MATTHÍAS JÓHANNESSEN
SOMOS POETAS DA MORTE
Somos poetas da morte –
ouvimos um desconhecido
chegar só a cavalo
sobre um corcel lendário
e unimo-nos ao som dos que crêem
que ainda têm outro dia
disponível, não o sabem:
a sua vida está racionada.
Falámos da morte
nas montanhas do deserto
mas nunca nos responderam à pergunta
que deixou entrar o inverno cristalizado,
só nos resta isto:
esperar que uma mão desconhecida
nos dispense da nossa obrigação
junto às flores do nosso solo pátrio
e oiçamos dizer:
O seguinte.
Jord ur aegi, 1961
IMAGEM
Luar.
Noite ardente nos teus cabelos,
água límpida nos teus olhos.
E calma.
A lua reflecte-se
sobre a superfície da água
e estende a sua mão branca
para o alcantilado.
Numa arca fechada
está o teu tesouro,
quem é o dono
da prata e das pérolas
do teu coração?
Quando sorris
parece-me que se abre o muro
e posso entrar no tesouro
das tuas ilusões e dos teus sonhos.
Fagur er dalur, 1966
TEMAS
I
Ela é uma árvore
que se soltou
das suas velhas raízes
e flutua na rua
com as folhas
sobre os ombros.
II
Quando uma jovem
vizinha
vai à cidade
é como se as árvores
se tivessem desprendido
das suas velhas raízes
e flutuassem nos passeios
com os cabelos
pelos ombros.
E a mulher
sacode as folhas
para que possamos
seguir as suas pegadas
neste formoso dia de primavera.
III
Os teus olhos
não eram espelhos
mas terra escura
que eu toquei com dedos invisíveis
com arado profundo
que entrou no teu coração.
IV
Há uma lagoa no páramo.
Pedras negras assomam
sobre a superfície da água.
Assim assomas tu em meu coração.
V
Surpreendeu-nos o dia
deitados no sofá.
Levantei-me
e corri as cortinas.
Senti na obscuridade
que ela escrevia na minhas costas –
Eu não sabia o que ele escrevia
mas os dedos eram raios.
Eu era a montanha com o seu cume branco
e ela o sol do páramo.
Assim me chegou a primavera.
VI
Os meus olhos desejam-te,
toco-te com as minhas mãos brancas,
os meus dedos são trepadeiras
que se entrelaçam aos teus cabelos,
os meus pensamentos pássaros invisíveis
que esvoaçam entre os teus ramos.
Sim não, como dizê-lo:
amo-te?
Morg eru dags augu, 1972
A MARAVILHA
Esta maravilha: os teus olhos negros
que se abrem de repente
a um novo sonho: o dia ilumina
o mistério da tua esperança viva
perante a incerteza do tempo e do espaço
tu purificas a doçura da vida
como o sol que desperta as flores adormecidas
da sua letargia de escuridão e noite.
Esta maravilha: os teus olhos negros
sóis ardentes e enamorados
derramam a verdade da primavera
sobre a tua vigília, o teu sonho
que chega com o verde e as flores dos prados
chega com a alegria da tua filha
que enche também os teus olhos
com a maravilha da sua própria primavera.
Esta maravilha: os teus olhos negros
aventura de luz e de sombra
de súbito volta a chamar-nos ao sonho
de súbito tudo estará silencioso:
alguém apagará esses sóis
que brilham na profunda escuridão
dos tuas pálpebras, que se fecharam
num céu cheio de noite.
Morg eru dags augu, 1972
A TERRA
I
O sol avança lentamente
no horizonte
até alcançar com velas recolhidas
os confins do oceano,
virá a manhã seguinte
com a sua nova carga
de lava de montanhas e de mar.
II
As nossas palavras
lava endurecida
do pensamento
que uma vez foi fogo,
palavras cobertas de musgo.
E nós velhos
crateras apagadas.
III
A terra segue-nos
com o seu manto branco
mas as crateras levantam
os seus punhos
contra o céu.
IV
Dormimos
sob o céu raso
e despertamos
num silêncio
não terreal
vemos o deserto
aproximar-se
vestido de uma manhã
clara e tranquila:
com a sua túnica transparente
chega o velho céu à terra
apoiado num raio de sol
sobre a lava.
Tveggia bakka vedur, 1981
POEMA DAS CERCANIAS
As crateras repousam
do seu sonho
milenar
a lava veste-se de musgo
sob o silêncio
gelado
a sombra do carro
aproxima-se velozmente
tudo no caminho
se funde
em luar de noite clara
assim nos encontramos com a nossa sombra
e a seguimos
com um vulcão adormecido no peito.
Tveggia bakka vedur, 1981
Ás cinco da manhã
refresca, os pássaros deixam de cantar
e a encarniçada luta entre o dia e a noite
cresce, a batalha decisiva é a esta hora
cada manhã, tudo perde
força e morrem
os que esperam a morte em casas
tétricas, um vento fresco percorre os campos
e os prados, cavalos apáticos
vigiam tudo,
como se suspeitassem que é a hora decisiva,
cavalos apáticos e pássaros
deste silêncio opaco, desta
maré fresca matutina aguardam
que a luz saia vencedora
e a noite fria fuja com sapatos obscuros
que a noite se esfume como uma pazada de carvão
no ardente fogo do novo dia
com o sol e a brisa fresca
à vista das aves canoras desta terra
pronta para partir, uma alface num ramo,
cega pela luz da manhã,
há pouca distância entre os marcos
caídos e o tempo respira na margem
e saúda o novo dia azulado
à tua passagem, terra minha.
