quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Os meus (mais belos) poemas sobre o Porto - # 7

por onde tenho andado que estou em todo o lado,/ rosno eu,/
que me confundo/ com o cão que rosna a meu pai,/ não sei, respondo
eu, adormecido./ neste deserto vale o que vale/ a pena, ir em frente,/
e nada mais há para imaginar/ no muito imaginar.

então, regrido,/ regrido o mais possível./ e a cidade abre-se ao contrabando,/
o comboio de mercadorias atravessa o túnel e vejo,/ sinto,/ um tremor de terra./
quando a terra treme não há como fitar,/ a incerteza é um bem
colectivo e não é possível agarrar com força o olhar que há no vazio.

chovia,/ chove torrencialmente./ as raparigas,/ diz-se,/ deitam corpo/
e o mais que me lembro é do cheiro da terra e dos seus corpos,/ elas são
como terra a tremer,/ todas ancas e lábios,/ seios e cheiros/ e não posso/
fazer mais do que ir com elas,/ em frente,/ com as mãos acossadas/

com o corpo como um uivo./ estou a vê-las chegar/
em bandos/ pelas ruas/ e é de noite./ e eu esculpo a mediação do desejo,/ o meu pai
aguarda,/ apenas,/ o instante do percalço,/ está ali,/ no desvão,/
e vai chegar com a tragédia sobre os ombros e a boca hiante/ a bradar.

onde estive que não estive nunca, não sei./ nesta constante aforro a vida,/
a noite entrega a primícia no largo subjacente ao pequeno cais,/ as raparigas
chegam e sobem aos muros, saltam fogueiras,/ eu chego e espio/ a expiação,/
de uma curva apertada vejo tudo o que se passa sob os arcos e a igreja

de são pedro,/ os que atiram fitas amarelas e azuis a quem vai,/
os que vendem uvas e figos maduros,/ os que vão partir para a guerra/
e toldam os olhos com a dissipação,/ a evanescência./ um deles há-de dizer
como cortou a cabeça a um homem, os testículos a outro,/ como se lhe gelou o sangue

quando matou assim,/ enquanto, meu pai,/ do passeio das virtudes,/ observa tudo,/ ubíquo./ onde me reconheço, transito./ sou o cão que sobe a rua do gólgota a altas/
horas da noite,/ sou uma sombra de mim mesmo a arquitectar um sonho de
    maquinações
e rupturas,/ Deus não está em toda a parte como meu pai,/ se Deus houvesse

explicar-se-ia a sucata,/ o esgoto a céu aberto,/ a imperfeição fidedigna de quem/
dorme na rua por não ter milagre a que acolher-se,/ tal como não poderia ver-se
uma assembleia de pobres a indagar o esconjuro da morte,/ os seus périplos fulcrais,/
a malga exígua de exíguo caldo,/ o sangue/ gelado./ onde estive é o demónio que está,/

eu sei,/ entre nós há um pacto ancorado,/ duas presenças fortes,/ o meu pai
usa o cinto no meu corpo/ e sou um ser de angústia neste horto imenso,/
é nesta árvore do jardim da cordoaria que enforcam os celerados,/ os condenados,/
na desonra é como heróis que morrem os abandonados./ de novo falo na ancestralidade

onde todos fomos bons,/ insuspeitos,/ insepultos./ estou em todo o lado
porque há um olhar a que é impossível fugir,/ as raparigas vêm da fonte taurina
e têm as mãos/ a arder,/ o meu pai circunscreve/ um território inexpugnável para seu,/
meu/ e nosso deleite,/ estamos na primeira linha dos que regridem para o túnel,/

uma escadaria infinita leva-nos aonde nunca estivemos,/ os cães rosnam
e a caravana adensa o espírito dos que nos malograram,/ gente ímpia
que,/ pelo amanhecer,/ reconhece o caminho de casa/
e faz do mundo uma matéria densa e friável,/ a tremer, debaixo dos pés.


in Negrume,  & Etc, Lisboa, 2006


Foto: © de Amadeu Baptista

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Prémios Autores SPA

Abraço para os premiados:


Prémio Autores SPA  / Poesia
José Manuel Vasconcelos
A Mão na Água que Corre, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011





Prémio Autores SPA / Ficção
Mário Cládio
Tiago Veiga Uma Biografia, D. Quixote, Lisboa, 2011

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Aniversário do nascimento de Ruy Belo



