Margarida Ferra, poeta convidada
3 poemas:
Escadas de incêndio
Desci a correr pelas escadas de incêndio
de betão, expostas ao vento mais do que ao sol,
suportei a velocidade áspera na mão esquerda,
dei a um filho o flanco,
outra criança por um braço,
e provavelmente um par de asas seguiu-nos
mas não ousei virar-me porque diante de mim uma
outra perspectiva da cidade.
Caminho agora de igual modo todas as horas,
repito os gestos essenciais,
a melhor memória e desvelo.
Sei-os de cor e desenho-os,
nos meus dedos e nos pulsos, como novos.
Confirmo: sou a mesma que cozinha no mesmo fogão
a gás, outra água, outro combustível,
e tempera com tomilho, a pedra mármore intemporal.
Mais eficaz do que essa escada secreta e tosca,
a repetição salva-nos. Um erro
nunca pode ser emendado, nem quase isso.
Não há lugar mais firme que
debaixo da acumulação das tarefas
repetidas com esforço e zelo, sem excessos.
E sobre o tapete uma coreografia monocórdica,
segura, que faz dos dias
dias em que não se usa a escada de incêndio
de betão, expostas ao vento mais do que ao sol,
suportei a velocidade áspera na mão esquerda,
dei a um filho o flanco,
outra criança por um braço,
e provavelmente um par de asas seguiu-nos
mas não ousei virar-me porque diante de mim uma
outra perspectiva da cidade.
Caminho agora de igual modo todas as horas,
repito os gestos essenciais,
a melhor memória e desvelo.
Sei-os de cor e desenho-os,
nos meus dedos e nos pulsos, como novos.
Confirmo: sou a mesma que cozinha no mesmo fogão
a gás, outra água, outro combustível,
e tempera com tomilho, a pedra mármore intemporal.
Mais eficaz do que essa escada secreta e tosca,
a repetição salva-nos. Um erro
nunca pode ser emendado, nem quase isso.
Não há lugar mais firme que
debaixo da acumulação das tarefas
repetidas com esforço e zelo, sem excessos.
E sobre o tapete uma coreografia monocórdica,
segura, que faz dos dias
dias em que não se usa a escada de incêndio
(in revista Ágio)
Escreve sempre que precisares
Escreve sempre que precisares de me dizer
que há gelo nas tuas mãos e nas paredes do frigorífico.
Os legumes que trouxe ontem
não sobrevivem a mais do que uma geada,
muito menos nós.
Escreve sempre que precisares, podes
dizer-me outra vez que nunca houve inverno,
que este ano não há verão,
que estamos aqui e não estamos porque não sabemos
se somos nós ou se somos aquelas
quatro pessoas que vão à rua agora,
encontraram a porta certa.
Escreve sempre que precisares, faz
uma lista de compras, uma lista de desejos,
anota todos os pedidos que deixaste
em poemas atrasados.
Escreve sempre que precisares
de mais um postal com selo e carimbo.
Escreve sempre que riscares
na tua agenda mais uma morada.
Sempre que eu precisar vais devolver-me
uma caligrafia rebuscada que não é a tua,
curvas a mais que não fazias na letra d.
Já não há desses manuscritos,
só eu e os carteiros aprendemos a decifrá-los
(e toda a gente sabe que nem isso é verdade).
Vai escrevendo. Sempre que eu precisar,
as frases podem desviar deixas decoradas,
repetidas como as mentiras,
demasiado gastas para serem inócuas.
Escreve em vez de costurares.
Mesmo que soubesses, não há remendos suficientes,
arranhaste sem possibilidade de cura os joelhos,
os cotovelos e as canelas
(dançar sempre foi um antídoto fora do teu alcance).
Escreve que eu vejo nas tuas as minhas quedas,
os meus soluços nessas curvas
a mais que não fazes na letra d:
as tuas linhas são rectas, verticais e justas,
as minhas letras são apenas caracteres.
Escreve sempre que puderes
só em vez de apenas,
recursos humanos em vez de
resíduos urbanos. Talvez sejamos mais
do que pessoas, temos tamanhos diferentes
e não servimos nos lugares que nos foram destinados.
Escreve sempre que precisares de uma porta
onde caibas,
nunca trago chaves comigo.
que há gelo nas tuas mãos e nas paredes do frigorífico.
Os legumes que trouxe ontem
não sobrevivem a mais do que uma geada,
muito menos nós.
Escreve sempre que precisares, podes
dizer-me outra vez que nunca houve inverno,
que este ano não há verão,
que estamos aqui e não estamos porque não sabemos
se somos nós ou se somos aquelas
quatro pessoas que vão à rua agora,
encontraram a porta certa.
Escreve sempre que precisares, faz
uma lista de compras, uma lista de desejos,
anota todos os pedidos que deixaste
em poemas atrasados.
Escreve sempre que precisares
de mais um postal com selo e carimbo.
Escreve sempre que riscares
na tua agenda mais uma morada.
Sempre que eu precisar vais devolver-me
uma caligrafia rebuscada que não é a tua,
curvas a mais que não fazias na letra d.
Já não há desses manuscritos,
só eu e os carteiros aprendemos a decifrá-los
(e toda a gente sabe que nem isso é verdade).
Vai escrevendo. Sempre que eu precisar,
as frases podem desviar deixas decoradas,
repetidas como as mentiras,
demasiado gastas para serem inócuas.
Escreve em vez de costurares.
Mesmo que soubesses, não há remendos suficientes,
arranhaste sem possibilidade de cura os joelhos,
os cotovelos e as canelas
(dançar sempre foi um antídoto fora do teu alcance).
Escreve que eu vejo nas tuas as minhas quedas,
os meus soluços nessas curvas
a mais que não fazes na letra d:
as tuas linhas são rectas, verticais e justas,
as minhas letras são apenas caracteres.
Escreve sempre que puderes
só em vez de apenas,
recursos humanos em vez de
resíduos urbanos. Talvez sejamos mais
do que pessoas, temos tamanhos diferentes
e não servimos nos lugares que nos foram destinados.
Escreve sempre que precisares de uma porta
onde caibas,
nunca trago chaves comigo.
(in revista Correntes de Escritas)
7.
Ontem adormeceste, ainda
tínhamos as facas todas na boca
e três por abrir.
Ficou uma pousada
em equilíbrio geométrico
na linha dos lábios.
Não sei de quem eram
esses lábios de onde
o gume imóvel não deixava sair
as palavras duras
e, mais tarde, os pesadelos.
Outra, o cabo na minha mão,
esqueci-a antes da última
costela flutuante
depois do coração.
De manhã éramos só nós, frios,
e a memória das cinzas na rua.
(in Curso Intensivo de Jardinagem, & Etc, Lisboa, 2010)
Margarida Ferra.Tem 34 anos e dois filhos. Licenciou-se em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Trabalhou numa pizzaria, num jornal, numa galeria de arte contemporânea, em duas livrarias e no Palácio da Ajuda. Trabalha agora num grupo editorial, não o mesmo onde publicou, em 2010, um livro com 32 poemas - tantos quantos os anos que tinha na altura. Curso Intensivo de Jardinagem saiu pela &etc.
Fotos: de Margarida Ferra © de José Mário Silva; ilustração dos poemas © de Amadeu Baptista;
woww *_*! E aqui estou eu na minha humilde posição de tardia adolescente a dizer que estes 3 poemas me arrebatariam completamente qualquer um...
ResponderEliminarGosto tanto. A Margarida Ferra tem um Blog?