Tveggja bakka vedur, 1981
SE...
Se te tivesse seguido
ela esta noite
como a lua segue a água
se os tivesses encontrado
esta noite
no mundo transparente
da água
se tu fosses uma flor amarela
no silêncio azulado
deste dia passado
se tu fosses esta noite
esta noite de lua
branca
ela seguir-te-ia
como a lua
segue a água.
Dagur af degi, 1988
RECORDAÇÃO DE UM DIA
A tua árvore é a recordação
de uma casa
que se ausenta
caminhando lentamente
sobre a velha terra erodida
e o contacto do pecíolo amarelado
da folha sobre o céspede
gelado
na sua despedida
e a asa do dia
ido
que te visita
é a sangrenta podoa
dos seus ramos negros
Dagur af degi, 1988
NÓS
I
Nós, que vivemos -
nós, que flutuamos nas horas que fluem
pelos leitos da cidade
da cidade betão
que afoga os segredos
de ruínas perdidas -
nós, que no entanto chegamos
com a sua voz no sangue
que no entanto esquecemos
as suas marcas:
já nem sequer crescem
a cauda do cavalo
e os miosótis
entre as pedras enterradas,
a sua vida está fechada
com o selo da época:
o negro asfalto.
II
Nós, que não entendemos quando nos dizem
no oeste em tempo de seca:
não há secas como as de antigamente.
Não dizemos
que sopra o ábrego
quando empurra os seus barcos
pelo céu encrespado
nós, que esquecemos
a sua voz,
a quem não desperta a atenção que alguém pergunte:
Chegaram a um acordo?
Por que não sabemos escutar?
Por que não procuramos a suas marcas
sob o asfalto
ali onde corriam
regatos tranquilos
e havia ranúnculos nos canteiros?
III
Mas nós,
que já não escutamos
a sua voz no nosso peito
olhamos o céu
como única esperança
de inesperadas notícias.
Tudo mudou:
espaço, verdade, tempo
perderam o seu sentido
e até as águas sujas
já não são as de antes:
mudaram de curso
e correm livremente
pelas nossas veias,
porque nós trocamos
o encanto da tradição
pelo rumor de pompas quotidianas.
Sim, nós -
nós, máquinas nuas,
máquinas de máquinas -
nós, que deixamos
de aspirar o aroma da urze,
o tranquilo silêncio dos páramos -
que deixamos
de sentir o rumor do glaciar
no sangue
e abrimos os olhos como pratos
se alguém adverte e diz:
olha, que formoso
esse alazão -
que enchemos os nossos pulmões
de anidrido carbónico
e vemos os esgotos
correrem por tubos de betão
para o mar -
Oh, sim, nós, máquinas nuas.
Morg eru dags augu, 1972
IDEIA
Os teus pensamentos
fogem
com asas negras
na obscuridade
silenciosa
morcegos
de uma gruta
profunda
e sem eco.
Dagur af degi, 1988
OH, ESTA PRIMAVERA
Oh, esta hora
que nos chama ao encontro com a terra
recém germinada, o silêncio transparente da névoa azul
silêncio da terra e do calor -
e eu o sol na tua carne.
O nosso peito é o templo
de que os pássaros da alegria
fugiram rumo à primavera,
deixámos para trás
marcas junto ao rio que os dias
vadeiam pelas pedras
e a noite amadurece sobre o campo -
ouvimo-lo respirar
no seio convexo do rio
as ondas pontais na água, a brisa
rumor suave entre os ranúnculos e as adelfas,
a água precipita-se nos rápidos,
ecoa o rio e no vapor das cataratas
os rais vívidos da manhã -
vejo-te sorrir, vejo a terra inteira sorrir
no teu olhar.
Fagur er dalur, 196
REFLEXOS NA ÁGUA
Passámos por aqui o ano passado
vimos as árvores reflectidas na fonte
as folhas reflectidas que a água levou -
Voltarão novas folhas
imperceptivelmente.
Percorreremos ainda o mesmo caminho
reflectimo-nos no arroio
vemos envelhecer a nossa imagem
envelhecer e ir morrer ao mar -
imagem que sabemos
que nunca voltará.
Morg eru dags augu, 1972
Versão minha - © Amadeu Baptista
Matthías Jóhannessen, nasceu em 1930. Director do jornal de maior tiragem de Reykjavik: Morgunbladid. Autor de numerosos livros de poesia, escreveu também teatro e livros sobre literatura e arte.
Bem Haja a lembrança desse grande homem!Grande poeta o Matthías Jóhannessen.
ResponderEliminar"(...)a cauda do cavalo
e os miosótis
entre as pedras enterradas,
a sua vida está fechada
com o selo da época:
o negro asfalto.(...)"
Ele tinha um jeito muito peculiar seu de ver e expressar suas observâncias da vida.
Um fraterno abraço Amigo Amadeu, com votos de que tenhas uma semana de paz e harmonia e muito grata por essa rica partilha