MURIEL

Às vezes se te lembras procurava-te
retinha-te esgotava-te e se te não perdia
era só por haver-te já perdido ao encontrar-te
Nada no fundo tinha que dizer-te
e para ver-te verdadeiramente
e na tua visão me comprazer
indispensável era evitar ter-te
Era tudo tão simples quando te esperava
tão disponível como então eu estava
Mas hoje há os papéis há as voltas dar
há gente à minha volta há a gravata
Misturei muitas coisas com a tua imagem
Tu és a mesma mas nem imaginas
como mudou aquele que te esperava
Tu sabes como era se soubesses como é
Numa vida tão curta mudei tanto
que é com certo espanto que no espelho da manhã
distraído diviso a cara que me resta
depois de tudo quanto o tempo me levou
Eu tinha uma cidade tinha o nome de madrid
havia as ruas as pessoas o anonimato
os bares os cinemas os museus
um dia vi-te e desde então madrid
se porventura tem ainda para mim sentido
é ser solidão que te rodeia a ti
Mas o preço que pago por te ter
é ter-te apenas quanto poder ver-te
e ao ver-te saber que vou deixar de ver-te
Sou muito pobre tenho só por mim
no meio destas ruas e do pão e dos jornais
este sol de Janeiro e alguns amigos mais
Mesmo agora te vejo e mesmo ao ver-te não te vejo
pois sei que dentro em pouco deixarei de ver-te
Eu aprendi a ver a minha infância
vim a saber mais tarde a importância desse verbo para os gregos
e penso que se bach hoje nascesse
em vez de ter composto aquele prelúdio e fuga em ré maior
que esta mesma tarde num concerto ouvi
teria concebido aqueles sweet hunters
que esta noite vi no cinema rosales
Vejo-te agora vi-te ontem e anteontem
E penso que se nunca a bem dizer te vejo
se fosse além de ver-te sem remédio te perdia
Mas eu dizia que te via aqui e acolá
e quando te não via dependia
do momento marcado para ver-te
Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te
e antes de chegares já lá estavas
naquele preciso sítio combinado
onde sempre chegavas sempre tarde
ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses
se ausente mais presente pela expectativa
por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente
Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se exististe ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?
Aquela hora certa aquele lugar?
À força de o pensar penso que não
Na melhor das hipóteses estou longe
qualquer de nós terá talvez morrido
No fundo quem nos visse àquela hora
à saída do metro de serrano
sensivelmente em frente daquele bar
poderia pensar que éramos reais
pontos materiais de referência
como as árvores ou os candeeiros
Talvez pensasse que naqueles encontros
em que talvez no fundo procurássemos
o encontro profundo com nós mesmos
haveria entre nós um verdadeiro encontro
como o que apenas temos nos encontros
que vemos entre os outros onde só afinal somos felizes
Isso era por exemplo o que me acontecia
quando há anos nas manhãs de roma
entre os pinheiros ainda indecisos
do meu perdido parque de villa borghese
eu via essa mulher e esse homem
que naqueles encontros pontuais
Decerto não seriam tão felizes como neles eu
pois a felicidade para nós possível
é sempre a que sonhamos que há nos outros
Até que certo dia não sei bem
Ou não passei por lá ou eles não foram
nunca mais foram nunca mais passei por lá
Passamos como tudo sem remédio passa
e um dia decerto mesmo duvidamos
dia não tão distante como nós pensamos
se estivemos ali se madrid existiu
Se portanto chegares tu primeiro porventura
alguma vez daqui a alguns anos
junto de califórnia vinte e um
que não te admires se olhares e me não vires
Estarei longe talvez tenha envelhecido
Terei até talvez mesmo morrido
Não te deixes ficar sequer à minha espera
não telefones não marques o número
ele terá mudado a casa será outra
Nada penses ou faças vai-te embora
tu serás nessa altura jovem como agora
tu serás sempre a mesma fresca jovem pura
que alaga de luz todos os olhos
que exibe o sossego dos antigos templos
e que resiste ao tempo como a pedra
que vê passar os dias um por um
que contempla a sucessão de escuridão e luz
e assiste ao assalto pelo sol
daquele poder que pertencia à lua
que transfigura em luxo o próprio lixo
que tão de leve vive que nem dão por ela
as parcas implacáveis para os outros
que embora tudo mude nunca muda
ou se mudar que se não lembre de morrer
ou que enfim morra mas que não me desiluda
Dizia que ao chegar se olhares e não me vires
nada penses ou faças vai-te embora
eu não te faço falta e não tem sentido
esperares por quem talvez tenha morrido
ou nem sequer talvez tenha existido


Ruy Belo




O poeta e ensaísta Ruy de Moura Belo nasceu em São João da Ribeira, no Concelho de Rio Maior, a 27 de Fevereiro de 1933. Em 1951, entrou para a Universidade de Coimbra como aluno do Curso de Direito, mas concluiu-o em Lisboa, em 1956. Neste mesmo ano, partiu para Roma, doutorando-se em Direito Canónico.
Regressado a Portugal, trabalhou no campo editorial e, em 1961, entrou na Faculdade de Letras de Lisboa, recebendo uma bolsa para investigação. Exerceu, ainda que brevemente, um cargo de director-adjunto no então Ministério da Educação Nacional, mas o seu relacionamento com opositores ao regime da época, a participação na greve académica de 1962 e a sua candidatura a deputado, em 1969, pelas listas da Comissão Eleitoral de Unidade Democrática, levaram a que as suas actividades fossem vigiadas e condicionadas. Posteriormente, ocupou o lugar de leitor de Português, na Universidade de Madrid (1971-1977). Ao regressar a Portugal, foi-lhe recusada a possibilidade de leccionar na Faculdade de Letras de Lisboa, dando aulas na Escola Técnica do Cacém, no ensino nocturno. Faleceu em Queluz, a 8 de Agosto de 1978.
 

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Os meus (mais belos) poemas sobre o Porto - # 6

o quarto é um oratório,/ entre rezar e dormir encontro escolhas múltiplas,/
sigo as sombras ou sei que as sombras me seguem,/ a noite
é um corrupio de sons pressentidos, nesta hora
chegam da rua todos os mistérios sem nome,/

ou que talvez se nomeiem pelo grito/ obscuro que o vento nas árvores
adensa./ estou só e balbucio o silêncio dos nomes, às vezes
chegam brilhos de um recanto exterior à casa,/ passa um homem,/
uma mulher passa, e sei como a neblina encordoa as pedras,/ com um clarão.

a cama range,/ o meu pai vocifera sobre o tampo da mesa,/ eu faço-me
um corpo para me tranquilizar,/ sempre que o meu pai fala estremeço,/ emudeço,/
as mãos vibram sob o calor dos lençóis,/ o cobertor humedece-me,/
como se eu não chorasse mas as lágrimas se pudessem assim amontoar.

o que é frágil está dentro de mim como coacção inexpugnável,/ as mãos deslaçam-se
e dou início ao voo,/ com as coordenadas certas e o aluvião como preâmbulo
é a uma torre que subo,/ os quintais circundantes,/ assim sobrevoo a infância
e as suas geometrias barrocas,/ os anjos perfeitos,/ como triângulos equiláteros.

