quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Sigfús Dadason



Poemas de Sigfús Dadason



A CABEÇA HUMANA É ALGO PESADA

A cabeça humana é algo pesada
e no entanto temos que andar direitos
e o verão compensa-nos de todas as faltas

Deixamos a nossa velha residência
– como jornais na papeleira –
seguimos adiante sem olhar para trás

Ou quebramos de repente o telhado de vidro
que protege os nossos velhos dias?
para isso nos pomos a caminho.

E inclusivamente ainda que caíssemos
o sol converter-nos-ia em matéria prima
e pouco a pouco voltaríamos a ser um todo.

Um rosto conhecido, um som, um vento suave
são o teu tesouro, filho,
novo e excitante.

Ljód, 1947-1951



A qualquer fica bem morrer
sob a luz radiante e contemplar o seu próprio sangue
contemplar como o seu sangue flui e coalha
nuns olhos escuros pouco antes do dia
que se eleva de uns olhos escuros, atrás do muro
de orvalho sedoso, de madrugada numa breve noite de
primavera

morrer distante de uns olhos abertos e tranquilos
e de uns braços ternos, de umas mãos suaves, refrescantes
justamente antes da alba com a luz das suas pesadas cargas,
o odor das ruas quentes, a chuva de água fria
e escutar o automóvel que arranca os pés
que se distanciam com os seus rápidos passos matinais: sentir
que a noite toca o seu fim
talvez haja alguém
presente para ver explodir os olhos
justamente antes da alba.
Isso a qualquer fica bem.

Ljód, 1947-1951



NASCERÁ EM NÓS O DIA UMA VEZ QUEBRADO O SELO

Nascerá em nós o dia uma vez quebrado o selo,
quando fizermos farrapos da nossa própria imagem

quando tivermos comprado com tudo o que temos
o que nunca saberemos o que é

quando tivermos deixado a vida e a morte
no punho fechado do que sempre escapa

quando tivermos aprendido a apreciar totalmente
a suavidade da pedreneira, a trémula dureza da água

Nascerá então em nós o dia
nascerá então em nós o dia
após a grande noite?

Ljód, 1947-1951



PALAVRAS

Palavras
cada vez digo menos palavras
já que há muito que me são antipáticas.
Dizem que são uma marca de nobreza
mas não pensam como as palavras são caras
nem como podem pagá-las.

Em breve escurecerá
do mais não sabemos muito
olhai: formosos rostos
rostos atormentados desfilam
desfilam e desaparecem

e almas hipócritas em toda a parte
ocupam-se em prolongar o dia
(para que não desistamos
de procurar a linguagem quimicamente pura
e a usem em segredo).

Mas estávamos a falar, creio, das palavras
para muitos são seguramente dóceis
colhem pelo caminho ramos de palavras
e falam sem que alguma vez entendam.

De qualquer modo, eu pediria aos homens
que usassem com cuidado as palavras
porque podem explodir
ainda que resulte ainda mais perigoso
que se encharque a pólvora.

Perante este dilema tenho-me sempre sentido aterrado

e na realidade sabemos muito pouco
excepto de que em breve escurecerá

lua nova
novo copo de vinho
novissima verba.


N. do T. ‘Novissima verba’: expressão latina para ‘as últimas palavras’ ou ‘ as palavras mais recentes’

Hendur og ord, 1959






PÕE UMA PISTOLA NA MÃO

Põe uma pistola na mão
Põe uma pistola em cada mão.

Estica o braço
e dispara
como deve ser.

Dispara sem premeditação
e sem hesitação
alguém fará de alvo.

As testemunhas desse assassinato
estavam – depois de tudo –
ausentes ou distraídos.

O juiz, no final,
considerará as pistolas
o assassinato
e as testemunhas do assassinato
como símbolos de uma obra de arte.


Hendur og ord, 1959



AS CIDADES ACOLHERAM-TE SEMPRE COM OS BRAÇOS ABERTOS

As cidades acolheram-te sempre com os braços abertos
amas mães docemente
durante muito tempo chorou
o ferro e a terra fria
abriu-se engoliu-te e devolveu-te inteiro
ao princípio querias-te livre
solto mas logo puseram
os minutos ressonantes uma grilheta nos teus pés.

