quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Sigfús Dadason



Poemas de Sigfús Dadason



A CABEÇA HUMANA É ALGO PESADA

A cabeça humana é algo pesada
e no entanto temos que andar direitos
e o verão compensa-nos de todas as faltas

Deixamos a nossa velha residência
– como jornais na papeleira –
seguimos adiante sem olhar para trás

Ou quebramos de repente o telhado de vidro
que protege os nossos velhos dias?
para isso nos pomos a caminho.

E inclusivamente ainda que caíssemos
o sol converter-nos-ia em matéria prima
e pouco a pouco voltaríamos a ser um todo.

Um rosto conhecido, um som, um vento suave
são o teu tesouro, filho,
novo e excitante.

Ljód, 1947-1951



A qualquer fica bem morrer
sob a luz radiante e contemplar o seu próprio sangue
contemplar como o seu sangue flui e coalha
nuns olhos escuros pouco antes do dia
que se eleva de uns olhos escuros, atrás do muro
de orvalho sedoso, de madrugada numa breve noite de
primavera

morrer distante de uns olhos abertos e tranquilos
e de uns braços ternos, de umas mãos suaves, refrescantes
justamente antes da alba com a luz das suas pesadas cargas,
o odor das ruas quentes, a chuva de água fria
e escutar o automóvel que arranca os pés
que se distanciam com os seus rápidos passos matinais: sentir
que a noite toca o seu fim
talvez haja alguém
presente para ver explodir os olhos
justamente antes da alba.
Isso a qualquer fica bem.

Ljód, 1947-1951



NASCERÁ EM NÓS O DIA UMA VEZ QUEBRADO O SELO

Nascerá em nós o dia uma vez quebrado o selo,
quando fizermos farrapos da nossa própria imagem

quando tivermos comprado com tudo o que temos
o que nunca saberemos o que é

quando tivermos deixado a vida e a morte
no punho fechado do que sempre escapa

quando tivermos aprendido a apreciar totalmente
a suavidade da pedreneira, a trémula dureza da água

Nascerá então em nós o dia
nascerá então em nós o dia
após a grande noite?

Ljód, 1947-1951



PALAVRAS

Palavras
cada vez digo menos palavras
já que há muito que me são antipáticas.
Dizem que são uma marca de nobreza
mas não pensam como as palavras são caras
nem como podem pagá-las.

Em breve escurecerá
do mais não sabemos muito
olhai: formosos rostos
rostos atormentados desfilam
desfilam e desaparecem

e almas hipócritas em toda a parte
ocupam-se em prolongar o dia
(para que não desistamos
de procurar a linguagem quimicamente pura
e a usem em segredo).

Mas estávamos a falar, creio, das palavras
para muitos são seguramente dóceis
colhem pelo caminho ramos de palavras
e falam sem que alguma vez entendam.

De qualquer modo, eu pediria aos homens
que usassem com cuidado as palavras
porque podem explodir
ainda que resulte ainda mais perigoso
que se encharque a pólvora.

Perante este dilema tenho-me sempre sentido aterrado

e na realidade sabemos muito pouco
excepto de que em breve escurecerá

lua nova
novo copo de vinho
novissima verba.


N. do T. ‘Novissima verba’: expressão latina para ‘as últimas palavras’ ou ‘ as palavras mais recentes’

Hendur og ord, 1959






PÕE UMA PISTOLA NA MÃO

Põe uma pistola na mão
Põe uma pistola em cada mão.

Estica o braço
e dispara
como deve ser.

Dispara sem premeditação
e sem hesitação
alguém fará de alvo.

As testemunhas desse assassinato
estavam – depois de tudo –
ausentes ou distraídos.

O juiz, no final,
considerará as pistolas
o assassinato
e as testemunhas do assassinato
como símbolos de uma obra de arte.


Hendur og ord, 1959



AS CIDADES ACOLHERAM-TE SEMPRE COM OS BRAÇOS ABERTOS

As cidades acolheram-te sempre com os braços abertos
amas mães docemente
durante muito tempo chorou
o ferro e a terra fria
abriu-se engoliu-te e devolveu-te inteiro
ao princípio querias-te livre
solto mas logo puseram
os minutos ressonantes uma grilheta nos teus pés.

Preso à velocidade tinhas um desejo
oculto e silencioso: seguir sempre adiante
entregar-te ao prazer desgarrado que sempre perde
o que é e sem olhar atrás transforma
a vida em morte e a morte em vida
e saúda a vitória na derrota e sempre
se distancia.

Companheiros sensíveis os teus olhos
sonolentos uniram a tua metade ao seu mundo
da cidade futura: e mendigos, prostitutas e ratoneiros
névoa e fedores e o aluvião de gente ao entardecer
envolvem-te poderosos libertam-te
atraem-te e concedem-te o perdão e o instinto:
Levanta-te, põe a tua carga ao ombro e olha
a cidade
recebe-te com os seus braços abertos, cálidos e radiantes.

Hendur og ord, 1959



PELOS NOSSOS CORAÇÕES PASSA A LINHA DE FOGO

Pelos nossos corações passa a linha de fogo
mas a batalha tem lugar na nossa ardente cabeça
na metade de cada campo agrupam-se as hostes
e cada casa baixa é uma face destroçada

de esperanças e desesperanças assim é esta primavera
as árvores vivem em luz e ciclones velozes
constantemente forjam a tempestade na brisa da tarde
onde se ocultarão no outono os seus iguais?

Mártires e heróis que no passado os enfrentastes
verdugos e padres vós possuíste
essa fé que desloca montanhas e por isso elevaste-vos
intrépidos com a fé intensa que move as serranias

conta o inumano, contra o incomensurável
que era para vós o pequeno; o vosso exemplo
durará os outonos, os anos e os séculos
mártires e heróis sois Fénix que renasce

a esperança banhada na luz. O rumor suave
do sangue sob a pele indefesa no coração
transparente
dos homens e dos deuses linguagem e código
da eternidade
de uma vida: com espírito de homem e corpo de terra.

Hendur og ord, 1959



RISO

Um riso espontâneo chega-me da noite
um riso claro que morre e se perde no escuro
e que não sei a quem ia dirigido…

… Nem sei quem pôde suscitar esse riso
despreocupado, alegre, claro, cristalino…

E ainda que talvez se sentisse culpado
de só ser capaz de suscitar o riso
de ter tido parte desse riso inesperado
que fugazmente iluminou com um resplendor áureo
tristezas e dores…

Fá ein ljód, 1977


Versão minha - © Amadeu Baptista





Sigfús Dadason (1928-1996), é um dos poetas islandeses mais destacados, tendo alterado profundamente o panorama da poesia islandesa do século XX. Os seus poemas reflectem sobre a vida e a morte, fazendo uma dura crítica ao militarismo e as carências sociais e humanas. Foi também tradutor de poesia, designadamente poesia francesa.

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