domingo, 29 de julho de 2012

Livros do Autor


Este blogue vai ficar de férias até ao próximo mês de Setembro.
Até lá ficam dois poemas dos meus livros mais recentes.




DOIS MIL E NOVE

(à memória de Rogério Ribeiro)

É de lugares improváveis que as imagens chegam.
A sombra e a luz acentuam as formas das figuras
e há um risco etéreo que o criador recebe
para que seja translúcido o horizonte e a harmonia

estabeleça um fragor luminoso sobre as coisas,
uma escuridão. Eis o que se imagina:
a grande noite acende-se na tela e o pintor
anima-a, a recolher do espaço o que é divino

à força de aguarelas ou de óleos, de pincéis
e incêndios, sendo nítida a transfiguração
em que as figuras voam e, com elas, o olhar.
Vendo bem, quem vê vê mais do que observa,

porque o pintor entrega no que faz um tempo
de outros tempos, onde há homens e mulheres
surpreendentes, perpassados de verdes e azuis,
de praias e de árvores em que a luz

é como uma abertura no céu ou na folhagem,
que faculta o porvir e desoculta
todo o mistério que o sortilégio adensa
e à pintura chega para que a vida seja.

Eis as figuras: são deuses e duendes
de uma cosmogonia antiquíssima
em que a terra se revê e o poema
lentamente aflora para que a terra

tenha um nome e seja a cor
não mais do que fascínio e desassombro
do que o confronto cria sobre tudo
e o pintor, pelo silêncio límpido, resgata

para que o mundo se amplie sobre o mundo
e o claro interior do labirinto
transcenda a eternidade
pelo lápis, a anilina, o desenho.

Eis como o fascínio que há em cada imagem
atrai a voz do olhar e tudo é novo: no mistério
das coisas a luz alastra e é o criador o ser criado,
um fragor obscuro sobre as coisas,

uma constelação.


(in Açougue. Lisboa, & Etc, 2012)








O homem é, antes de mais, criança.
Tem olhos para ver e sabe ouvir
tudo o que se agiganta sobre as casas,
a chama da candeia sobre a mesa e as sombras

que iluminam a cal da sua enxerga vertical.
Com dois paus repercute o horizonte
que o chama, sendo que é certo que observa tudo
com predestinada invenção, a cama diminuta

em que se deita, o prato de alumínio de que recolhe
uma fracção de pão, o resplendor de uma camisa
que rescende a lavado, as árvores da ribeira,

além de uma miríade de segredos que invectivam
a que seja veloz a aprendizagem e lenta
a descoberta.



(in Atlas das Circunsdtâcias. Póvoa de Santo Adrião, Lua de Marfim, 2012)





Para todos os amigos e amigas deste blogue fica o desejo de umas excelentes férias.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

João Rui de Sousa


João Rui de Sousa, poeta convidado

TRÊS POEMAS


FRIO


Eis o estampido
que em noite gelada
em mim recolheu.


O frio era tanto
que o gelo estalava
com frio também.


A névoa era muita.
E um barco partia
bem colado à bruma.


E a morte seguia
com o frio que fazia
em cerco de espuma.


O gelo era tanto
que a mão do quebranto
a mim se estendeu.  


Sentado num banco
o frio era tanto
que o frio era eu!







NÃO, NÃO É POSSÍVEL


Não – não é possível qualquer sono
com versos que não rasguem bem por dentro
a raiva das ruínas que se bebem
com ceifadas luas ou rosados sonhos.


Não – não é possível esse vento
que não levasse o ar até à vida:
fosse ela flor em crista de subida,
como alor de criança em crescimento,
fosse ela a faca lenta da descida
que vai de um fio de água ao desalento.


Não – não é possível ser esquecida
quanta matéria voga em cada dia,
o quanto fio perfaz nossa existência.







IR PELO MAIS LARGO


Eu sonho-me eu sobro-me eu excedo-me.
Jamais permitirei que me aparafusem
à parede das restrições.  Jamais me coibirei
de colorir com as cores mais vivas os vidros
interiores. Jamais impedirei a explosão
contínua de mim mesmo (ou seja: de todo 
o granito que aí se acoite).


Irei pelo mais largo,
pela máxima amplitude de voz
e de palavras, pelos horizontes
mais fundos e verdejantes, 
pelo sagrado voo e pelas pastagens
de uma excelsa ciência:
a de nada trair de essencial
à possível harmonia do mundo,
e à mais fraterna visão libertária.