ao longe, o rio, de novo,/ é uma faixa roxa e lilás sobre a densidade das casas,/
o rio ferve,/ fumega,/ transparece,/ inflama-se,/ arqueja,/ arfa,/ é,/ de súbito,/
uma película onde se fixam os rostos que prevalecem,/ eu, de noite,/ a subverter
o voo e o desatino,/ o negrume a velar-me, a acompanhar-me a esses rostos

em que mais que o cansaço se entrevê o denso escrutínio do vazio,/ a intensa
confirmação do fim./ passa um homem,/ uma mulher passa,/ a indeterminação pode
unir o que quer que seja,/ quem quer que seja,/ este homem e esta mulher
chegam de lugares longínquos,/ os arrabaldes de um encontro, os passos

dados em busca de um enigma superior,/ alguma coisa que não se entenderá,/
uma herança fulminante para quem não sabe como proceder perante/ Deus.
rezo agora aflitivamente pela salvação da alma,/ o meu pai é um infinito
de altercações,/ eu, nazareno,/  também fui coagido e admoestado, não tenho salvação,/

não vejo salvação,/ o oratório é esta sombra íngreme de beatitude a velar o meu sono./
às vezes,/ quando sonho,/ transito entre um pesadelo e outro,/ os mortos
regressam na enxurrada,/ ampliam lentamente a solidão, / e gritam,/ gritam/
perdidos para sempre na derrogação da luz./

não sei, não sei da inocência,/ afasto-me a chorar/ e o céu
ilumina-se por tanta escuridão,/ acedo retrospectivamente ao espaço
e estou num lugar que não é verdadeiro nem falso,/ um medo
transversal à perdição e à espessa,/ nítida,/ inelutável/ rendição.

sem ressentimentos,/ com a boca justaposta ao frio,/ pai,/
o meu voo é interminável e perfaz uma longa sucessão de intersecções,/
neste ponto sou quem sabe da perversão e da tristeza,/
como nos perdemos da luz,/ e ela ardeu,/ rodopio em torno da torre,/ da lua.

eu faço-me um corpo para me inquietar,/ o rio fende a casa ao meio,/
sobre a mesa está a faca,/ considero essa latência como um salto
no desconhecido,/ a poder de relâmpagos,/ a poder de trovões/ escondo
a cabeça na escuridão e volto,/ volto à vigília para enlouquecer.


in Negrume,  & Etc, Lisboa, 2006
 

Foto: © de Amadeu Baptista
 

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Os meus (mais belos) poemas sobre o Porto - # 5

durmo nos joelhos do meu pai por um preço incalculável,/ esta noite
não demorarei a encontrar a inquietação,/ a minha mãe
está ausente no estreito corredor que atravessa a casa,/ há,/ no ar,/
um alarme circunscrito à travessia,/ a travessia do sonho em que sou pequeno

e desvalido,/ com as mãos encharcadas de medo/ e vertigem./ o alvoroço
vem de um lugar próximo e longínquo,/ vem das traseiras da casa
onde as crianças subvertem o sentido do real,/ vem de um sismo que atravessa
a cabeça e a inclina para a terra,/ pondo-me/ sem sentidos,/ com os olhos

no mar./ o alvoroço vem de um lugar onde a voz cai sumptuosamente
sobre o chão,/ vem como uma luz que me atropela,/ sendo esta noite
uma hegemonia de sombras em que não há céu,/ já,/ não há senão
uma câmara irradiante onde me encontro febril/ e a minha carne cede

ao impacto de uma pulsão,/ lancinante./ durmo nos joelhos do meu pai e estou assustado,/ no limiar do mundo não há mais do que duas árvores/ e uma inscrição
apocalíptica,/ um pano vermelho abriga-me da luz,/ mas estou indefeso,/ estou
cercado por monstros marinhos e tigres,/ monstros marinhos e corvos,/ monstros

marinhos e rumores/ incertos./ as mãos de minha mãe tomam/ a minha cabeça,/
afastam as sombras que me sitiam,/ mas o pai está atento,/ o meu pai
faz-me dormir nos seus joelhos por um preço incalculável,/ risca um fósforo
na minha pele/ deixa que as chamas me subam pelos joelhos

e sitiem a cabeça,/ deixa que o sulco na carne alastre pela sua navalha
e atinja o meu sangue,/ e a minha cabeça se incendeie./ o alvoroço
vem de eu olhar fixamente o horizonte,/ estou nessa linha intacta
como se flutuasse,/ o meu incêndio é um mistério enorme,/ enorme

como o regozijo de meu pai por esta sarça que arde./ vou por este caminho
com o vagar do cordeiro,/ vou alucinado pelo intenso chamamento
febril,/ e subo/ e desço/ ao vale onde se concentram as sombras./ o fogo
assinala a porta que não devo cruzar,/ o fogo é intenso como uma sombra,/

o meu pai vela por mim por um preço incalculável,/ e minha mãe assiste-me,/
de longe./ a cada queda,/ há um silêncio incontornável à minha volta/ sempre que me
encontro febril e tenho medo,/ um medo insano,/ contínuo,/ árduo,/ enquanto
o incêndio alastra ao corredor estreito que se abre/ à minha frente,/ e a minha

convalescença estabelece a premonição sobre todas as coisas,/ a ira do pai,/ o afã
maravilhoso da mãe,/ sobre a navalha que se abre/ e fecha,/ o fósforo que o meu pai
risca na minha pele para que eu arda,/ arda até que a noite desvele o meu sono e seja
manhã,/ e a claridade toque a minha pele,/ e todas as sombras sejam apenas sombras

quietas de árvores pacíficas./ de todas as árvores,/ quietas e pacíficas,/ mais
do que a da sombra da que chamam figueira,/ a árvore do diabo,/ diz meu pai,/ quero
a sombra da árvore a que chamam ácer,/ dos seus ramos mais altos/ é possível ver
a linha do horizonte transfigurar-se em assombro,/ mais do que a figueira,/ o meu pai

sempre condenou o ácer,/ não sei porquê,/ a boa árvore/ da madeira dos barcos,/ do mar.
esta noite o vento beneficia o rumo do sonho,/ diz minha mãe,/ o que é turvo/
transparece,/ amplia incalculáveis/ redutos entre o mundo e mundo,/ oiço/ e estou
febril/ a desocultar a transumância,/ a alacridade,/ vivo e vigio,/ e a navegação

é intensa,/ magnífica,/ sobre os joelhos do meu pai,/ sem mais sobressaltos
que o alarme circunscrito à travessia em que eu/ cresço.


in Negrume,  & Etc, Lisboa, 2006
 
 

