Fernando Esteves Pinto, poeta convidado, três poemas:
I
Vê como as coisas são.
Chega um dia e o passado não falha
a sua correspondência moral.
Consagra-me o dever de confirmar reconhecimento
sem que a memória confunda o que foi as minhas regiões perversas
e o que representa agora estes fantasmas do presente.
Como se o tempo escrevesse cartas de despedida
e eu sempre fingisse exílios inocentes
rendida como estou ao monólogo do corpo
e tão sensível e fragmentada como um diário efémero.
II
Como esta parede que larga a sua tinta
também a minha pele deixou de ilustrar
qualquer frescura, tão ferida e derrubada
se parece que já nada testemunha
do artifício que eu usava quando escoltada
por cosméticos e fantasia
tomava em minhas mãos o passaporte da boémia,
por sombras que assinalavam a melhor direcção,
o mais seguro desamparo do meu tesouro,
sempre as mesmas condições e renúncias
que acabavam em contrato de desespero e hemorragia.
III
Vêm visitar-me e com elas trazem
As misérias por onde passaram.
Desfiam-me histórias da última cartada,
amparadas pelas rédeas da sorte
e suas defesas artificiais.
Romances impetuosos
onde a vida se divide ao meio,
entre aventuras e jogos de cintura
que exigem emotiva habilidade.
Ouço-as em duelo acusando as causas
de tão intrigantes biografias:
uma lâmina urgente que afia o perigo
a roçar o peito. A presença de uma dor
que finge alívio no sigilo dos seus compromissos.
E a desdenhosa felicidade amputando a esperança
que as conduzem no regresso.
São as meninas da ronda, parque, nocturno,
medo e paraíso. Vivem como as nuvens
que se desfazem milagrosas no mais fundo dos céus.
Sei que fogem do mesmo que em mim foi infortúnio:
trocar um dia por outro dia e não sentir a carga
que se acumula pelo tempo.
Fotos (ilustração dos poemas): © de Amadeu Baptista
Poemas: © Fernando Esteves Pinto
Fernando Esteves Pinto Nasceu em Cascais em 1961. Colaborou no DN Jovem (Diário de Notícias) e no Jornal de Letras. Em 1990 recebeu o Prémio Inasset Revelação de Poesia do Centro Nacional de Cultura. É publicado em Espanha, México e Marrocos por revistas literárias e editores independentes. Está representado em várias antologias. Em 1998 obteve uma bolsa de criação literária pelo Ministério da Cultura/Instituto Português do Livro e das Bibliotecas. Co-fundador e coordenador do “Sulscrito” – Círculo Literário do Algarve; Projecto Literário Hispano-Luso Palavra Ibérica. Livros publicados: “Na Escrita e no Rosto” (poesia); “Siete Planos Coreográficos” (poesia, edição bilingue, Huelva); “Ensaio Entre Portas” (poesia), “Conversas Terminais” (romance); “Sexo Entre Mentiras” (romance); “Privado” (novela), “Área Afectada” (poesia); “Brutal” (romance); “O Tempo que Falta (poesia); “Identidade e Conflito” (micro-ensaios); “Dispensar o Vazio” (antologia poética).
[os sólidos testemunhos do tempo
ResponderEliminaresse traço da palavra,
o convulso traço da palavra.]
um abraço,
Lb