Fotos (ilustração dos poemas): © de Amadeu Baptista

Poemas: (incluídos no livro Quarteto para as Próximas Chuvas. Lisboa, Publicações D. Quixote, 2008) © João Rui de Sousa


João Rui de Sousa nasceu em Lisboa, em 1928. Depois de concluído o curso técnico agrícola pela Escola Prática de Agricultura D, Dinis (Paiã, Odivelas), licenciou-se em C. Históricas e Filosóficas, pela Faculdade de Letras de Lisboa.  Co-dirigiu a revista Cassiopeia (1955), onde fez a sua estreia literária. Tem colaborado em inúmeros jornais, revistas, antologias e volumes colectivos.   Para além de alguns volumes de natureza ensaística, publicou, a partir de 1960 – em que fez sair Circulação e A Hipérbole na Cidade –, cerca de dezena e meia de livros de poesia. À sua Obra Poética (2002), onde reuniu todos os livros editados até 2000,  foram atribuídos os prémios da Associação Portuguesa dos Críticos Literários e do PEN Clube Português. Tendo posteriormente publicado Lavra e Pousio (2005) e Quarteto para as Próximas Chuvas (2008), a este último volume foram atribuídos os prémios «Teixeira de Pascoaes» (C. M. Amarante) e «António Ramos Rosa» (C.M.Faro). No ano em curso (2012), a Associação Portuguesa de Escritores conferiu-lhe,
pelo conjunto da sua obra, o prémio «Vida Literária». 

'Para Montante das Fontes'





Espinho, inauguração dia 28 de Julo, pelas 16 horas
Galerias Amadeo de Souza-Cardoso
Museu Municipal de Espinho

terça-feira, 24 de julho de 2012

O Bosque Cintilante # 59

Johann Strauss: Polca Húngara

Passos pequenos num exíguo espaço
para alvoroçar a alegria. A neblina
dissipa-se entre Maio e Junho
para que algo se relige neste mundo
ao que chega do espírito e quase hesita
entre o que o corpo afirma e a alma teme.
Mas acendem-se as luzes e a escuridão amplia
o pequeno firmamento em que sonhamos.


in O Bosque Cintilante, Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista

segunda-feira, 23 de julho de 2012

O Bosque Cintilante # 58

Wolfgang Amadeus Mozart: Andantino,
do Concerto para flauta e harpa


Ninfetas que a tarde primaveril de Salzburgo
entrega e não entrega, como ondas
de uma praia que subiram e desceram o areal
para maior desejo e maior luz. Faunos

no bosque aureolados, como árvores
que a sombra incendiasse e o sol
em contra-luz fizesse desaparecer. Desejo ainda
de ver unida a terra com o céu

em arterial fulgor como se fosse
uma ideia de fogo sobre o ar
além de sonhos que tangíveis sejam.

E tudo isto a música cingindo.
Não fosse a metamorfose e estaríamos
obscuramente tristes e vencidos.


in O Bosque Cintilante, Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista


domingo, 22 de julho de 2012

Edith Södergran



ATÉ AO ENTARDECER ARREFECE O DIA

I

Até ao entardecer arrefece o dia...
Bebe o calor da minha mão,
a minha mão tem o mesmo sangue que a primavera.
Toma a minha mão, toma o meu braço branco,
toma a nostalgia dos meus ombros magros...
Seria maravilhoso sentir,
uma única noite, numa noite como esta,
o peso da tua cabeça no meu peito.


II

Atiraste a rosa vermelha do teu amor
no meu branco regaço -
tenho nas minhas mãos ardentes
a rosa vermelha que não tardará a murchar...
Oh, soberano de olhos frios,
aceito a coroa que me entregas,
a coroa que dobra a minha cabeça para o meu coração.


III

Vi hoje pela primeira vez o meu senhor,
tremendo o reconheci imediatamente.
Agora sinto a sua pesado mão sobre o meu leve braço...
Onde está o meu cantante sorriso virginal,
a minha liberdade de mulher com a cabeça alta?
Agora sinto o seu firme abraço ao meu corpo palpitante,
oiço agora o duro som da realidade
contra os meus frágeis, frágeis sonhos.


