(Aquela noite a cidade estava cinzenta. Vi
tudo através da janela
do automóvel e o tempo
permite-nos elaborar
os sonhos em câmara lenta
um homem e
uma mulher e
a rua...
apesar
do seu auto-controlo odeiam e amam
com muita intensidade; ele
deu o braço a ela
(e por que ia eu
questionar
o evidente: tudo
ocorreu correctamente
e sem ritmo ) e ele
desaparafusou
a mão dela
da sua
extremidade e contexto. Claro que
o processo foi
doloroso mas
mudo. Logo ele desapareceu na rua
com a mão dela
na sua
(e eis que ia eu a não
os sonhos
não têm resposta )
sem mão suplicando
ela caiu
no passeio; suplicando
estendeu o seu pulso sem sangue
para mim, mas
agora
são sonhos e ninguém
sangra
agora eu
ponho o motor em marcha e desapareço
na rua
Forvandlingar mot morgonen, 1983
A conversa só deu soluções a curto prazo aos problemas práticos
porque uma reinserção social satisfatória era impossível
consideraram ambas as partes, cada uma a seu modo
E as mulheres consideraram mais cómodo contemplar a sociedade e
a realidade através de janelas fechadas e frascos de pílulas de diversas cores
e o terapeuta também admitiu esta solução como a mais cómoda
de momento e em curso
até que algo ocorresse?
Forvandlingar mot morgonen, 1983
Como aconteceu: ela manteve a sua integridade; a sua integridade sim escuta,
e a sua vulnerabilidade, as lágrimas corriam-lhe amiúde pelas melenas,
deslizando pela cara: ela não chorava nunca
entregava-se, generosamente, a estranhos, homens casados, aventureiros,
os amigos das suas amigas, às suas amigas
ela amava, sim, amava
ela desejava-os, e com gosto, que lhe fizessem mal, mas nunca muito
ao mesmo tempo
nunca acreditou em nada, deixava-se atraiçoar constantemente
um ligeiro sorriso descansava no seu rosto, como uma borboleta
revoluteava por todo o seu corpo, repetia-se,
como uma feliz recordação da infância
ela era como uma carência, em si
uma perda sempre presente
uma perda jamais esquiva, com um ligeiro sorriso
ela era esse tipo de mulher que não se aguenta, poder-se-ia
talvez aniquilá-la?
ela notou-o, aniquilou-se ela mesma
foi na luz azul de um crepúsculo primaveril, tirou os óculos de sol
: os seus olhos resplandeceram ( brilho!), atravessou a rua, com
um ligeiro sorriso pôs o cabelo para trás, pôs os óculos
de sol, desapareceu, as costas lentamente afastando-se
Falla, 1991
aqui está tudo como dantes
como se nada se tivesse passado
pese embora
o perdido, uma dúvida
pese embora algo mais: infidelidade, desconfiança
acreditámos que não tínhamos nada a perder
agora perdemo-la a ela
agora perdemos isso
nunca foi questão de experiência,
a tristeza: dependência jamais interdita, coito como fuga
onde a ternura fosse uma perda, despedida, noites sem sonhos
nada a perder
frívolos esboços a irresponsável travessura do idioma
a profunda mudez da vida a vida não narrada
:como possibilidade
a possível insegurança ambígua tremenda mentira
e verdade, ao mesmo tempo, faz estalar
o corpo do pensamento nos
compromissos impossíveis
:infidelidade
amo tudo isto: frívola irresponsável travessura, o possível, a carência,
em si
o que não podíamos perder mas
perdemos
:cair no que não pensa
que não recorda
não pode
narrar-se
Falla, 1991
A sós com o teu assassino
estiveste com o teu hipnotizador?
( sobretudo o silêncio: os sensíveis dedos sobre o teu colo
acariciando a nuca, uma pressão apenas perceptível - )
estiveste com o teu hipnotizador?
tu estás relaxada, não pensas em nada, a alma
a alma cai através da tua cara, cobre a tua cara, como
um véu: desvela –
tu cais,
a sós com o teu assassino?
tu cais
cais
cais
a sós com Deus? a alma levanta-se no teu rosto, parte-se em dois
apenas uma ligeira pressão –
Falla, 1991
na escalinata da igreja pardais palpitantes, como vivos
a luz do sol cheia às vezes o espaço como alfinetadas, o calor um
pequeno
pássaro cai um pequeno
corpo de pássaro cai sem
cabeça sim
cabeça através da luz do sol, igreja como
pedra pedra
palpitante como um corpito
vivo / na luz
Falla, 1991
ali, no outro lado
das narrações, desgostosamente o descontrolado
sorriso
o grito da mulher
nos espelhos líquidos do sonho
também a queda engana
Falla, 1991
Versão minha - © Amadeu Baptista
Agneta Enckell, nasceu em Helsínquia, em 1957, onde estudou literatura sueca e filosofia na Universidade daquela cidade. Estreou-se em 1983. É considerada uma das vozes literárias mais importantes da sua geração.
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