Foto: © de Amadeu Baptista
 

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Os meus (mais belos) poemas sobre o Porto - # 4

a japoneira,/ a magnólia,/ a macieira/ vários encontros cruzados,/  em projecto,
no pátio superior da casa/ da rua do monte dos judeus,/ setenta e oito./
tenho a certeza que havia um odor a canela no ar,/ tenho a certeza
que a aproximação do rio fazia recrudescer as sístoles/ e as diástoles da noite.

venho de um desses eventos em que  a predestinação condiciona a história/
familiar,/ venho do meu avô barqueiro/ a levar dois tostões pela travessia/
venho de uma casa onde havia um candeeiro a petróleo/ e se comiam
peixes de água doce,/ e faziam excursões para a degustação formidável do sável.

alguém descasca uma maçã na ribeira do porto./ sobre o rio árduo,/ minha mãe
usa uma máquina a petróleo e uma luz esverdeada nos olhos,/ e lava/
numa pedra/ todos os fumos que se engastam na roupa por causa da morte./
todos os medos que a vida não há-de/ nunca/ suprir.

minha mãe chora,/ enquanto os meus irmãos apreendem a maçã e a fazem sua./
os meus irmãos/ usam de todas as prerrogativas de serem órfãos nos dias festivos,
quando descemos a miragaia para cortar o cabelo/ e roubamos/ na loja de secos
e molhados/ do senhor avelino/ outra maçã. a do início,/ a mais elementar.

sob os arcos, há uma venda de açúcar e azeitonas,/ os rapazes usam
fisgas e baraços vermelhos,/ meu pai lá está,/ no ponto em que a avó esmeralda
desespera por estar morta,/ e a salvação possível é só esta qualidade/
do ar, aromática,/ que chega do jacarandá luminoso do largo do viriato.

sei, certa noite, que um homem se esganou num guindaste,/ sei,
certa noite, que o meu pai arrecada ameaças no bolso de trás das calças de sarja./
eu vejo ali ao fundo uma traineira pronta a partir,/ e mulheres, nas barcas/
a carregar carvão, com sacos de serapilheira a proteger-lhes a cabeça.

também a minha cabeça está coberta de cal, hoje/ em dia. passo
ao muro dos bacalhoeiros e estou na única cidade que amo,/ uma cidade
com um rio fecundo, porque as crianças mergulham em voo no seu leito,/
crianças que estão freneticamente a celebrar são joão e a baptizar as águas.

chama-se este rio rio douro e trago à colação os meus ancestrais,/ porque não há
rio mais ancestral que este,/ com os seus brilhos tonitruantes no crepúsculo./
posso mesmo dizer que o início da queda se afeiçoou a estas pedras,/ assim,/
cinzentas,/ porque a expressão dos azuis deste rio é volátil/ como um poema.

escolho este miradouro de varandas solenes e clarabóias iridescentes./
sobre a praia,/ estreita,/ tudo se enquadra num encontro e num tema,/ a infância,/
certas vantagens e desvantagens,/ o porte pétreo que uma incisão nas veias
subordina à razão e ao coração./ para lá, ou para cá,/ de qualquer fronteira.

esta casa é o mundo./ não posso senão dizer mais uma vez a cameleira/
a nespereira,/ a ameixoeira branca/, íamos cortar o cabelo com o cabedelo nos olhos/
e podíamos partir a qualquer momento, sendo apenas anjos,/ como se sabe,/ na cidade da virgem que este rio pagão,/ sob a névoa,/ transfigura,/ profana, amavelmente.

a infância é um farol leal a ir na correnteza do que de montante/ a jusante,/ apraz ver
crescer/ bravio, constante,/ na enseada fluida em que tudo se guarda/ até à eternidade,
como a memória de uma enchente./ a enchente tenaz em que ouvimos um grito atroador e vamos,/ num navio fantástico,/ fantasma,/ fitar o pesadelo aos pilotos da barra.

no mais, tudo é reencontro,/ sempre. com os que acompanhamos,/ com os que nos acompanham,/ abrimos as mãos ao reconforto/ e subimos à arvore mais alta
para contar estrelas,/ como nessa noite em que a casa ardeu/
a precipitar todos os seus habitantes na torrencialidade,/ estranha, desabrida.

no dia em que morrer não morrerá este brilho./ na magia dos trânsitos,/ no alvoroço
contínuo que da outra margem me chama,/ e a que respondo/ porque minha mãe
o comanda,/ eu sei que a salvação é não haver no céu mais nenhuma glória
se não se espelhar neste rio,/ ou não tiver este nome,/ como porto, ou abrigo.

in Negrume,  & Etc, Lisboa, 2006


Foto: © de Amadeu Baptista

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Os meus (mais belos) poemas sobre o Porto - # 3

a entrada da casa é ínvia/ e lúgubre,/ uma curva,/ e outra,/ e outra,/
adensam a fadiga,/ não há para onde ir quando/ se vai,/ assim,/
com a luz sobre as mãos/ e a boca desvairada/ num lugar sempre rápido
a ratificar o estremecimento./ acendo a pedra e a escuridão é,/ ainda,/

a escuridão do início,/ o mesmo rio,/ íngreme,/ sobre a minha cabeça,/
que tem,/ nas margens/ uma imensidão de luzes que vacilam,/ e homens que vacilam,/
e aves,/ que vacilam. além,/ no desvão,/ as antigas sombras de tudo,/ em frente,/
os mortos,/ que chegam em jorros torrenciais/ de um lugar íngreme,/

como este lugar, e me falam,/ falam/, falam/, até/ tudo o que dizem/ ser
absolutamente inaudível./ o que me dizem os mortos está já dito na noite,/ nos retratos,
nas paredes,/ o que oiço,/ a altas horas,/ vacila entre o estremecimento e a hesitação,/
talvez porque a infância seja lenta,/ ou a respiração seja só um golpe

desenfreado que sucumbe no arco das costelas./ agora,/ à esquerda,/
a escada./ entre subir ou descer/ não há escolha,/ as grandes emoções,/
os mais sensíveis sinais que estouram a cabeça e o coração,/ são um ramal
de sentidos,/ um afluente duradoiro do entendimento./ assim, subo e desço