IV

Procuravas uma flor
e encontraste um fruto.
Procuravas uma fonte
e encontraste um mar.
Procuravas uma mulher
e encontraste uma alma -
estás decepcionado.

                                               Dikter, 1916



DEUS

Deus é um leito, no qual descansamos estendidos no universo
puros como anjos, respondendo com olhos de um azul de santo à
    saudação das estrelas;
deus é uma almofada em que apoiamos a cabeça, Deus é um
    suporte para o nosso pé;
deus é uma reserva de força e uma escuridão virginal;
deus é a alma imaculada do inadvertido e o corpo já corrupto
   do inimaginável;
deus é a água parada da eternidade;
deus é fecunda semente do nado e o punhado de cinza dos
   mundo queimados;
deus é as miríades de insectos e o êxtase das rosas;
deus é um balancé vazio entre o nada e o universo;
deus é um cárcere para as almas livres;
deus é uma harpa para a mão da mais violenta cólera;
deus é o que o anseio pode fazer baixar à terra!

                                               Dikter, 1916




VIERGE MODERNE

Não sou uma mulher. Sou um neutro.
Sou uma criança, um pagem e uma audaz decisão,
sou um raio ridente de um som escarlate...
Sou uma rede para todos os peixes glutões,
sou um brinde em honra de todas as mulheres,
sou um passo para a casualidade e a perdição,
sou um salto na liberdade e no eu...
Sou o murmúrio do sangue no ouvido do homem,
sou o arrepio da alma, nostalgia e negação da carne,
sou um letreiro que anuncia a entrada para novos paraísos.
Sou uma chama, inquisitiva e intrépida,
sou uma água, profundo até aos joelhos mas audaz,
sou fogo e água em união sincera sem condições...

                                               Dikter, 1916


A ÚLTIMA FLOR DO OUTONO

Sou a última flor do outono.
Embalaram-me no berço do verão,
puseram-me de sentinela ao vento do norte,
chamas vermelhas floresceram
na minha face branca.
Sou a última flor do outono.
Sou a mais jovem semente da primavera morta,
é tão fácil ser a última a morrer:
vi o mar tão fabuloso e azul,
ouvi palpitar o coração do verão morto,
o meu cálice contém apenas a semente da morte.
Sou a última flor do outono.
Vi as profundas galáxias do outono,
contemplei a luz de cálidas casas longínquas,
é tão fácil percorrer o mesmo caminho,
vou fechar as portas da morte.
Sou a última flor do outono.

                                               Dikter, 1916



NÓS, AS MULHERES

Nós, as mulheres, estamos muito próximo da obscura terra.
Perguntamos à lâmina o que espera da primavera,
acolhemos nos nossos braços o pinheiro nu,
procuramos no pôr-do-sol signos e conselhos.
Uma vez amei um homem, ele não o acreditava...
Chegou num dia frio com os olhos vazios,
partiu num dia pesado com o esquecimento no rosto.
Se o meu filho não vive, é sua...

                                               Dikter, 1916



AMOR

A minha alma era um vestido azul pálido da cor do céu;
deixei-o sobre uma rocha, na borda do mar,
e nua me aproximei de ti e parecia uma mulher.
E como mulher me sentei à tua mesa
e brindei com um copo de vinho e respirei o aroma das rosas.
Encontraste-me bela e parecida com alguém que tinhas visto
   em sonhos,
esqueci tudo, esqueci a minha infância e a minha pátria,
sabia apenas que as tuas carícias me faziam cativa.
E tu, sorrindo, tomas-te um espelho e pediste que me olhasse.
Vi que os meus ombros eram de pó e se desmoronavam,
vi que minha beleza estava doente e só desejava desaparecer.
Oh, abraça-me, abraça-me com tal força que eu não precise de mais nada.

                                               Dikter, 1916


A IRMÃ DA VIDA

A vida a quem mais se parece é à morte, sua irmã.
A morte não é diferente,
podes acaricia-la e tomá-la na mão e pentear os seus cabelos,
ela entregar-te-á uma flor e sorrirá.
Podes poisar o rosto no seu peito
e ouvi-la dizer: é hora de partir.
Ela não te dirá que é outra.
A morte não jaz verde e branca com o rosto no chão
nem de costas sobre uma camilha branca:
a morte passeia-se com faces rosadas e fala com todos.
A morte tem expressões delicadas e  faces pias,
sobre o teu coração coloca a sua mão suave.
O que sentiu essa mão suave mão no coração,
a esse não o aquece o sol,
é frio como o gelo e não ama ninguém.