Preso à velocidade tinhas um desejo
oculto e silencioso: seguir sempre adiante
entregar-te ao prazer desgarrado que sempre perde
o que é e sem olhar atrás transforma
a vida em morte e a morte em vida
e saúda a vitória na derrota e sempre
se distancia.

Companheiros sensíveis os teus olhos
sonolentos uniram a tua metade ao seu mundo
da cidade futura: e mendigos, prostitutas e ratoneiros
névoa e fedores e o aluvião de gente ao entardecer
envolvem-te poderosos libertam-te
atraem-te e concedem-te o perdão e o instinto:
Levanta-te, põe a tua carga ao ombro e olha
a cidade
recebe-te com os seus braços abertos, cálidos e radiantes.

Hendur og ord, 1959



PELOS NOSSOS CORAÇÕES PASSA A LINHA DE FOGO

Pelos nossos corações passa a linha de fogo
mas a batalha tem lugar na nossa ardente cabeça
na metade de cada campo agrupam-se as hostes
e cada casa baixa é uma face destroçada

de esperanças e desesperanças assim é esta primavera
as árvores vivem em luz e ciclones velozes
constantemente forjam a tempestade na brisa da tarde
onde se ocultarão no outono os seus iguais?

Mártires e heróis que no passado os enfrentastes
verdugos e padres vós possuíste
essa fé que desloca montanhas e por isso elevaste-vos
intrépidos com a fé intensa que move as serranias

conta o inumano, contra o incomensurável
que era para vós o pequeno; o vosso exemplo
durará os outonos, os anos e os séculos
mártires e heróis sois Fénix que renasce

a esperança banhada na luz. O rumor suave
do sangue sob a pele indefesa no coração
transparente
dos homens e dos deuses linguagem e código
da eternidade
de uma vida: com espírito de homem e corpo de terra.

Hendur og ord, 1959



RISO

Um riso espontâneo chega-me da noite
um riso claro que morre e se perde no escuro
e que não sei a quem ia dirigido…

… Nem sei quem pôde suscitar esse riso
despreocupado, alegre, claro, cristalino…

E ainda que talvez se sentisse culpado
de só ser capaz de suscitar o riso
de ter tido parte desse riso inesperado
que fugazmente iluminou com um resplendor áureo
tristezas e dores…

Fá ein ljód, 1977


Versão minha - © Amadeu Baptista





Sigfús Dadason (1928-1996), é um dos poetas islandeses mais destacados, tendo alterado profundamente o panorama da poesia islandesa do século XX. Os seus poemas reflectem sobre a vida e a morte, fazendo uma dura crítica ao militarismo e as carências sociais e humanas. Foi também tradutor de poesia, designadamente poesia francesa.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Egito Gonçalves


Um poema de Egito Gonçalves



Notícias do Bloqueio

 
Aproveito a tua neutralidade,
o teu rosto oval, a tua beleza clara,
para enviar notícias do bloqueio
aos que no continente esperam ansiosos.
 
Tu lhes dirás do coração o que sofremos
nos dias que embranquecem os cabelos...
tu lhes dirás a comoção e as palavras
que prendemos – contrabando – aos teus cabelos.
 
Tu lhes dirás o nosso ódio construído,
sustentando a defesa à nossa volta
- único acolchoado para a noite
florescida de fome e de tristezas.
 
Tua neutralidade passará
por sobre a barreira alfandegária
e a tua mala levará fotografias,
um mapa, duas cartas, uma lágrima...
 
Dirás como trabalhamos em silêncio,
como comemos silêncio, bebemos
silêncio, nadamos e morremos
feridos de silêncio duro e violento.
 
Vai pois e noticia com um archote
aos que encontrares de fora das muralhas
o mundo em que nos vemos, poesia
massacrada e medos à ilharga.
 
Vai pois e conta nos jornais diários
ou escreve com ácido nas paredes
o que viste, o que sabes, o que eu disse
entre dois bombardeamentos já esperados.
 
Mas diz-lhes que se mantém indevassável
o segredo das torres que nos erguem,
e suspensa delas uma flor em lume
grita o seu nome incandescente e puro.
 
