POEMAS DE UFFE HARDER
DESCULPE-ME, QUEM TRABALHA NA SUA FANTASIA?
Desculpe-me, quem trabalha na sua fantasia?
Uma coruja sai-te a voar do olho
Caem-te duas lágrimas dos olhos
Um sentimento estranho apodera-se de mim
O teu nome significa ‘corça’
mas os teu olhos são muito grandes
Hortênsias azuis e vermelhas atrás delas os teus olhos
Onde a felicidade abre caminho tropeçando
Sobre camas de hospital e cadáveres
Através de geadas e bosques
De súbito nos elevaremos pelos ares
Ou correremos em todas as direcções à vez
Udsiter, 1960
EM BICICLETA
Ciclistas apressados por caminhos desertos
fugazes penosamente fugazes evitando
coisas pressentimentos ideias fixas magros como
tubos de aço andaimes silenciosos rodas
sibilantes rádios faces petrificadas capacetes
caras pálidas rumos de rodas
e perdidos já de vista mas possíveis vislumbrados
em alguma parte da alba fria definições
palavras sensações talvez certeza
eternamente evasiva duvidosa certeza
o caminho como uma cinta perante eles cimento
e rasgando o espaço afiadas figuras
sibilantes fracções de pensamento de conhecimento uma palavra
um pressentimento visões uma por uma sempre uma coisa
perdida a favor da seguinte fracção de uma impossível
impossível sempre inacessível totalidade
de frouxas transformações formas infrequentes
mutantes evasivas turvas formas vislumbradas
na neblina matinal na chuva compacta na
bruma no calor tremulante o véu de fumo
as lágrimas a raiva o suor fugazes como reflexos
as chaminés girafas arrastadas pelo vento
desbaratadas assopradas pelos campos
e os pés sujeitos aos pedais
o caminho atrás deles como uma fita
Positiner, 1964
OBJECTO
Um círculo
e outro um pouco maior
e no meio uma asa mas
os lados que se inclinam para fora
também são importantes assim é que,
fundo asa lados e a
borda superior pela que se bebe
um líquido amarelo castanho avermelhado ou esverdeado
quente quase aéreo ou
mais frio mais pesado
nos lados formam-se linhas
rachaduras
todo ele ligeiramente branco
ou de alguma outra cor
está em cima de uma mesa ou transporta-se
pelo ar
Se se retirasse a taça
o chá ficaria a flutuar no espaço
ou melhor permaneceria
como um cone truncado
rodeado de ar por quase
todos os lados.
Sort på hvidt, 1968
TEMPO
O som de uma folha que cai à terra
chocando lentamente com outras folhas
e por fim aterra
como se não quisesse
expirar
mais que relutantemente
Uma concha de caracol
o cheiro a erva
Após isso um novo instante
e outro
Sort på hvidt, 1968
PROFUNDO SILÊNCIO COM NEVE
Golpes na tubagem da água
profundo silêncio com neve
que cai
diante do olho
profunda calma
neve como uma película que vai passando
trasladar os montões de neve na consciência
volta a cobrir de neve rapidamente.
Sort på hvidt, 1968
UMA COMPOSIÇÃO SOBRE ÍCARO
Dédalo, o técnico, construiu o Labirinto para o rei Minos em Creta.
Em vários idiomas as palavras que designam o artístico, engenhoso,
genial derivam do seu nome
e ainda se usam.
Mais tarde encarceraram-no nesse labirinto. Com ele estava
em cativeiro o seu filho Ícaro, um jovem adulto.
Minos, disse Dédalo (segundo o poeta), pode fechar mar e terra.
O céu está sempre aberto, esse será o caminho a tomar.
Minos governa sobre todas as coisas, excepto o ar.
Logo se puseram a trabalhar e Dédalo aconselhou:
se voares demasiado baixo
a água do mar porá as penas tão pesadas que não poderás
levantar os braços,
se demasiado alto, o sol derreterá a cera e a plumagem desprender-se-á.
E a rota: Samos, Delos e Paros,
Lebintos, Kalimnos, tão rica em mel.