                                                               Dikter, 1916

A VIDA

Eu, minha própria prisioneira, digo-vos:
a vida não é a primavera, vestida de veludo verde claro,
nem uma carícia, que raras vezes se recebe,
a vida não é uma decisão de partir
nem dois braços brancos que nos retêm.
A vida é o estreito anel que nos mantém cativos,
o círculo invisível que jamais atravessamos,
a vida é a felicidade próxima que nos passa de longe,
e os mil passos que não nos decidimos a dar.
A vida é alguém desprezar-se a si mesmo
e permanecer imóvel no fundo do poço
e saber que o sol brilha no alto
e que pássaros dourados cruzam voando o ar
e que os dias passam como rápidas flechas.
A vida é agitar a mão num breve adeus e ir dormir a casa...
A vida é um ser estranho para si mesma
e uma nova máscara para qualquer outro que venha.
A vida é manejar imprudentemente a felicidade
e repelir o instante único,
a vida é crer-se frágil e sem atrevimento.


                                               Dikter, 1916


DECISÃO


Sou uma pessoa muito madura,
mas ninguém me conhece.
Os meus amigos têm uma falsa imagem de mim.
Eu sopesei a docilidade nas minhas garras de águia e conheço-a
    bem.
Oh, águia. Que doçura no voo das tuas asas!
Vais ficar em silêncio como tudo?
Queres talvez escrever? Mas não escreverás mais.
Cada poema será a perversão de um poema,
não poema, mas garras de águia.

                                               Framtidens skugga, 1920


CATIVEIRO

Cativa, cativa... quero fazer em pedaços as minhas cadeias.
Com lábios dolorosamente raivosos passo pela vida.
Meus abismos, por que pergunto por vós, vós não mereceis
    esse nome.
O bronze funde-se com o bronze e faz-se homem,
e o homem tem ferro no seu coração.
Mas acaso o bronze recebeu esse brilho aterrador na seu rosto
do deus dos raios?
Arrasto o meu coração pelo caminho, que o repartam os abutres -
a lua cheia  ilumina-me um novo.

                                               Landet som icke ar, 1925



REGRESSO

As árvores da minha infância erguem-se jubilosas à minha volta:
            oh, humanidade!
e a erva dá-me as boas-vindas no regresso dos países longínquos.
Agora volto as costas a tudo o que deixei para trás:
o bosque e a praia e o lago serão os meus únicos companheiros.
Agora bebo sabedoria da sumarenta copa dos abetos,
agora bebo verdade do tronco seco da bétula,
agora bebo poder da mais pequena e fina fibra da erva:
um poderoso protector estende-me misericordioso a mão.

                                               Landet som icke ar, 1925



A LUA

Que maravilhoso é todo o morto,
e que indescritível:
uma folha morta e um homem morto
e o disco da lua.
E todas as flores sabem um segredo
e o bosque guarda-o,
e a órbita da lua em torno da terra
é a rota da morte.
E a lua tece a sua maravilhosa teia,
a que as flores amam,
e a lua tece a sua fantástica rede
em torno de tudo o que vive.
E a lâmina da lua sega flores
nas últimas noites do outono,
e todas as flores esperam o beijo da lua
com infinita ânsia.

                                               Landet som icke ar, 1925



O PAÍS QUE NÃO EXISTE


Anseio chegar ao país que não existe,
porque estou cansada de desejar tudo o que não existe.
A lua fala-me do país que não existe
em prateadas runas.
O país onde todos os nossos desejos serão prodigiosamente
    satisfeitos,
o país no qual cairão as nossas cadeias,
o país onde refrescaremos o nosso rosto ferido
no orvalho da lua.
A minha vida foi uma ardente ilusão.
Mas uma coisa encontrei e uma coisa logrei -
o caminho para o país que não existe.
No país que não existe
está o meu amado com uma coroa resplandecente.
Quem é o meu amado? A noite é negra
e é tremura a resposta das estrelas.
Quem é o meu amado? Qual o seu nome?
Os céus abobodam-se, mais alto, sempre mais alto,
e um filho do homem afoga-se nas brumas infinitas
e não sabe a resposta.
Mas um filho do homem não é outra coisa senão certeza,
e levanta os seus braços mais acima de que todos os céus.
E ouve-se uma resposta: Eu sou o que tu amas e sempre amarás.

