quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Os meus (mais belos) poemas sobre o Porto - # 4

a japoneira,/ a magnólia,/ a macieira/ vários encontros cruzados,/  em projecto,
no pátio superior da casa/ da rua do monte dos judeus,/ setenta e oito./
tenho a certeza que havia um odor a canela no ar,/ tenho a certeza
que a aproximação do rio fazia recrudescer as sístoles/ e as diástoles da noite.

venho de um desses eventos em que  a predestinação condiciona a história/
familiar,/ venho do meu avô barqueiro/ a levar dois tostões pela travessia/
venho de uma casa onde havia um candeeiro a petróleo/ e se comiam
peixes de água doce,/ e faziam excursões para a degustação formidável do sável.

alguém descasca uma maçã na ribeira do porto./ sobre o rio árduo,/ minha mãe
usa uma máquina a petróleo e uma luz esverdeada nos olhos,/ e lava/
numa pedra/ todos os fumos que se engastam na roupa por causa da morte./
todos os medos que a vida não há-de/ nunca/ suprir.

minha mãe chora,/ enquanto os meus irmãos apreendem a maçã e a fazem sua./
os meus irmãos/ usam de todas as prerrogativas de serem órfãos nos dias festivos,
quando descemos a miragaia para cortar o cabelo/ e roubamos/ na loja de secos
e molhados/ do senhor avelino/ outra maçã. a do início,/ a mais elementar.

sob os arcos, há uma venda de açúcar e azeitonas,/ os rapazes usam
fisgas e baraços vermelhos,/ meu pai lá está,/ no ponto em que a avó esmeralda
desespera por estar morta,/ e a salvação possível é só esta qualidade/
do ar, aromática,/ que chega do jacarandá luminoso do largo do viriato.

sei, certa noite, que um homem se esganou num guindaste,/ sei,
certa noite, que o meu pai arrecada ameaças no bolso de trás das calças de sarja./
eu vejo ali ao fundo uma traineira pronta a partir,/ e mulheres, nas barcas/
a carregar carvão, com sacos de serapilheira a proteger-lhes a cabeça.

também a minha cabeça está coberta de cal, hoje/ em dia. passo
ao muro dos bacalhoeiros e estou na única cidade que amo,/ uma cidade
com um rio fecundo, porque as crianças mergulham em voo no seu leito,/
crianças que estão freneticamente a celebrar são joão e a baptizar as águas.

chama-se este rio rio douro e trago à colação os meus ancestrais,/ porque não há
rio mais ancestral que este,/ com os seus brilhos tonitruantes no crepúsculo./
posso mesmo dizer que o início da queda se afeiçoou a estas pedras,/ assim,/
cinzentas,/ porque a expressão dos azuis deste rio é volátil/ como um poema.

escolho este miradouro de varandas solenes e clarabóias iridescentes./
sobre a praia,/ estreita,/ tudo se enquadra num encontro e num tema,/ a infância,/
certas vantagens e desvantagens,/ o porte pétreo que uma incisão nas veias
subordina à razão e ao coração./ para lá, ou para cá,/ de qualquer fronteira.

esta casa é o mundo./ não posso senão dizer mais uma vez a cameleira/
a nespereira,/ a ameixoeira branca/, íamos cortar o cabelo com o cabedelo nos olhos/
e podíamos partir a qualquer momento, sendo apenas anjos,/ como se sabe,/ na cidade da virgem que este rio pagão,/ sob a névoa,/ transfigura,/ profana, amavelmente.

a infância é um farol leal a ir na correnteza do que de montante/ a jusante,/ apraz ver
crescer/ bravio, constante,/ na enseada fluida em que tudo se guarda/ até à eternidade,
como a memória de uma enchente./ a enchente tenaz em que ouvimos um grito atroador e vamos,/ num navio fantástico,/ fantasma,/ fitar o pesadelo aos pilotos da barra.

no mais, tudo é reencontro,/ sempre. com os que acompanhamos,/ com os que nos acompanham,/ abrimos as mãos ao reconforto/ e subimos à arvore mais alta
para contar estrelas,/ como nessa noite em que a casa ardeu/
a precipitar todos os seus habitantes na torrencialidade,/ estranha, desabrida.

no dia em que morrer não morrerá este brilho./ na magia dos trânsitos,/ no alvoroço
contínuo que da outra margem me chama,/ e a que respondo/ porque minha mãe
o comanda,/ eu sei que a salvação é não haver no céu mais nenhuma glória
se não se espelhar neste rio,/ ou não tiver este nome,/ como porto, ou abrigo.

in Negrume,  & Etc, Lisboa, 2006


Foto: © de Amadeu Baptista

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