Após a inquietação inicial
teve que deixar-se fascinar pela
luz, os reflexos do mar e a espuma
que tinha por baixo,
o jogo com os ventos e a possibilidade real
de mudar de altitude, do ar que o banhava,
o suave deslizamento
para cima com um ligeiro adejo,
um labirinto
de cintilações, quedas e elevações,
ligeireza e peso,
o sol a queimar-lhe as costas,
o rumor do sangue a zumbir-lhe nos ouvidos,
o suor a secar ao vento,
a madeixa de cabelo que não pode deixar para trás,
as ilhas que mudam constantemente de sítio,
as brancas montanhas a flutuar no mar,
um remoinho de nuvens, de luz, de água e céu,
o som do bater das asas no ar,
o pulsar do seu coração,
muito mais abaixo, Dédalo, mantendo uma linha recta.
À distância: um par de pontos, dois corpos com asas,
juntos no início, mas logo um deles
ascende numa curva, cada vez mais larga,
até que se precipita perpendicularmente no mar,
durante um instante o outro revoluteia sobre o lugar
e segue o seu voo, em linha recta, e desaparece.
Demasiado pesados e demasiado grandes para serem gaivotas,
e se tivessem sido deuses dificilmente teriam permitido que se
abatesse uma desgraça assim sobre eles
mas, quem sabe?
Assim é que algo indicaria que os que voavam eram seres humanos.
Que se passou pois com ele que não se afogou?
Sort på hvidt, 1968
DAQUI
Daqui
vigiamos
o eczema de violência que cobre o mundo
os movimentos dos exércitos
e a fome
algo do desespero que há no mundo
algo do sofrimento
algo da dor que estruge nos corpos
na carne queimada
Vigiamos
nada mais.
I disse dage, 1971
PALAVRAS
As palavras
não abundam demasiado
nem sequer
nesses lugares onde a qualquer
basta abrir a mão
e colhê-las
com frequência faltam as palavras
quando alguém delas precisa
se as encontra esporadicamente
em pequenos cachos
não estão prontas
quando se vão utilizar
não encaixam bem
onde deveriam encaixar
pode levá-las o vento
da despreocupação
quase parece como se
as palavras estivessem ali
por sua conta
é difícil manejar as palavras
mais difícil prescindir delas.
I disse dage, 1971
CAROÇOS DE FRUTA
Na gaveta
dois caroços
um negro
e outro castanho
que mais?
nada mais sólido
que dois caroços duros
que um dia
desaparecerão
ou atirarás pela janela
após o que
acaso nasça algo
sem relação alguma
contigo
Nu og da, 1978
O TEXTO ESTÁ IMÓVEL
O texto está imóvel
sonhando sob uma árvore
pouco depois
desaparece
metendo-se numa urtiga
afunda-se
na terra
reaparece
numa folha
há que o decifrar.
Nu og da, 1978
O MUNDO, COMO SE
Não é
como se este ano houvesse uma inusual
abundância de trevas?
Amontoam-se como se
houvesse placas de trevas
que se aparafusam umas sob as outras
como se incessantemente chegassem mais trevas
como que extraídas
de longínquos
centro produtores de trevas.
Todas estas trevas têm que significar algo
não deveria haver tantas trevas
de não significar alguma coisa
pelo chão há um rastro
de trevas a treva já
encheu todos os cantos da casa
prevejo tormentas de trevas
furacões de trevas
as trevas tratarão de rasgar as trevas
as novas trevas para haver sítio nas velhas
surgirão torvelinhos de trevas
que esmagarão as trevas
e lançarão avalanches de pedras sobre nós
chegarão rios torrenciais de trevas.
Então começarão a sério.
Até esse momento: mantém-te calmo
caminha como possas
pelos teus passadiços
pelos teus
tranquilos trilhos.
Verden som om, 1979
Versão minha - © Amadeu Baptista
Uffe Harder. Nasceu a 29 de Setembro de 1930 e faleceu a 25 de Abril de 2002. O seu livro de estreia data de 1954. Licenciado em Letras, foi crítico literário e colaborador de programas radiofónicos. Grande especialista de literatura francesa, africana, latino-americana e espanhola.
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