                                               Landet som icke ar, 1925


 
Versão minha - © Amadeu Baptista


 




Edith Södergran (1892-1923). Nasceu em São Petersburgo. Viveu grande parte da infância na Carélia, zona de confluência russo-finlandesa. Estudou num colégio alemão e os seus primeiros poemas foram escritos nessa língua. Doente de tuberculose desde os 16 anos, passou vários anos num sanatório suíço e morreu dessa enfermidade em 1923. É considerada como uma das figuras de topo do modernismo finlandês.

sábado, 21 de julho de 2012

Helena Cidade Moura 1924 - 2012



Helena Cidade Moura, responsável pela maior campanha de alfabetização organizada em Portugal no pós-25 de Abril, faleceu na sexta-feira, em Lisboa, aos 88 anos.

Helena Cidade Moura acompanhou mais de 400 cursos de alfabetização e foi deputada à Assembleia da República na I, II e III legislaturas.

Foi dirigente do Movimento Democrático Português - Comissão Democrática Eleitoral (MDP/CDE), uma das mais importantes organizações políticas da oposição democrática ao regime do Estado Novo e que depois do 25 de Abril se constituiu como partido político.

Publicou ainda várias obras, entre as quais o ‘Manual de Alfabetização’, em 1979.

João Tomaz Parreira





3 SALMOS INÉDITOS




SALMO 7


Aos que me perseguem, o Senhor apaga
o meu rasto, esconde os meus passos
dos olhares felinos, o meu coração
está aberto para Ele
Meu Deus haverá remédio para mim
a minha alma já não teme o teu arco curvado
nem as setas inflamadas
começa a aprender os altíssimos louvores
na tua própria língua.





SALMO 51


Ó Deus, o meu pecado ensurdece-me
é no meu interior um ruído 
como a convulsão da terra, antes do sismo
os meus delitos entraram na corrente sanguínea
dá-me, ó Senhor, um coração branco
renova a verdade que um dia escolheste
nos meus olhos, como a neve nos ramos
das árvores, embranquece 
os meus ossos humilhados
e os lábios 
desenharão palavras de alegria.





SALMO  121


A dureza dos montes começa nos meus olhos
um paradoxo
para quem tem sublimes alparcas de voar
por isso fecho os olhos e os lanço
fora da órbita do mundo
para ti, Senhor, que fizeste o azul
onde puseste esta raíz dos homens
que é a terra 
não haverá queda  porque teus passos
são os mesmos do Senhor, diz
a voz que extingue dentro de mim
os medos que o Sol e a Lua
costumam esconder.


© João Tomaz Parreira

Do livro Falando entre vós com Salmos (inédito)










Fotos (ilustração dos poemas): © de Amadeu Baptista

Poemas© de João Tomaz Parreira

João Tomaz Parreira ou J.T.Parreira, Lisboa, 1947. Poeta. 6 livros de poesia (Este Rosto do Exílio,1973; Pedra Debruçada no Céu, 1975; Pássaros Aprendendo para Sempre, 1993; Contagem de Estrelas, 1996; Os Sapatos de Auschwitz, 2008; e Encomenda a Stravinsky, 2011 ). Um ensaio teológico (O Quarto Evangelho - Aproximação ao Prólogo, 1988). Participação em Antologias. Escreve na revista  evangélica «Novas de Alegria» desde 1964 e no Portal da Aliança Evangélica Portuguesa. Na juventude escreveu poesia e artigos no suplemento juvenil do "República", entre 1970-1972.

Nota: sob a etiqueta 'Reincidências' se registará toda a colaboração neste blogue dos poetas que já tenham por cá passado como Poetas Convidados

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Rute Mota


Foto: © de Nuno Costa




Rute Mota, poeta convidada


3 poemas inéditos


Viajo dentro de um cisne. Não
acredites se te disser, o lume
não é um lugar de conforto. Aqui
ninguém dorme. Mas toma só
um pouco deste fruto que fende
por dentro dos lábios, como
uma estrela íntima. Não penses
nunca que a morte é um mastro
por onde possas aprender a subir.





