domingo, 13 de janeiro de 2013

Agneta Enckell




(Aquela noite a cidade estava cinzenta.  Vi
tudo através da janela
do automóvel e o tempo
                        permite-nos elaborar
os sonhos em câmara lenta

um homem    e
uma mulher   e

a rua...


apesar
do seu auto-controlo  odeiam e amam
                        com muita intensidade; ele
deu o braço a ela

(e por que ia eu
            questionar
o evidente: tudo
ocorreu correctamente
            e sem ritmo ) e ele

desaparafusou
a mão dela
            da sua
extremidade e contexto. Claro que
                                   o processo foi
doloroso mas
mudo. Logo ele desapareceu na rua
                                   com a mão dela
na sua

(e eis que ia eu a não
                        os sonhos
não têm resposta )

sem mão suplicando
                        ela caiu
no passeio; suplicando
estendeu o seu pulso sem sangue
                        para mim, mas

agora
são sonhos e ninguém
                        sangra
agora    eu
ponho o motor em marcha e desapareço
na rua

                                                                              Forvandlingar mot morgonen, 1983




A conversa só deu soluções a curto prazo aos problemas práticos
porque uma reinserção  social satisfatória era impossível
consideraram ambas as partes, cada uma a seu modo

E as mulheres consideraram mais cómodo contemplar a sociedade e
a realidade através de janelas fechadas e frascos de pílulas de diversas cores
e o terapeuta também admitiu esta solução como a mais cómoda
de momento e em curso
até que algo ocorresse?
                                                               
                                                                            Forvandlingar mot morgonen, 1983



Como aconteceu: ela manteve a sua integridade; a sua integridade sim escuta,
e a sua vulnerabilidade, as lágrimas corriam-lhe amiúde pelas melenas,
deslizando pela cara: ela não chorava nunca
entregava-se, generosamente, a estranhos, homens casados, aventureiros,
os amigos das suas amigas, às suas amigas
ela amava, sim, amava
ela desejava-os, e com gosto, que lhe fizessem mal, mas nunca muito
ao mesmo tempo
nunca acreditou em nada, deixava-se atraiçoar constantemente
um ligeiro sorriso descansava no seu rosto, como uma borboleta
revoluteava por todo o seu corpo, repetia-se,
como uma feliz recordação da infância
ela era como uma carência, em si
uma perda sempre presente
uma perda jamais esquiva, com um ligeiro sorriso

ela era esse tipo de mulher que não se aguenta, poder-se-ia
talvez aniquilá-la?
ela notou-o, aniquilou-se ela mesma

foi na luz azul de um crepúsculo primaveril, tirou os óculos de sol
: os seus olhos resplandeceram ( brilho!), atravessou a rua, com
um ligeiro sorriso pôs o cabelo para trás, pôs os óculos
de sol, desapareceu, as costas lentamente afastando-se

                                                                              Falla, 1991


aqui está tudo como dantes
como se nada se tivesse passado
                                   pese embora
o perdido, uma dúvida
pese embora algo mais: infidelidade, desconfiança

acreditámos que não tínhamos nada a perder
agora perdemo-la a ela
agora perdemos isso

nunca foi questão de experiência,
a tristeza: dependência jamais interdita, coito como fuga
onde a ternura fosse uma perda, despedida, noites sem sonhos

nada a perder

frívolos esboços a irresponsável travessura do idioma
a profunda mudez da vida a vida não narrada
:como possibilidade
a possível insegurança ambígua tremenda mentira
e verdade, ao mesmo tempo, faz estalar
o corpo do pensamento nos
compromissos impossíveis
:infidelidade

amo tudo isto: frívola irresponsável travessura, o possível, a carência,
em si

o que não podíamos perder mas
perdemos

:cair no que não pensa
                        que não recorda
                        não pode
                        narrar-se

                                                                              Falla, 1991



A sós com o teu assassino
estiveste com o teu hipnotizador?

( sobretudo o silêncio: os sensíveis dedos sobre o teu colo
acariciando a nuca, uma pressão apenas perceptível - )

estiveste com o teu hipnotizador?
tu estás relaxada, não pensas em nada, a alma
a alma cai através da tua cara, cobre a tua cara, como
um véu: desvela –
tu cais,
a sós com o teu assassino?
tu cais
    cais
    cais

a sós com Deus? a alma levanta-se no teu rosto, parte-se em dois

apenas uma ligeira pressão –

                                                                                              Falla, 1991


na  escalinata da igreja pardais palpitantes, como vivos
a luz do sol cheia às vezes o espaço como alfinetadas, o calor um
pequeno
pássaro cai   um pequeno
corpo de pássaro cai sem
cabeça sim
cabeça através da luz do sol, igreja como
pedra   pedra
palpitante como um corpito
vivo / na luz

                                                                                              Falla, 1991





ali, no outro lado
das narrações, desgostosamente o descontrolado
            sorriso
                       
                        o grito da mulher
nos espelhos líquidos do sonho

também a queda engana

                                                                                              Falla, 1991   

Versão minha - © Amadeu Baptista

      




Agneta Enckell, nasceu em Helsínquia, em 1957, onde estudou literatura sueca e filosofia na Universidade daquela cidade. Estreou-se em 1983. É considerada uma das vozes literárias mais importantes da sua geração.

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