a escadaria,/ em movimentos irregulares,/ mas precisos/ e,/ no patamar,/ encontro
o rastro de uma devoração,/ o instrumento com que se ergueu o sacrifício
e consumou o crime,/ numa larga bacia azul,/ cheia de água/ ou éter,/
sobre a qual as mulheres ficam a falar entre si em profundos murmúrios,/

escavados silêncios./ o que vejo é impossível ver,/ flutua um corpo
nessa imensidão azul e eu não posso senão soltar um grito
sobre a cidade,/ para depois seguir atrás de uma urna branca,/ uma pequena
urna branca onde estão os restos mortais de alguém que me dizem/

ser meu irmão./ o meu pai rosna,/ hoje,/ para dentro,/ a minha mãe,/ hoje,/
está calada como uma rocha,/ eu,/ hoje,/ rosno como o meu pai rosna/
e estou na casa desabridamente,/ a ver sem poder ver,/ e a riscar,/ nas paredes,/
a fogo,/ a minha dissemelhança entre todas as coisas da terra,/ todas as coisas.

subo ao telhado da casa e vejo a aparição,/ a aparição é uma casa alagada/,
que, sem nitidez,/ me predestina ao desastre,/ voar,/ voar poderia ser
o lenitivo eficaz para a dissipação,/ o momento adequado
para soltar a dor e ir,/ num sussurro,/ fechar a velocidade com que o mundo

entretece,/ na mágoa,/ a amargura./ hoje rosno/ como meu pai rosna,/
faço tudo em profundo silêncio quando estou na memória,/ letra a letra./
tudo vem do início e volta para o início,/ como um novelo a que se puxa
a ponta para que a eternidade se expanda infinitamente,/ sem nunca deixar de ser

eternidade./ agora,/ volto,/ de novo,/ à escada,/ volto,/ de novo,/ à esquerda,/
subo e desço, grumo a grumo,/ os degraus e as sombras,/ projectando,/ também eu,/
sombra à minha volta,/ enquanto rosno por dentro,/ como meu pai,/ e perscruto
a infindável solidão de tudo,/ o que vacila à minha volta,/ a casa,/ o rio,/ as sombras,/

os mortos./ de novo,/ agora,/ a fadiga./ estar parado no centro da catástrofe
é uma vertigem inestimável,/ no arco das costelas a respiração intensifica-se
e a cabeça rende-se ao cansaço,/ rende-se para ver o que não é possível ver,/
mas vibra no olhar como o brilho de uma lâmina,/ ou uma criança/ morta.

in Negrume,  & Etc, Lisboa, 2006



Foto: © de Amadeu Baptista

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Os meus (mais belos) poemas sobre o Porto - # 2

noite de natal de mil novecentos e cinquenta e oito./ se pudesse pedir
o que quer que fosse/ pediria uma cria de cão,/ no centro da sala ergue-se
a instalação do presépio,/ o meu pai rosna,/ os meus olhos seguem
uma ferida na luz,/ uma ferida nítida que sulca a sombra como uma ameaça.

escrutino a cama humilde e os animais apostólicos,/ não entendo
o amparo ansiado e o desvanecimento,/ sei,/ de súbito,/ como ignoro
o mundo e a manhã é indiscernível,/ como paira,/ aqui,/ a ansiedade
e a dor,/ enquanto tudo corrobora o prodígio,/ e uma árvore

cresce desmesuradamente para dentro da terra./ não sei como se nasce
e morre,/ ignoro quem sou,/ onde estou,/ para onde vou,/ num friso áureo,/
os anjos/ constrangem-me à prece inusitada,/ e evoluo no sentido do silêncio/
para presumir a sagrada obstinação de um amor/ que não entendo,/ jamais entenderei./

quero uma cria de cão neste natal longínquo,/ se pudesse pedir o que quer que fosse/
pediria que me levassem pela cidade para ver a noite sobre os telhados das casas,/
onde a instalação do inferno é uma encruzilhada e nada dista do rio/
e das suas têmperas escarlates,/ como barcos perdidos da redenção da maré./

assim,/ aguardo, apenas./ o milagre é esta provisão de tempo em cima da mesa,/
um burro e uma vaca enredados num caminho de areia,/ estéril,/ com o meu pai
a rosnar,/ sempre a rosnar,/ enquanto a casa se enche de clarões,/ e alguém demanda
a estrela da tarde,/ a estrela da manhã,/ a estrela de cinco pontas,/ a estrela polar.

nascer para morrer,/ eis o que me dizem./ sou pequeno demais para entender
o que oiço,/ mas aguardo,/ ainda,/ que haja luz na luz,/ e tudo se amplie em cada brilho,/ embora nada saiba da perversão premeditada e Deus esteja,/ como sempre,/
num abatimento contínuo/ aqui,/ ali,/ em toda a parte,/ na escura cruz,/ que alguém

quebrou,/ há muito,/ muito tempo./ é noite de natal/ esta noite,/ uma noite
de alucinação e delírio,/ quero uma cria de cão e alguém morre na casa adjacente,/
o meu desvario é não saber como saber o que quer que seja a eternidade,/ e como a luz se enreda no coração porque alguém nasceu,/ alguém pode chegar a qualquer momento/

com os seus cânticos idólatras, / o perdulário resgate./ se pudesse pedir o que quer
que fosse/ pediria para ser uma criança inocente/ sem hipótese de fuga,/ quero uma cria de cão,/ o meu pai rosna,/ quero a celebração deste natal/ sem transacções de mirra/
e incenso,/ quero,/ no espírito,/ uma ferida mortal para que a noite não seja senão breve

e o meu pai rosne com fulminante exaltação,/ e eu,/ seu filho,/ mais não possa
que contemplar todos os lados da insatisfação/ e do castigo./ nascer para morrer,/ eis
o que me é dito,/ neste rebanho vou/ para que a adoração progrida em silêncio/
sobre todas as encruzilhadas do mistério/ e eu cresça e diminua/ sobre a natividade

como há-de uma crisálida crescer,/ em metamorfose,/ enquanto na cama adjacente
a morte recrudesce,/ e uma constelação demarca a despedida infindável,/ a inclemência
certeira,/ a inquietante armadilha de estar viva,/ ainda,/ a dívida,/ a dádiva/
por que o meu pai rosna./ almejo/ a uma cria de cão,/ uma cria negra de cão,/ porque

ignoro como se nasce,/ como se morre,/ para onde vamos,/ e a multidão,/ ululante,/ 
com os joelhos em sangue,/ pode,/ ainda,/ vir aos passadiços do mundo esperar,/ impacientemente esperar,/ apenas,/ que a noite,/ esta noite,/ dissipe o temor,/
a amargura,/ o tormento,/ que,/ como uma ameaça,/ uiva de dentro da terra.