Os filhos correm pela sombra
sem o medo preso nos dentes
como um músculo de fome,
agarram-se à casca das árvores
com as mãos mais limpas
de todas as estações. Abres
a boca, mas era só uma chama
a chegar ao mais alto do céu.




As árvores chovem devagar
entre os dentes, como delírios
em guarda dos meus sonhos.
O pássaro onírico em nada
semelha o rosto pausado e
conhecido. Muitas eras depois
vieram os instrumentos do fogo
tocar os acordes do mundo.



Fotos (ilustração dos poemas): © de Amadeu Baptista

Poemas: © Rute Mota


Rute Mota (Torres Vedras, 17/12/1980). Publicou, em 2007, Nenhuma Palavra Nos Salva (poesia). Tem alguns textos dispersos em revistas e antologias. Anda por aí.

Cartas Bordadas para Mim



Amanhã, dia 21 de Julho, pelas 15 horas
Espectáculo 'Cartas Bordadas para Mim',
projecto dos mestrandos Hugo Castro Andrade e Pedro Augustos
professor responsável Rita Wengorovius
Avenida Marquês de Pombal - Amadora
Reserva obrigatória, tel. 214989452

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Atlas das Circunstâncias



Acaba de ser dado à estampa o meu novo livro Atlas das Circunstâncias. O livro é o nº. 3 da colecção Meia Lua e a edição é da Lua de Marfim. A ilustração da capa pertence a Maria João Lopes Fernandes. Em 2009 foi atribuído a Atlas das Circunstâncias o Prémio Literário 'Manuel Maria Barbosa du Bocage'.
Aqui deixo o fragmento inicial deste longo poema em 30 sonetos:




Não há dias propícios para os fulgores
mortais. Vem-se à terra por uma vereda
acrisolada, com as mãos ininterruptas,
e faz-se a boca diagrama das casas,

sapiência de ver e de sentir, caladamente.
Depois, há só como pensar em tudo em volta
e ver os córregos, as nuvens mansas, a prata
dos telhados, sendo por essa liturgia do silêncio

que há-de ir-se um homem em busca das palavras,
para as sentir e ampliar nos campos e na infância,
enquanto a terra revolve os seus cilícios

de treva e de raízes, a congraçar na cabeça
uma rede de brilhos opacos e translúcidos
em cada pedra.


in Atlas das Circunstâncias, Póvoa de Santa Iria, Lua de Marfim, 2012

quarta-feira, 18 de julho de 2012

O Bosque Cintilante # 57

Johann Sebastian Bach: Badinerie

Altas horas da noite
ouvi a fala da estrela
prometer-me a cegueira
do esplendor da luz.

Não há como fugir a céu aberto.


in O Bosque Cintilante, Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista

domingo, 15 de julho de 2012

Matthías Jóhannessen



MATTHÍAS JÓHANNESSEN



SOMOS POETAS DA MORTE

Somos poetas da morte –

ouvimos um desconhecido
chegar só a cavalo
sobre um corcel lendário
e unimo-nos ao som dos que crêem
que ainda têm outro dia
disponível, não o sabem:
a sua vida está racionada.

Falámos da morte
nas montanhas do deserto
mas nunca nos responderam à pergunta
que deixou entrar o inverno cristalizado,
só nos resta isto:
esperar que uma mão desconhecida
nos dispense da nossa obrigação
junto às flores do nosso solo pátrio
e oiçamos dizer:

O seguinte.

                                   Jord ur aegi, 1961


IMAGEM

Luar.
Noite ardente nos teus cabelos,
água límpida nos teus olhos.
E calma.

A lua reflecte-se
sobre a superfície da água
e estende a sua mão branca
para o alcantilado.

Numa arca fechada
está o teu tesouro,
quem é o dono
da prata e das pérolas
do teu coração?

Quando sorris
parece-me que se abre o muro
e posso entrar no tesouro
das tuas ilusões e dos teus sonhos.

                                   Fagur er dalur, 1966


TEMAS

I

Ela é uma árvore
que se soltou
das suas velhas raízes
e flutua na rua
com as  folhas
sobre os ombros.


II

Quando uma jovem
vizinha
vai à cidade
é como se as árvores
se tivessem desprendido
das suas velhas raízes
e flutuassem nos passeios
com os cabelos
pelos ombros.

