domingo, 29 de julho de 2012

Livros do Autor


Este blogue vai ficar de férias até ao próximo mês de Setembro.
Até lá ficam dois poemas dos meus livros mais recentes.




DOIS MIL E NOVE

(à memória de Rogério Ribeiro)

É de lugares improváveis que as imagens chegam.
A sombra e a luz acentuam as formas das figuras
e há um risco etéreo que o criador recebe
para que seja translúcido o horizonte e a harmonia

estabeleça um fragor luminoso sobre as coisas,
uma escuridão. Eis o que se imagina:
a grande noite acende-se na tela e o pintor
anima-a, a recolher do espaço o que é divino

à força de aguarelas ou de óleos, de pincéis
e incêndios, sendo nítida a transfiguração
em que as figuras voam e, com elas, o olhar.
Vendo bem, quem vê vê mais do que observa,

porque o pintor entrega no que faz um tempo
de outros tempos, onde há homens e mulheres
surpreendentes, perpassados de verdes e azuis,
de praias e de árvores em que a luz

é como uma abertura no céu ou na folhagem,
que faculta o porvir e desoculta
todo o mistério que o sortilégio adensa
e à pintura chega para que a vida seja.

Eis as figuras: são deuses e duendes
de uma cosmogonia antiquíssima
em que a terra se revê e o poema
lentamente aflora para que a terra

tenha um nome e seja a cor
não mais do que fascínio e desassombro
do que o confronto cria sobre tudo
e o pintor, pelo silêncio límpido, resgata

para que o mundo se amplie sobre o mundo
e o claro interior do labirinto
transcenda a eternidade
pelo lápis, a anilina, o desenho.

Eis como o fascínio que há em cada imagem
atrai a voz do olhar e tudo é novo: no mistério
das coisas a luz alastra e é o criador o ser criado,
um fragor obscuro sobre as coisas,

uma constelação.


(in Açougue. Lisboa, & Etc, 2012)








O homem é, antes de mais, criança.
Tem olhos para ver e sabe ouvir
tudo o que se agiganta sobre as casas,
a chama da candeia sobre a mesa e as sombras

que iluminam a cal da sua enxerga vertical.
Com dois paus repercute o horizonte
que o chama, sendo que é certo que observa tudo
com predestinada invenção, a cama diminuta

em que se deita, o prato de alumínio de que recolhe
uma fracção de pão, o resplendor de uma camisa
que rescende a lavado, as árvores da ribeira,

além de uma miríade de segredos que invectivam
a que seja veloz a aprendizagem e lenta
a descoberta.



(in Atlas das Circunsdtâcias. Póvoa de Santo Adrião, Lua de Marfim, 2012)





Para todos os amigos e amigas deste blogue fica o desejo de umas excelentes férias.

1 comentário:

  1. Belíssimo, este teu último poema.
    Olha por ti, para que nos continues a deleitar... Um abraço. Isabel Amorim

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