Diz-lhes que se resiste na cidade
desfigurada por feridas de granadas
e enquanto a água e os víveres escasseiam
aumenta a raiva
e a esperança reproduz-se


(in O Pêndulo Afectivo - Antologia Poética, 1950-1990, Porto, Afrontamento, 1991)




Egito Gonçalves nasceu em 1922, em Matosinhos, e faleceu, no Porto, a 29 de Janeiro de 2001. Começou a publicar os seus livros de poesia no início da década de 50. O seu nome aparece-nos ligado, a partir dessa altura, a algumas revistas de poesia que fundou e/ou dirigiu: A Serpente (1951), Árvore (1952), Notícias do Bloqueio (1957). Poeta e tradutor, Egito Gonçalves desempenhou ao longo da sua vida um grande papel na animação literária e cultural do Porto, a cidade onde viveu. Foi um dos fundadores do TEP – Teatro Experimental do Porto. Em 1977 foi-lhe atribuído o Prémio de Tradução Calouste Gulbenkian, da Academia das Ciências de Lisboa pela selecção de Poemas da Resistência Chilena e, em 1985, recebeu o Prémio Internacional Nicola Vaptzarov, da União de Escritores Búlgaros. Em 1995 foi galardoado com o Prémio de Poesia do Pen Clube, o Prémio Eça de Queirós e o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritor, com o livro E No entanto Move-se.  Da sua longa obra, destacam-se os seguintes títulos: Um Homem na Neblina (1950); A Viagem com o Teu Rosto (1958); Os Arquivos do Silêncio (1963);Falo da Vertigem (1993); E no Entanto Move-se (1995); O Mapa do Tesouro (1998); A Ferida Amável (2000).

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

O Bosque Cintilante # 75

Aram Khatchaturian: Dança do Sabre

Entregamos os vigamentos da casa neste lado
do mundo. Os carros chegam
com as cores intensíssimas, páram na bruma, aguardam
o início do cataclismo, propaga-se o estrondo
para além dos portões onde a vertigem aguarda o fim da finitude,
esse lamento murmurado ao ouvido dos anjos. As horas
passam e nada se vislumbra, o fogo toca
os sentidos de quem passa, pequenos brilhos opacos
vibram na sedimentação, as raízes que o vento
levanta na eternidade, filamentos de sangue
onde as almas afeiçoam as pedras aos gritos inaudíveis,
a memória de um incêndio que transfigura a terra em nomes
sibilinos, sabres
vingadores.

O Bosque Cintilante, Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Hans Børli



POEMAS DE HANS BØRLI



AÇO

Este arado
é made in Germany.
Aqui está coberto de orvalho
fresco e agradável ao toque
como a madeixa de uma mulher adormecida.

Se o destino o tivesse querido
o aço deste arado
teria ido parar às fábricas da Krupp em Essen.
Então talvez
– fundido como morteiro –
tivesse arado em carne quente.

Agora repousa a terra
arada na tarde primaveril.
E gorjeia a alvéola
bicando vermes entre os sulcos.

E o arado está aqui
enlameado e cândido.
Sabe o que sussurrou a terra
ao acariciar a relha.
Mas não sabe nada
sobre Cherbourg,
Velikie-Luki
nem El-Alamein.

Villfugl, 1947


ERIÓFORO NO PÃNTANO DE LOMTJEN

Se eu, por absurdo que pareça,
me fizesse santo
e entrasse nas moradas dos bem-aventurados,
então diria ao arcanjo:
– Eu vi algo
que é mais branco do que as tuas asas, Gabriel!

Vi florescer o erióforo
nos pântanos de Lomtjen

aqui na minha terra.

Jag vile fange en fufl, 1960


LOUIS ARMSTRONG

Velho, doce Satchmo –
rosto com marcas de rodas na planície,
como terra e fosforescência marinha.
Feridas nos lábios.
Sangue na boquilha de latão. Sempre
ruge a tempestade de sol
na gretada árvore dos teus pulmões. Sempre
foge um corvo com as asas de pomba
da tua garganta esgotada de cantar.

Nobody knows…

Vês todas essas mãos brancas, Satchmo?
Aplaudem.
Mãos que bateram, mãos que enforcaram, mãos
que dividiram uma doce e crescente escuridão
com a cruz em chamas do ódio.
Agora aplaudem.
E tu tocas, velho. Cantas
o Lullaby do Uncle Satchmo. O suor escorre, o peito
arfa. Há um sol cravado
na resplandecente boca da trompete.
Como o pranto numa garganta.

… the trouble I’ve seen

Como me fez envergonhar-me o teu sorriso cheio de cicatrizes
do meu próprio rosto fechado,
da minha genuflexão perante as sombras. Pergunto-te:
De onde tiras a força para
a tua rebelião sem ódio? O teu
resplandecente tom de luz que
ilumina a noite dos negros? Responde-me
como há-de ser a dor maior…
como há-de ser a dor maior
para alimentar uma alegria pura?

E a trompete responde
da distância,
um fumo de prata:
Mississípi.

Ved bälet, 1962


GETSÊMANI

Percorria um triste zumbido
de pena o monte Getsêmani naquela noite…
a noite em que os soldados levaram o filho de Maria
à casa do sumo-sacerdote?
Não,
um pastor de burros que levava os seus animais
pela porta de Shusan à hora terceira,
ouviu o sussurro de um profundo suspiro
de paz no olival.
E no pequeno buraco que os joelhos do Mestre
cavaram na terra macia,
caminhava um escaravelho
com uma carapaça como que de cobre antigo,
com as palpitantes antenas em tensão
para uma fragrância de hibisco.

Uma flauta de pastor no alto da colina
soava solitária e longínqua.

Ved bälet, 1962


ALTAMIRA – OU O MONÓLOGO DO PINTOR RUPESTRE

As planícies são tão imensas,
a gruta tão estreita. A angústia
trespassa como fumo a mente, o coração de estalactite
da morte solta o seu tic-tac nas trevas.
    Quero fixar
o instante perdido da vida numa linha
gravada na pedra das paredes da gruta: um bisonte
com os cornos voltados para o destino,
    um jovem veado
que na madrugada seguiu a sua fêmea, mas agora
é um monte de ossos corroídos e embranquecidos
em torno de uma fogueira de caçadores.
    Quero pintar
com ocre, fuligem e sangue, pintar
a vida que brincava
como uma corçazinha pelas ventosas planícies
antes de se converter em comida, antes que
a beleza se afogasse em estômagos sem fundo.

Venta do norte. Ressoa
em gelos crescentes. Mas os homens estão em festa.
Satisfeitos sorrisos untados de gordura brilham no resplendor
do fogo assobia em volta de pesados espetos,
    as mulheres gritam
com vestígios de sangue dos dedos dos caçadores
sobre os peitos e os músculos – longe, sob a lua
os lobos anunciam o inverno.
    Quero pintar
com ocre, fuligem e sangue, pintar
a corçazinha que morreu a dançar
e morre diariamente
com uma desapiedada pedreneira no coração.

Hver liten, 1964


A FUGA É IMPOSSÍVEL

A fuga é impossível.
Tu és o teu próprio prisioneiro.
Através das portas do corpo só saem
gritos e lágrimas,
mucos e merda.
E sémen,
como uma via láctea de angústia
no universo da morte.

Isfuglen, 1970


ENTREGA A TUA ALMA

Entrega a tua alma ao vento,
deixa que os teus cavalos de trabalho pastem
na terra sem arar
enquanto as aves do céu recolhem
as tuas valiosas sementes. Então
talvez ocorra que
o Poema brote na tua vida
como espinhosas e vermelhas
flores de cardo.

Dagen er et brev, 1981


A MÃO DE DEUS

A minha pequena vida recôndita:
Uma chama de fósforo
que arde assustada
no oco da mão de Deus
durante as ventosas noites do mundo.

Sim, no assustado resplendor de mim mesmo
vi a palma da
mão de Deus.
Era dura e tosca,
gasta
como a mão de um colono
que uma tarde no seu campo
esmaga um grão de cevada para ver
se o miolo é bom.

Frosne tranebœr, 1984


Versão minha - © Amadeu Baptista



Hans Børli (1918-1989) nasceu em Eidskog. Trabalhou como lenhador a maior parte da sua vida. Estreou-se em 1945 e, um ano depois, publicou o romance Han som valte skogen (O que elegeu o bosque).

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Fernando Esteves Pinto





Fernando Esteves Pinto, poeta convidado, três poemas:




O TEMPO QUE FALTA

I
Vê como as coisas são. 
Chega um dia e o passado não falha 
a sua correspondência moral. 
Consagra-me o dever de confirmar reconhecimento
sem que a memória confunda o que foi as minhas regiões perversas
e o que representa agora estes fantasmas do presente.

Como se o tempo escrevesse cartas de despedida
e eu sempre fingisse exílios inocentes
rendida como estou ao monólogo do corpo
e tão sensível e fragmentada como um diário efémero.

II
Como esta parede que larga a sua tinta
também a minha pele deixou de ilustrar 
qualquer frescura, tão ferida e derrubada
se parece que já nada testemunha
do artifício que eu usava quando escoltada
por cosméticos e fantasia 
tomava em minhas mãos o passaporte da boémia, 
por sombras que assinalavam a melhor direcção, 
o mais seguro desamparo do meu tesouro, 
sempre as mesmas condições e renúncias
que acabavam em contrato de desespero e hemorragia.

III
Vêm visitar-me e com elas trazem
As misérias por onde passaram.
Desfiam-me histórias da última cartada,
amparadas pelas rédeas da sorte  
e suas defesas artificiais. 
Romances impetuosos 
onde a vida se divide ao meio,
entre aventuras e jogos de cintura 
que exigem emotiva habilidade.

Ouço-as em duelo acusando as causas 
de tão intrigantes biografias:
uma lâmina urgente que afia o perigo
a roçar o peito. A presença de uma dor
que finge alívio no sigilo dos seus compromissos.  
E a desdenhosa felicidade amputando a esperança
que as conduzem no regresso.

São as meninas da ronda, parque, nocturno, 
medo e paraíso. Vivem como as nuvens 
que se desfazem milagrosas no mais fundo dos céus.
Sei que fogem do mesmo que em mim foi infortúnio: 
trocar um dia por outro dia e não sentir a carga 
que se acumula pelo tempo.



Fotos (ilustração dos poemas): © de Amadeu Baptista

Poemas: © Fernando Esteves Pinto

Fernando Esteves Pinto Nasceu em Cascais em 1961. Colaborou no DN Jovem (Diário de Notícias) e no Jornal de Letras. Em 1990 recebeu o Prémio Inasset Revelação de Poesia do Centro Nacional de Cultura. É publicado em Espanha, México e Marrocos por revistas literárias e editores independentes. Está representado em várias antologias. Em 1998 obteve uma bolsa de criação literária pelo Ministério da Cultura/Instituto Português do Livro e das Bibliotecas. Co-fundador e coordenador do “Sulscrito” – Círculo Literário do Algarve; Projecto Literário Hispano-Luso Palavra Ibérica. Livros publicados: “Na Escrita e no Rosto” (poesia); “Siete Planos Coreográficos” (poesia, edição bilingue, Huelva); “Ensaio Entre Portas” (poesia), “Conversas Terminais” (romance); “Sexo Entre Mentiras” (romance); “Privado” (novela), “Área Afectada” (poesia); “Brutal” (romance); “O Tempo que Falta (poesia); “Identidade e Conflito” (micro-ensaios); “Dispensar o Vazio” (antologia poética).

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

O Bosque Cintilante # 74

Franz von Suppe: Poeta e Camponês

A jovem camponesa que faz versos.
Não os passa ao papel porque não sabe escrever,
mas diz que os preserva em cada árvore que vê,
e na chuva que cai,
e no sol que se põe.
Uma pequena erva pode ser um poema,
ou a água que corre no leito de um ribeiro
onde uma luz se esconde ou uma sombra vibra.
 
Como cuidar da imperfeição
senão sofrendo pelo que é perfeito?

 Às vezes –  diz ela –, passa-me pela cabeça
uma onda de música que não tem lugar
e eu sei pertencer a um mistério sem nome
que dói no coração muito devagar.


O Bosque Cintilante, Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista

domingo, 13 de janeiro de 2013

Agneta Enckell




(Aquela noite a cidade estava cinzenta.  Vi
tudo através da janela
do automóvel e o tempo
                        permite-nos elaborar
os sonhos em câmara lenta

um homem    e
uma mulher   e

a rua...


apesar
do seu auto-controlo  odeiam e amam
                        com muita intensidade; ele
deu o braço a ela

(e por que ia eu
            questionar
o evidente: tudo
ocorreu correctamente
            e sem ritmo ) e ele

desaparafusou
a mão dela
            da sua
extremidade e contexto. Claro que
                                   o processo foi
doloroso mas
mudo. Logo ele desapareceu na rua
                                   com a mão dela
na sua

(e eis que ia eu a não
                        os sonhos
não têm resposta )

sem mão suplicando
                        ela caiu
no passeio; suplicando
estendeu o seu pulso sem sangue
                        para mim, mas

agora
são sonhos e ninguém
                        sangra
agora    eu
ponho o motor em marcha e desapareço
na rua

                                                                              Forvandlingar mot morgonen, 1983




A conversa só deu soluções a curto prazo aos problemas práticos
porque uma reinserção  social satisfatória era impossível
consideraram ambas as partes, cada uma a seu modo

E as mulheres consideraram mais cómodo contemplar a sociedade e
a realidade através de janelas fechadas e frascos de pílulas de diversas cores
e o terapeuta também admitiu esta solução como a mais cómoda
de momento e em curso
até que algo ocorresse?
                                                               
                                                                            Forvandlingar mot morgonen, 1983



Como aconteceu: ela manteve a sua integridade; a sua integridade sim escuta,
e a sua vulnerabilidade, as lágrimas corriam-lhe amiúde pelas melenas,
deslizando pela cara: ela não chorava nunca
entregava-se, generosamente, a estranhos, homens casados, aventureiros,
os amigos das suas amigas, às suas amigas
ela amava, sim, amava
ela desejava-os, e com gosto, que lhe fizessem mal, mas nunca muito
ao mesmo tempo
nunca acreditou em nada, deixava-se atraiçoar constantemente
um ligeiro sorriso descansava no seu rosto, como uma borboleta
revoluteava por todo o seu corpo, repetia-se,
como uma feliz recordação da infância
ela era como uma carência, em si
uma perda sempre presente
uma perda jamais esquiva, com um ligeiro sorriso

ela era esse tipo de mulher que não se aguenta, poder-se-ia
talvez aniquilá-la?
ela notou-o, aniquilou-se ela mesma

foi na luz azul de um crepúsculo primaveril, tirou os óculos de sol
: os seus olhos resplandeceram ( brilho!), atravessou a rua, com
um ligeiro sorriso pôs o cabelo para trás, pôs os óculos
de sol, desapareceu, as costas lentamente afastando-se

                                                                              Falla, 1991


aqui está tudo como dantes
como se nada se tivesse passado
                                   pese embora
o perdido, uma dúvida
pese embora algo mais: infidelidade, desconfiança

acreditámos que não tínhamos nada a perder
agora perdemo-la a ela
agora perdemos isso

nunca foi questão de experiência,
a tristeza: dependência jamais interdita, coito como fuga
onde a ternura fosse uma perda, despedida, noites sem sonhos

nada a perder

frívolos esboços a irresponsável travessura do idioma
a profunda mudez da vida a vida não narrada
:como possibilidade
a possível insegurança ambígua tremenda mentira
e verdade, ao mesmo tempo, faz estalar
o corpo do pensamento nos
compromissos impossíveis
:infidelidade

amo tudo isto: frívola irresponsável travessura, o possível, a carência,
em si

o que não podíamos perder mas
perdemos

:cair no que não pensa
                        que não recorda
                        não pode
                        narrar-se

                                                                              Falla, 1991



A sós com o teu assassino
estiveste com o teu hipnotizador?

( sobretudo o silêncio: os sensíveis dedos sobre o teu colo
acariciando a nuca, uma pressão apenas perceptível - )

estiveste com o teu hipnotizador?
tu estás relaxada, não pensas em nada, a alma
a alma cai através da tua cara, cobre a tua cara, como
um véu: desvela –
tu cais,
a sós com o teu assassino?
tu cais
    cais
    cais

a sós com Deus? a alma levanta-se no teu rosto, parte-se em dois

apenas uma ligeira pressão –

                                                                                              Falla, 1991


na  escalinata da igreja pardais palpitantes, como vivos
a luz do sol cheia às vezes o espaço como alfinetadas, o calor um
pequeno
pássaro cai   um pequeno
corpo de pássaro cai sem
cabeça sim
cabeça através da luz do sol, igreja como
pedra   pedra
palpitante como um corpito
vivo / na luz

                                                                                              Falla, 1991





ali, no outro lado
das narrações, desgostosamente o descontrolado
            sorriso
                       
                        o grito da mulher
nos espelhos líquidos do sonho

também a queda engana

                                                                                              Falla, 1991   

Versão minha - © Amadeu Baptista

      




Agneta Enckell, nasceu em Helsínquia, em 1957, onde estudou literatura sueca e filosofia na Universidade daquela cidade. Estreou-se em 1983. É considerada uma das vozes literárias mais importantes da sua geração.