E a mulher
sacode as folhas
para que possamos
seguir as suas pegadas
neste formoso dia de primavera.


III

Os teus olhos
não eram espelhos
mas terra escura
que eu toquei com dedos invisíveis
com arado profundo
que entrou no teu coração.


IV

Há uma lagoa no páramo.
Pedras negras assomam
sobre a superfície da água.

Assim assomas tu em meu coração.


V

Surpreendeu-nos o dia
deitados no sofá.
Levantei-me
e corri as cortinas.

Senti na obscuridade
que ela escrevia na minhas costas –

Eu não sabia o que ele escrevia
mas os dedos eram raios.

Eu era a montanha com o seu cume branco
e ela o sol do páramo.
Assim me chegou a primavera.


VI

Os meus olhos desejam-te,
toco-te com as minhas mãos brancas,
os meus dedos são trepadeiras
que se entrelaçam aos teus cabelos,
os meus pensamentos pássaros invisíveis
que esvoaçam entre os teus ramos.

Sim não, como dizê-lo:
amo-te?

                                   Morg eru dags augu, 1972


A MARAVILHA

Esta maravilha: os teus olhos negros
que se abrem de repente
a um novo sonho: o dia ilumina
o mistério da tua esperança viva
perante a incerteza do tempo e do espaço
tu  purificas a doçura da vida
como o sol que desperta as flores adormecidas
da sua letargia de escuridão e noite.

Esta maravilha: os teus olhos negros
sóis ardentes e enamorados
derramam a verdade da primavera
sobre a tua vigília, o teu sonho
que chega com o verde e as flores dos prados
chega com a alegria da tua filha
que enche também os teus olhos
com a maravilha da sua própria primavera.

Esta maravilha: os teus olhos negros
aventura de luz e de sombra
de súbito volta a chamar-nos ao sonho
de súbito tudo estará silencioso:
alguém apagará esses sóis
que brilham na profunda escuridão
dos tuas pálpebras, que se fecharam
num céu cheio de noite.

                                   Morg eru dags augu, 1972



A TERRA

I

O sol avança lentamente
no horizonte
até alcançar com velas recolhidas
os confins do oceano,
virá a manhã seguinte
com a sua nova carga
de lava de montanhas e de mar.


II

As nossas palavras

lava endurecida
do pensamento
que uma vez foi fogo,

palavras cobertas de musgo.

E nós velhos
crateras apagadas.


III

A terra segue-nos
com o seu manto branco

mas as crateras levantam
os seus punhos

contra o céu.


IV

Dormimos
sob o céu raso
e despertamos
num silêncio
não terreal
vemos o deserto
aproximar-se
vestido de uma manhã
clara e tranquila:

com a sua túnica transparente
chega o velho céu à terra
apoiado num raio de sol
sobre a lava.

                                   Tveggia bakka vedur, 1981


POEMA DAS CERCANIAS


As crateras repousam
do seu sonho
milenar

a lava veste-se de musgo
sob o silêncio
gelado

a sombra do carro
aproxima-se velozmente
tudo no caminho
se funde
em luar de noite clara

assim nos encontramos com a nossa sombra
e a seguimos
com um vulcão adormecido no peito.

                                   Tveggia bakka vedur, 1981


Ás cinco da manhã
refresca, os pássaros deixam de cantar
e a encarniçada luta entre o dia e a noite
cresce, a batalha decisiva é a esta hora
cada manhã, tudo perde
força e morrem
os que esperam a morte em casas
tétricas, um vento fresco percorre os campos
e os prados, cavalos apáticos
vigiam tudo,
como se suspeitassem que é a hora decisiva,
cavalos apáticos e pássaros
deste silêncio opaco, desta
maré fresca matutina aguardam
que a luz saia vencedora
e a noite fria fuja com sapatos obscuros
que a noite se esfume como uma pazada de carvão
no ardente fogo do novo dia
com o sol e a brisa fresca
à vista das aves canoras desta terra
pronta para partir, uma alface num ramo,
cega pela luz da manhã,
há pouca distância entre os marcos
caídos e o tempo respira na margem
e saúda o novo dia azulado
à tua passagem, terra minha.

                                   Tveggja bakka vedur, 1981


SE...