in Negrume,  & Etc, Lisboa, 2006



Foto: © de Amadeu Baptista



domingo, 19 de fevereiro de 2012

Os meus (mais belos) poemas sobre o Porto - #1


ponho-me a sorver o real a tantos de tal a uma velocidade
única,/ o meu pai está acantonado num silêncio incandescente,/ o meu pai
é um homem desabrido e passa a mão pelo pêlo do cão,/ o real
é uma imensidão de coisas distribuídas pelas várias prateleiras da casa,/

otelo, homero,/ uma canção a entretecer melodias em outras melodias/
corvos azuis, fios de prata. eu estou a sorver o real pela garrafa,/
diz meu pai,/ e a minha infância recupera de uma febre extensa e única,/
o gargalo onde o sorvedouro da vida redemoinha, entre ruas escuras, com árvores,/

em cujos ramos está a claridade de uma cozinha antiga,/ uma cozinha
onde o real é uma galinha degolada,/ tigelas purpúreas,/ sangue coalhado,
um medo indizível a percorrer todas as dependências da casa,/ a paisagem
em frente, onde o edifício da alfândega se recorta e o rio é um turbilhão inenarrável,

juncado de matérias inflamáveis,/ um corso na deriva,/ sendo que a noite amplia
tudo,/ a mulher que passa em silêncios atordoadores, a magnólia que o vento/ arrasa,/
o palácio/ onde as colunatas são deslumbradas sereias para o encanto/
e o enamoramento. aí vi a escuridão e os seus inúmeros terrores, meu pai

não tinha outro lugar para resplandecer senão a treva,/ há dias
em que avançamos lentamente por dentro da memória e a memória ganha
uma aura inqualificável, duas patas para andar, uma pena na cabeça,/
um susto,/ setenta e sete vezes cão e ave na fantasmagoria do sonho/ e do pesadelo.

digo que chovia pesadamente nesse tempo frenético, no vão de escada
guardei uma estrela,/ guardei no bolso do bibe um símile da luz
para que os olhos se habituassem à escuridão,/ meu pai batia as mãos no meu rosto/
no meu corpo,/ e eu vi, vi, os gritos na cabeça,/ os gritos nas têmporas.

vi meu pai abandonar-me à escada íngreme,/ lá longe,/ onde a fonte se chamava
fonte da colher e havia uma envergadura azul sobre as pontes magníficas,/
eu a andar,/ a andar sempre sobre o sem sentido do mundo,/ empédocles, hamlet/
no coração/ numa dívida, uma dúvida. minha mãe/ em frente, ao lume, a aquietar

o desassossego do pai, enquanto sucessivas vagas de pássaros me sobrevoavam
os lábios, embora/ eu nem sequer soubesse cantar. um músculo inesgotável
dobrava-se dentro/ do meu peito, via a mulher a prender o cabelo,/ a puxar
para si o peixe,/ a insígnia,/ todos os lugares onde a perdição é o nome da catástrofe

e uma criança chora,/ aflita,/ e nada pede, senão que a memória do choro
não permaneça no instante de um círculo circuncêntrico,/ na garrafa desarvorada,/
no fluxo do aguaceiro, onde o cão lúgubre rosna a meu pai,/ porque o meu pai é
um animal acossado, a beber, sempre a beber em pulsões exclamativas e intermitentes

e a sorte é a pouca sorte/ e nem um grão certifica a abundância,/ além dos pés/
descalços,/ os andarilhos pés descalços a abrir o real para os ângulos terrestres,/
abrindo, em relâmpagos,/ o temor e o destemor,/ a primeira e a última provação./ pai,
pai,/ eu caio,/ tu cais, nós caímos,/ tudo está a ruir à nossa volta,/ nesta data,/
perfazemos a terceira queda consecutiva, por que me abandonaste.


in Negrume,  & Etc, Lisboa, 2006



Foto: © de Amadeu Baptista

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Ζήτω η Ελλάδα !!! / Iannos Ritsos, um poema

18 de Fevereiro de 2012 / Solidariedade Internacional com o povo grego!



Iannos Ritsos, um poema


O SANGUE

Depois, uma mancha de sangue apareceu no asfalto;
a mancha crescia, ampliava-se, inundava
o pátio, o poço, a vedação do poço;
de fora ficou um metro de corda – só isso.
O relógio da catedral ficou vermelho;
no correio, o mesmo. A mancha ampliava-se,
engolia as casas, os postes telefónicos, o sol
e a nós mesmos – escondia-nos dentro do vermelho.
E só por ver a sua imensidão, sentimo-nos de novo
belos, simples, ordenados, absolvidos.


(versão minha)



Iannos Ritsos nasceu na Grécia a 1 de Maio de 1909. Aderiu ao Partido Comunista Grego, em 1931. Publicou Tractor, em 1934, inspirado no futurismo de Maiakovski. Devido às suas ideias políticas, algumas das suas obras foram queimadas em público. Foi internado em vários campos de reabilitação. No entanto, a sua produção poética é imparável, com dezenas de títulos. Em 1956, é-lhe atribuído o prémio nacional de poesia pelo livro Sonata ao Luar. Conjuntamente com Giorgios Seferis e Odysseus Elytis, é considerado um dos mais importantes poetas gregos do século XX. Faleceu a 11 de Novembro de 1990.




sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

O ESCRUTÍNIO FENÍCIO EM ANTÓNIO RAMOS ROSA


O abecedário treme, escuramente.
A palavra faúlha é obscura.
De abismo em abismo cada letra
é o infrene flagelo da procura.

Eis como algumas voam como hastes
e penetram a carne, golpe a golpe.
Irrompentes, emergem e claudicam
para que não baste, ainda, a clausura.

