Este blogue vai ficar de férias até ao próximo mês de Setembro.
Até lá ficam dois poemas dos meus livros mais recentes.
DOIS MIL E NOVE
(à memória de Rogério Ribeiro)
É de lugares improváveis que as imagens chegam.
A sombra e a luz acentuam as formas das figuras
e há um risco etéreo que o criador recebe
para que seja translúcido o horizonte e a harmonia
estabeleça um fragor luminoso sobre as coisas,
uma escuridão. Eis o que se imagina:
a grande noite acende-se na tela e o pintor
anima-a, a recolher do espaço o que é divino
à força de aguarelas ou de óleos, de pincéis
e incêndios, sendo nítida a transfiguração
em que as figuras voam e, com elas, o olhar.
Vendo bem, quem vê vê mais do que observa,
porque o pintor entrega no que faz um tempo
de outros tempos, onde há homens e mulheres
surpreendentes, perpassados de verdes e azuis,
de praias e de árvores em que a luz
é como uma abertura no céu ou na folhagem,
que faculta o porvir e desoculta
todo o mistério que o sortilégio adensa
e à pintura chega para que a vida seja.
Eis as figuras: são deuses e duendes
de uma cosmogonia antiquíssima
em que a terra se revê e o poema
lentamente aflora para que a terra
tenha um nome e seja a cor
não mais do que fascínio e desassombro
do que o confronto cria sobre tudo
e o pintor, pelo silêncio límpido, resgata
para que o mundo se amplie sobre o mundo
e o claro interior do labirinto
transcenda a eternidade
pelo lápis, a anilina, o desenho.
Eis como o fascínio que há em cada imagem
atrai a voz do olhar e tudo é novo: no mistério
das coisas a luz alastra e é o criador o ser criado,
um fragor obscuro sobre as coisas,
uma constelação.
(in Açougue. Lisboa, & Etc, 2012)
O homem é, antes de mais, criança.
Tem olhos para ver e sabe ouvir
tudo o que se agiganta sobre as casas,
a chama da candeia sobre a mesa e as sombras
que iluminam a cal da sua enxerga vertical.
Com dois paus repercute o horizonte
que o chama, sendo que é certo que observa tudo
com predestinada invenção, a cama diminuta
em que se deita, o prato de alumínio de que recolhe
uma fracção de pão, o resplendor de uma camisa
que rescende a lavado, as árvores da ribeira,
além de uma miríade de segredos que invectivam
a que seja veloz a aprendizagem e lenta
a descoberta.
Para todos os amigos e amigas deste blogue fica o desejo de umas excelentes férias.
Belíssimo, este teu último poema.
ResponderEliminarOlha por ti, para que nos continues a deleitar... Um abraço. Isabel Amorim