Se te tivesse seguido
ela esta noite
como a lua segue a água

se os tivesses encontrado
esta noite
no mundo transparente
da água

se tu fosses uma flor amarela
no silêncio azulado
deste dia passado

se tu fosses esta noite
esta noite de lua
branca

ela seguir-te-ia
como a lua
segue a água.

                                   Dagur af degi, 1988  


RECORDAÇÃO DE UM DIA

A tua árvore é a recordação
de uma casa
que se ausenta
caminhando lentamente
sobre a velha terra erodida
e o contacto  do pecíolo amarelado
da folha sobre o céspede
gelado
na sua despedida

e a asa do dia
ido
que te visita
é a sangrenta  podoa
dos seus ramos negros

                                   Dagur af degi, 1988


NÓS

I

Nós, que vivemos -
nós, que flutuamos nas horas que fluem
pelos  leitos da cidade
da cidade betão
que afoga os segredos
de ruínas perdidas -
nós, que no entanto chegamos
com a sua voz no sangue
que no entanto esquecemos
as suas marcas:
já nem sequer crescem                                                                                                                                     
a cauda do cavalo
e os miosótis
entre as pedras enterradas,
a sua vida está fechada
com o selo da época:
o negro asfalto.


II

Nós, que não entendemos quando nos dizem
no oeste em tempo de seca:
não há secas como as de antigamente.
Não dizemos
que sopra o ábrego
quando empurra os seus barcos
pelo céu encrespado
nós, que esquecemos
a sua voz,
a quem não desperta a atenção que alguém pergunte:
Chegaram a um acordo?
Por que não sabemos escutar?
Por que não procuramos a suas marcas
sob o asfalto
ali onde corriam
regatos tranquilos
e havia ranúnculos nos canteiros?


III

Mas nós,
que já não escutamos
a sua voz no nosso peito
olhamos o céu
como única esperança
de inesperadas notícias.
Tudo mudou:
espaço, verdade, tempo
perderam o seu sentido
e até as águas sujas
já não são as de antes:
mudaram de curso
e correm livremente
pelas nossas veias,
porque nós trocamos
o encanto da tradição
pelo rumor de pompas quotidianas.

Sim, nós -
nós, máquinas nuas,
máquinas de máquinas -
nós, que deixamos
de aspirar o aroma da urze,
o tranquilo silêncio dos páramos -
que deixamos
de sentir o rumor do glaciar
no sangue
e abrimos os olhos como pratos
se alguém adverte e diz:
olha, que formoso
esse alazão -
que enchemos os nossos pulmões
de anidrido carbónico
e vemos os esgotos
correrem por tubos de betão
para o mar -

Oh, sim, nós, máquinas nuas.

                                   Morg eru dags augu, 1972

IDEIA


Os teus pensamentos
fogem
com asas negras
na obscuridade
silenciosa
morcegos
de uma gruta
profunda
e sem eco.

                                   Dagur af degi, 1988


OH, ESTA PRIMAVERA


Oh, esta hora
que nos chama ao encontro com a terra
recém germinada, o silêncio transparente da névoa azul
silêncio da terra e do calor -
e eu o sol na tua carne.

O nosso peito é o templo
de que os pássaros da alegria
fugiram rumo à primavera,
deixámos para trás
marcas junto ao rio que os dias
vadeiam pelas pedras
e a noite amadurece sobre o campo -
ouvimo-lo respirar
no seio convexo do rio
as ondas pontais na água, a brisa
rumor suave entre os ranúnculos e as adelfas,
a água precipita-se nos rápidos,
ecoa o rio e no vapor das cataratas
os rais vívidos da manhã -
vejo-te sorrir, vejo a terra inteira sorrir
no teu olhar.

                                   Fagur er dalur, 196


REFLEXOS NA ÁGUA

Passámos por aqui o ano passado
vimos as árvores reflectidas na fonte
as folhas reflectidas que a água levou -
Voltarão novas folhas
imperceptivelmente.

Percorreremos ainda o mesmo caminho
reflectimo-nos no arroio
vemos envelhecer a nossa imagem
envelhecer e ir morrer ao mar -
imagem que sabemos
que nunca voltará.

                                   Morg eru dags augu, 1972



Versão minha - © Amadeu Baptista

Matthías Jóhannessen, nasceu em 1930. Director do jornal de maior tiragem de Reykjavik: Morgunbladid. Autor de numerosos livros de poesia, escreveu também teatro e livros sobre literatura e arte.