Alguém as escreve, alguém as vê
e sente o alarido do seu silêncio vasto,
a cabeça com brilhos animais
que rebentam com tudo o que há no mundo.

Nem sequer são punhais, apenas crina
de um cavalo feroz e transparente
que o áugure sofre, toma e aglutina
aos casulos mortais da impaciência.

No seu destino ardem, como facas
de luz nas superfícies brancas,
um silvo ágil na sombra das espiras
que marca sobre o fogo a distância

que vai da alma ao espírito em lenta progressão
sobre as coisas infinitas, as tensões,
a pura perda, o rasgão no peito,
o escrutínio fenício do poema.


in Dez Poemas Inéditos para António Ramos Rosa, Edições Asa (FM), Porto, 2004


Desenho de António Ramos Rosa

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Margarida Ferra


Margarida Ferra, poeta convidada


3 poemas:


Escadas de incêndio


Desci a correr pelas escadas de incêndio
de betão, expostas ao vento mais do que ao sol,
suportei a velocidade áspera na mão esquerda,
dei a um filho o flanco,
outra criança por um braço,
e provavelmente um par de asas seguiu-nos
mas não ousei virar-me porque diante de mim uma
outra perspectiva da cidade.


Caminho agora de igual modo todas as horas,
repito os gestos essenciais,
a melhor memória e desvelo.
Sei-os de cor e desenho-os,
nos meus dedos e nos pulsos, como novos.
Confirmo: sou a mesma que cozinha no mesmo fogão
a gás, outra água, outro combustível,
e tempera com tomilho, a pedra mármore intemporal.
Mais eficaz do que essa escada secreta e tosca,
a repetição salva-nos. Um erro
nunca pode ser emendado, nem quase isso.
Não há lugar mais firme que
debaixo da acumulação das tarefas
repetidas com esforço e zelo, sem excessos.
E sobre o tapete uma coreografia monocórdica,
segura, que faz dos dias
dias em que não se usa a escada de incêndio


(in revista Ágio)





Escreve sempre que precisares

Escreve sempre que precisares de me dizer
que há gelo nas tuas mãos e nas paredes do frigorífico.
Os legumes que trouxe ontem
não sobrevivem a mais do que uma geada,
muito menos nós.


Escreve sempre que precisares, podes
dizer-me outra vez que nunca houve inverno,
que este ano não há verão,
que estamos aqui e não estamos porque não sabemos
se somos nós ou se somos aquelas
quatro pessoas que vão à rua agora,
encontraram a porta certa.


Escreve sempre que precisares, faz
uma lista de compras, uma lista de desejos,
anota todos os pedidos que deixaste
em poemas atrasados.
Escreve sempre que precisares
de mais um postal com selo e carimbo.
Escreve sempre que riscares
na tua agenda mais uma morada.


Sempre que eu precisar vais devolver-me
uma caligrafia rebuscada que não é a tua,
curvas a mais que não fazias na letra d.
Já não há desses manuscritos,
só eu e os carteiros aprendemos a decifrá-los
(e toda a gente sabe que nem isso é verdade).
Vai escrevendo. Sempre que eu precisar,
as frases podem desviar deixas decoradas,
repetidas como as mentiras,
demasiado gastas para serem inócuas.


Escreve em vez de costurares.
Mesmo que soubesses, não há remendos suficientes,
arranhaste sem possibilidade de cura os joelhos,
os cotovelos e as canelas
(dançar sempre foi um antídoto fora do teu alcance).
Escreve que eu vejo nas tuas as minhas quedas,
os meus soluços nessas curvas
a mais que não fazes na letra d:
as tuas linhas são rectas, verticais e justas,
as minhas letras são apenas caracteres.


Escreve sempre que puderes
só em vez de apenas,
recursos humanos em vez de
resíduos urbanos. Talvez sejamos mais
do que pessoas, temos tamanhos diferentes
e não servimos nos lugares que nos foram destinados.


Escreve sempre que precisares de uma porta
onde caibas,
nunca trago chaves comigo.


(in revista Correntes de Escritas)





7.


Ontem adormeceste, ainda
tínhamos as facas todas na boca
e três por abrir.
Ficou uma pousada
em equilíbrio geométrico
na linha dos lábios.
Não sei de quem eram
esses lábios de onde
o gume imóvel não deixava sair
as palavras duras
e, mais tarde, os pesadelos.
Outra, o cabo na minha mão,
esqueci-a antes da última
costela flutuante
depois do coração.


De manhã éramos só nós, frios,
e a memória das cinzas na rua.


(in Curso Intensivo de Jardinagem, & Etc, Lisboa, 2010)




Margarida Ferra.Tem 34 anos e dois filhos. Licenciou-se em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Trabalhou numa pizzaria, num jornal, numa galeria de arte contemporânea, em duas livrarias e no Palácio da Ajuda. Trabalha agora num grupo editorial, não o mesmo onde publicou, em 2010, um livro com 32 poemas - tantos quantos os anos que tinha na altura. Curso Intensivo de Jardinagem saiu pela &etc.


Fotos: de Margarida Ferra © de José Mário Silva; ilustração dos poemas © de Amadeu Baptista;
 

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Rua Monte dos Judeus, 78

Um laço e um lance de escada,
a sombra revelada é talvez o vulto esperado,
a folha do último outono sobre a clarabóia,
essas linhas paralelas ao teu rosto
onde a ausência rasga uma espera inútil,
um zumbido dentro da cabeça como o primeiro prenúncio
da morte.

A ferida alastra,
a rua enche-se desses mercados ruidosos,
laranjas e amoras que queimam a realidade,
um pregão que anuncia a passagem de mais uma hora,
o gesto parado sobre a cabeça do anjo
que ergue a taça sulfurosa, suspende
o brilho sobre os ombros,
incrimina a paixão.

Agora o sangue alastra e a cidade arde
no ardil da tintura, a gaze
asfixia o olhar,
as mãos desprendendo-se para um lugar
de absoluta solidão,
esse silêncio que corre nas veias
como soro e antídoto
de uma outra grandeza mais feroz,
essa que afasta a sombra do corpo sobre a fronte imaculada,
o lençol que precipita a luz nos olhos cegos,
o destino que vai com o sol para as fogueiras da noite.

O corredor bifurca em dois corredores sem saída,
a panóplia de fragmentações agora recomeça e abate-se sobre o coração,
é ainda possível recordar o quarto minguante que vivemos
no primeiro encontro, saber que não são já as mesmas mãos que escreveram
a subtil despedida, apenas a iniquidade, talvez a pouca sorte,
sem dúvida o constrangimento
de tudo ter sido como que irreal neste espaço brutalmente real
e ter sido a lágrima derramada em vão.


in Antecedentes Criminais Antologia Pessoal 1982-2007, V. N. de Famalicão, 2007


domingo, 12 de fevereiro de 2012

Poemas de Caravaggio - Três elegias

1.
É em manhãs assim que não sei como escrever
elegias, vou ao ágora do poema e só encontro
cães, e os cães estão sôfregos pelo que paira no ar,
a extensa litania que submerge a cidade e irrompe
do sentido para prevalecer. É uma manhã napolitana,
com fumarolas e lâmpadas a crescer pelas praças,
e os cães estão a céu aberto a marcar com as patas
o exíguo território a que se confinam os mortos,
os mortos amontoados nas ruas, como se fossem
uma barreira para o mar, uma barreira de coral
com pés e mãos, e bocas hiantes no sobressalto
do mundo. É em manhãs assim que alguma coisa pica
o sangue, e me lembro de ti um pouco antes de seres
definitivamente mulher, e és uma rapariga camponesa
a enumerar as ondas, a descer sobre os campos
onde todas as batalhas decorrem, todos os clarões.
És hoje esta elegia, mas não sei, ainda, como hei-de
escrever-te, permaneces no templo e guardas na luz
o teu contorno marítimo, onde há colinas nuas
e arbustos pequenos como os teus dentes miúdos.
Os cães aguardam, e uivam, e rosnam, e é esse o sinal
para o arrebatamento, vem um braço de vento tocar-te
o rosto e sou eu que toco os teus cabelos, numa carícia perfaço
um juramento em que estás presente, ainda que estejas
ausente, e só saibam os cães onde, e como, procurar-te.
Encontro-te, talvez, um pouco acima do céu, um pouco abaixo da terra,
encontro-te exactamente onde Nápoles se olha no escuro
e onde tenho a boca em fogo para pronunciar o teu nome,
ainda que em manhãs assim não saiba como escrever
elegias e a partida seja um rio intranquilo em que tudo
te lembra. Eu e os cães ouvimos vozes nocturnas, e, de repente,
apareces, e a manhã estremece, e vibra, muito branca,
sendo que os cães sabem tudo de ti e eu te choro
sob esta sombra, ainda que o sol brilhe sobre o mar,
ainda que a janela entreaberta enquadre a nitidez de uma silhueta
com o teu rosto, e eu não seja mais que um navio votivo, perdido a jusante.



2.
Claro, o mármore transpõe o teu rosto para o tempo
e deixa-te a sorrir pelos séculos, sobretudo nas estações
do ano em que a luz é mais densa e a memória é, ainda,
um indício de como se trabalha na terra e como a terra
nos trabalha a nós. No mármore ficam todas as sedimentações,
todas as maçãs, todos os ritmos em que o apaziguamento
recobrou os sentidos e te leva pela casa a altas horas
da noite a murmurar canções indizíveis, às vezes coisas obscenas,
que tu cicias com um sorriso cândido quando há gente em volta
a insistir em ouvir a tua voz. No mármore ficam os filhos
que tiveste ou lamentaste não ter e, também, as noites de luar
em que te chamas madrigal e invocas os anjos para que sejas
tu mesma um anjo. E ficam os mantimentos que escolheste anos a fio,
a tua sombra magnífica sobre o fogão, e o teu perfume,
esse perfume dourado a conjecturar sobre o amor
como se o amor fosse não só uma essência mas todos os jardins
do mundo. Claro, o mármore cinge-te às coisas que só tu pudeste
ser, mas incredulamente, como tu dizes, e continuas a ser
nesta irremediável dimensão da pedra em que tudo se transforma
para que a sua fria dureza manifeste algo idêntico ao teu corpo
e tu te reencaminhes na eternidade sem outra vocação
que a de voltares a nascer logo que possível para vires mimar
o gato, as flores, a neve quase azul da primavera e, depois, reacenderes
a lareira com os teus finos gestos de adoradora do sol.


3.
Não sei como pode um homem desolado conduzir
os exércitos e dar à emboscada um sentido preciso
no rumo do combate. Não sei como posso
ainda erguer-me e sentir o sol na cara,
ou ver, ao longe, os duzentos cavalos a desbravar
a montanha e sentir, com eles, o coração
acelerado e triunfal, não sei como posso
sentir a aljava de buxo nos meus dedos
ou desmontar a tenda na hora do regresso
sem que saiba de que sono e ausência precaveste
os mais íntimos enigmas que o teu corpo
fechou sobre ti mesma. Não sei como tolerar
o intolerável e ir à guerra e sentir vertigens
pela falta que me fazes cada dia e noite.
Não sei como pode a água ser clara e a trepadeira
florir assim, com luz vermelha, se a dor que me mantém
é a tua sombra imóvel, e inviolável, nesta casa. Não sei
como entender o que grita e ruge e se amotina
no meu peito porque não voltarás a encher o meu bornal
nem estarás comigo a ver a bruma densa
sobre os campos de feno. Não sei, não sei
sequer como erigir uma elegia em que te possa
lembrar na desvelada ternura que entregaste
aos prisioneiros que fiz na última batalha.
Não sei como suprir o que esta perda
me trouxe de frio e maldição, ou como adormecer
contigo na memória e a garganta áspera
do vinho negro e doce da libação amarga.

(in Poemas de Caravaggio, Maia, Cosmorama, 2008)



Caravaggio, 'Cabeça de Medusa'
Óleo s/ tela colado sobre disco de madeira de choupo, 60 x 55 cm
Galleria Degli Uffizi, Florença