-me histórias da última cartada,
amparadas pelas rédeas da sorte  
e suas defesas artificiais. 
Romances impetuosos 
onde a vida se divide ao meio,
entre aventuras e jogos de cintura 
que exigem emotiva habilidade.

Ouço-as em duelo acusando as causas 
de tão intrigantes biografias:
uma lâmina urgente que afia o perigo
a roçar o peito. A presença de uma dor
que finge alívio no sigilo dos seus compromissos.  
E a desdenhosa felicidade amputando a esperança
que as conduzem no regresso.

São as meninas da ronda, parque, nocturno, 
medo e paraíso. Vivem como as nuvens 
que se desfazem milagrosas no mais fundo dos céus.
Sei que fogem do mesmo que em mim foi infortúnio: 
trocar um dia por outro dia e não sentir a carga 
que se acumula pelo tempo.



Fotos (ilustração dos poemas): © de Amadeu Baptista

Poemas: © Fernando Esteves Pinto

Fernando Esteves Pinto Nasceu em Cascais em 1961. Colaborou no DN Jovem (Diário de Notícias) e no Jornal de Letras. Em 1990 recebeu o Prémio Inasset Revelação de Poesia do Centro Nacional de Cultura. É publicado em Espanha, México e Marrocos por revistas literárias e editores independentes. Está representado em várias antologias. Em 1998 obteve uma bolsa de criação literária pelo Ministério da Cultura/Instituto Português do Livro e das Bibliotecas. Co-fundador e coordenador do “Sulscrito” – Círculo Literário do Algarve; Projecto Literário Hispano-Luso Palavra Ibérica. Livros publicados: “Na Escrita e no Rosto” (poesia); “Siete Planos Coreográficos” (poesia, edição bilingue, Huelva); “Ensaio Entre Portas” (poesia), “Conversas Terminais” (romance); “Sexo Entre Mentiras” (romance); “Privado” (novela), “Área Afectada” (poesia); “Brutal” (romance); “O Tempo que Falta (poesia); “Identidade e Conflito” (micro-ensaios); “Dispensar o Vazio” (antologia poética).

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013




José Luís Tavares, poeta convidado



MEDITAÇÃO SOBRE O PAÍS DO BASALTO

É por certo a dor de cada dia
que faz o peso do homem sobre a terra
fá-lo irmão do fogo e das moventes nuvens
sem a apreensão que os maus fados
preconizam

oh quem pudesse de olhar posto
sobre o passado e o futuro dizer
tenho o tamanho do que vivi
para continuar bastam-me
estas mãos estes pés e estes olhos

para a gente que se espraia
sobre o chão da vida
eu tenho apenas estas pobres palavras
é pouco muito pouco
mas é nelas que enredado vivo

com seus ferros e seus gumes
e se não erro certos perfumes
que deixa a gente viva do meu país
caminhando pela vida acima
naturalmente
como quem dá os bons dias

ou ao fim da rua sobre o basalto
escuro faz um pobre desenho a giz
não me perguntem não sei o que diz
mas com altiva doçura transponho-o
de um salto como quem cruza
as fronteiras de um outro país

mas é aqui o meu país
canteiro corrido com ar de petiz
barro vermelho basalto negro
polidos com cuidados de aprendiz
da mansidão que cai sobre estes umbrais

avesso das bravias bravatas
dos que astuciosa e insidiosamente
atiçam o norte contra o sul 
e erguem a língua traiçoeira
como um corrimento fétido e alucinado

mas há o bafo limpo da gente sorridente
de mãos calosas e abraço quente
há as praias de sol silente
morrendo nos batentes do dia
mas a semente da vida planta na cerviz
do habitante erguido sobre a pedra da matriz

(e há sobretudo a promessa que reconhece
no fulgor dos campos entrado outubro)

mesmo quando alguém lhe diz
hoje morreu um homem
de seu nome chamado luiz
não morreu porque quis
mas porque a morte meretriz
o marcara com a sua bissectriz

então a tristeza essa velha actriz
baila sobre os campos do meu país
onde não cresce a flor de lis
mas aprende a gente a ser raiz
sob o vento vício veloz
sulcando o tempo buscando a foz

é isto  sim é isto o meu país
pátria pequena sem cláusulas minuciosas
para a servidão que lhe prometo
honradamente nas palavras
nem virtuoso nem iluminado
mas de face erguida e boné na mão
saudando a gente alevantada do meu país

© de José Luís Tavares







José Luiz Tavares nasceu a 10 de junho de 1967, Cabo Verde. Estudou literatura e filosofia em Lisboa, onde vive. Publicou cinco livros de poesia, tendo recebido vários prémios.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

António José Queiroz


António José Queiroz, poeta convidado


Três poemas

Praia da Boa Nova

Mar. Chuva. Ventania.
No denso canavial
(em ligeiro sobressalto)
o doce golpe das palavras,
a desordem dos corpos,
o caos das línguas
na preia-mar das bocas.
Labaredas de fogo
entre enganos e afectos.
No horizonte de neblina,
o voo insondável e branco
de uma gaivota.







Adeus

Penso em ti.
Há uma voz que se repercute
no coração do poema
com a cadência de um látego incansável.
Oiço os acordes obscuros
de uma música descompassada,
o rumor de um mar intranquilo.
Regressa à memória
o desastre de um desejo envelhecido.
Está frio.
Um tímido sol anuncia
o lento suicídio do Inverno.
Penso em ti,
na vertigem súbita das falésias,
no verde e húmido
olhar da despedida.







A divina imperfeição

Caminho sem pressa pelas veredas
de um labirinto que parece não ter fim.
Oiço o som dos meus passos solitários
e sinto as fragrâncias de um jardim que se perdeu.
Entre ser livre ou ser feliz, escolhi
a liberdade de construir outro destino.
Sei agora que a minha vocação 
é o silêncio íntegro das sementes
nos campos tranquilos e lavrados.
É tarde. Do pó vim, ao pó quero regressar,
liberto, enfim, da geometria cruel do labirinto.
Dia após dia, procuro a secreta passagem
para a morada longínqua do mundo inicial.
Se Deus projectou em mim a sua imagem
em mim negou a sua divina perfeição.





Fotos (ilustração dos poemas) Sintra: © de Amadeu Baptista

Poemas: © António José Queiroz


António José Queiroz nasceu em Vila Meã (Amarante), a 4 de Maio de 1954. É doutor em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Fundador e director das revistas literárias Cadernos do Tâmega (1989-1995), Anto (1997-2000) e Saudade (2001-2010), é um dos editores dos cadernos de poesia Pena Ventosa. Publicou dois livros de poesia – Memória do Silêncio (1989) e Os Meninos Outros Poemas (1993) – e colaborou em revistas literárias de Portugal, Espanha, França, Itália e Brasil. Alguns dos seus poemas estão traduzidos em castelhano, francês e italiano. É membro da Associação Portuguesa de Escritores e da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto.