Penso que a Sophia não teria gostado da ideia de lhe
colocarem os restos mortais no Panteão Nacional. Abomino a pompa e a
circunstância com que tudo foi levado a cabo e quem promoveu, realizou, assistiu e discursou. Sei que Sophia
teria gostado de uma última morada perto do mar - e que os livros fossem lidos,
todos os livros, especialmente os de poesia, os dela e os dos poetas
portugueses, que são constantemente omitidos por quem os deveria apoiar (não
digo ignorados, porque o poder , qualquer poder, não tem qualquer consistência para ignorar os poetas). Por mim, a Sophia
está ali na praia da Granja – onde também já vivi – a recuperar todos instantes
em que a beleza essencial não lhe estava próxima, embora a tivesse sempre no
coração. Por Ruy Belo, Jorge de Sena e Sophia, orgulho-me por ser um leitor
português de poesia, que também tenta acertar alguns poemas. Amadeu Baptista
UM POEMA DE JORGE DE SENA LAMENTO DE UM PAI DE FAMÍLIA
Como pode um homem carregado de filhos e sem fortuna alguma ser poeta neste tempo de filhos só de puta ou só de putas sem filhos ? Neste espernegar de canalhas , como pode ser ? Antes ser gigolô para machos e ou fêmeas , ser pederesta profissinal que optou pelo riso enternecido dos virtuosos que se reveêm nele e o decepcionado dos políticos que com ele não fazem chantage porque não vale a pena . Antes ser denunciante de amigos e inimigos para ganhar a estima dos poderosos ou dos partidos políticos que nos chamarão seus génios . Antes ser corneador de maridos mansos com as mulheres deles fáceis . Antes reunir conferências de S. Vicente de Paula para roçar o cu da virtude pelas distracções das sacristias escuras e e ter o prazer de acudir com camisolinhas aos pobres entre os quais às vezes aparece um ou uma que dá gosto ver assim tão pobre por por se lhe verem os pêlos pelos rasgões da camisa ou algo de mais impressionante para o subconsciente que sempre está nos olhos que docemente se comovem com a miséria . Antes ir para as guerras da civilização cristã ou da outra , matar os inimigos da conta corrente e das fábricas de celofânicas bombas . Antes ser militar . Ou marafona de circo . Ou santo. Ou demónio doméstico torcendo as orelhas dos filhos à falta de torcê-las aos filhos da puta . Ou gato . Ou cão . Ou piolho : Antes correr os riscos do DDT , das carroças que os municípios têm para os cães suspeitos de raivosos como todos os cães que se vê não lamberem as partes das donas ou mesmo dos donos . Antes tudo isso que assistir a tudo , sofrer de tudo e tudo , e ainda por cima ter de aturar o amor paterno eos sorrisos displicentes dos homens de juízo que deram pílulas às esposas , ou as mandaram à parteira secreta e elas quiseram ir . Antes morrer . Mas que adianta morrer ? Quem nos garante que a morte não existe só para os filhos da puta ? Quem me garante que não lá , assistindo a tudo , e sem sequer poder chamar-lhes filhos da puta , com o devido respeito a essas senhoras que precisamente se distinguem das outras por não terem filhos nem desses nem dos outros ? Mas mesmo isso não consola nada. A quantidade , a variedade gastaram a força dos insultos . E não se pode passar a vida , esta miséria que me dão e querem dar a meus filhos , a chamar nomes feios a sujeitos mais feios do que os nomes . Como pode um homem sequer estar vivo no meio disto , e sem saberem primeiro quem, para não se inquietarem com o problema de terem morto por engano um irmão , desfalcando assim a família humana de algum ornamento que a tornava menos humana e mais puta.
(in O Pêndulo Afectivo - Antologia Poética, 1950-1990, Porto, Afrontamento, 1991)
Egito Gonçalves nasceu em 1922, em Matosinhos, e faleceu, no Porto, a 29 de Janeiro de 2001. Começou a publicar os seus livros de poesia no início da década de 50. O seu nome aparece-nos ligado, a partir dessa altura, a algumas revistas de poesia que fundou e/ou dirigiu: A Serpente (1951), Árvore (1952), Notícias do Bloqueio (1957). Poeta e tradutor, Egito Gonçalves desempenhou ao longo da sua vida um grande papel na animação literária e cultural do Porto, a cidade onde viveu. Foi um dos fundadores do TEP – Teatro Experimental do Porto. Em 1977 foi-lhe atribuído o Prémio de Tradução Calouste Gulbenkian, da Academia das Ciências de Lisboa pela selecção de Poemas da Resistência Chilena e, em 1985, recebeu o Prémio Internacional Nicola Vaptzarov, da União de Escritores Búlgaros. Em 1995 foi galardoado com o Prémio de Poesia do Pen Clube, o Prémio Eça de Queirós e o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritor, com o livro E No entanto Move-se. Da sua longa obra, destacam-se os seguintes títulos: Um Homem na Neblina (1950); A Viagem com o Teu Rosto (1958); Os Arquivos do Silêncio (1963);Falo da Vertigem (1993); E no Entanto Move-se (1995); O Mapa do Tesouro (1998); A Ferida Amável (2000).
Vinde cá, meu tão certo secretário
dos queixumes que sempre ando fazendo,
papel, com que a pena desafogo!
As sem-razões digamos que, vivendo,
me faz o inexorável e contrário
Destino, surdo a lágrimas e a rogo.
Deitemos água pouca em muito fogo;
acenda-se com gritos um tormento
que a todas as memórias seja estranho.
Digamos mal tamanho
a Deus, ao mundo, à gente e, enfim, ao vento,
a quem já muitas vezes o contei,
tanto debalde como o conto agora;
mas, já que para errores fui nascido,
vir este a ser um deles não duvido.
Que, pois já de acertar estou tão fora,
não me culpem também, se nisto errei.
Sequer este refúgio só terei:
falar e errar sem culpa, livremente.
Triste quem de tão pouco está contente!
Já me desenganei que de queixar-me
não se alcança remédio; mas quem pena,
forçado lhe é gritar se a dor é grande.
Gritarei; mas é débil e pequena
a voz para poder desabafar-me,
porque nem com gritar a dor se abrande.
Quem me dará sequer que fora mande
lágrimas e suspiros infinitos
iguais ao mal que dentro n'alma mora?
Mas quem pode algü'hora
medir o mal com lágrimas ou gritos?
Enfim, direi aquilo que me ensinam
a ira, a mágoa, e delas a lembrança,
que é outra dor por si, mais dura e firme.
Chegai, desesperados, para ouvir-me,
e fujam os que vivem de esperança
ou aqueles que nela se imaginam,
porque Amor e Fortuna determinam
de lhe darem poder para entenderem,
à medida dos males que tiverem.
Quando vim da materna sepultura
de novo ao mundo, logo me fizeram
Estrelas infelices obrigado;
com ter livre alvedrio, mo não deram,
que eu conheci mil vezes na ventura
o milhor, e pior segui, forçado.
E, para que o tormento conformado
me dessem com a idade, quando abrisse
inda minino, os olhos, brandamente,
manda que, diligente,
um Minino sem olhos me ferisse.
As lágrimas da infância já manavam
com üa saudade namorada:
o som dos gritos, que no berço dava.
já como de suspiros me soava.
Co a idade e Fado estava concertado;
porque quando, por caso, me embalavam,
se versos de Amor tristes me cantavam,
logo m adormecia a natureza,
que tão conforme estava co a tristeza.
Foi minha ama üa fera, que o destino
não quis que mulher fosse a que tivesse
tal nome para mim; nem a haveria.
Assi criado fui, porque bebesse
o veneno amoroso, de minino,
que na maior idade beberia,
e. por costume, não me mataria.
Logo então vi a imagem e semelhança
daquela humana fera tão fermosa,
suave e venenosa,
que me criou aos peitos da esperança;
de quem eu vi despois o original,
que de todos os grandes desatinos
faz a culpa soberba e soberana.
Parece-me que tinha forma humana,
mas cintilava espíritos divinos.
Um meneio e presença tinha tal
na vista dela; a sombra, co a viveza,
excedia o poder da Natureza.
Não sei como sabia estar roubando
cos raios das entranhas, que fugiam
por ela, pelos olhos sutilmente!
Pouco a pouco invencíveis me saíam,
bem como do véu húmido exalando
está o sutil humor o Sol ardente.
Enfim, o gesto puro e transparente,
para quem fica baixo e sem valia
deste nome de belo e de fermoso;
o doce e piadoso
mover d'olhos, que as almas suspendia
foram as ervas mágicas, que o Céu
me fez beber; as quais, por longos anos,
noutro ser me tiveram transformado,
e tão contente de me ver trocado
que as mágoas enganava cos enganos;
e diante dos olhos punha o véu
que me encobrisse o mal, que assi creceu,
como quem com afagos se criava
daquele para quem crecido estava.
Que género tão novo de tormento
teve Amor, que não fosse, não somente
provado em mim, mas todo executado?
Implacáveis durezas, que o fervente
desejo, que dá força ao pensamento,
tinham de seu propósito abalado,
e de se ver, corrido e injuriado;
aqui, sombras fantásticas, trazidas
de algüas temerárias esperanças;
as bem-aventuranças
nelas também pintadas e fingidas;
mas a dor do desprezo recebido,
que a fantasia me desatinava,
estes enganos punha em desconcerto;
aqui, o adevinhar e o ter por certo
que era verdade quanto adevinhava,
e logo o desdizer-se, de corrido;
dar às cousas que via outro sentido,
e para tudo, enfim, buscar razões;
mas eram muitas mais as sem-razões.
Pois quem pode pintar a vida ausente,
com um descontentar-me quanto via,
e aquele estar tão longe donde estava;
o falar, sem saber o que dezia;
andar, sem ver por onde, e juntamente
suspirar sem saber que suspirava?
Pois quando aquele mal m'atormentava
e aquela dor que das Tartáreas águas
saiu ao mundo, e mais que todas doe,
que tantas vezes soe
duras iras tornar em brandas mágoas;
agora, co furor da mágoa irado,
querer e não querer deixar d'amar,
e mudar noutra parte por vingança
o desejo privado de esperança,
que tão mal se podia já mudar;
agora, a saudade do passado
tormento. puro, doce e magoado,
fazia converter estes furores
em magoadas lágrimas de amores.
Que desculpas comigo que buscava
quando o suave Amor me não sofria
culpa na cousa amada, e tão amada!
Enfim, eram remédios que fingia
o medo do tormento que ensinava
a vida a sustentar-se, de enganada.
Nisto üa parte dela foi passada,
na qual se tive algum contentamento
breve, imperfeito, tímido, indecente,
não foi senão semente
de longo e amaríssimo tormento.
Este curso contino de tristeza,
estes passos tão vamente espalhados,
me foram apagando o ardente gosto
que tão de siso n'alma tinha posto,
daqueles pensamentos namorados
em que eu criei a tenra natureza,
que do longo costume da aspereza,
contra quem força humana não resiste,
se converteu no gosto de ser triste.
Destarte a vida noutra fui trocando;
eu não, mas o destino fero, irado,
que eu ainda assi por outra não trocara.
Fez-me deixar o pátrio ninho amado,
passando o longo mar, que ameaçando
tantas vezes me esteve a vida cara.
Agora, exprimentando a fúria rara
de Marte, que cos olhos quis que logo
visse e tocasse o acerbo fruto seu
(e neste escudo meu
a pintura verão do infesto fogo);
agora, peregrino vago e errante,
vendo nações, linguages e costumes,
Céus vários, qualidades diferentes,
só por seguir com passos diligentes
a ti, Fortuna injusta, que consumes
as idades, levando-lhe diante
üa esperança em vista de diamante,
mas quando das mãos cai se conhece
que é frágil vidro aquilo que aparece.
A piadade humana me faltava,
a gente amiga já contrária via,
no primeiro perigo; e, no segundo,
terra em que pôr os pés me falecia,
ar para respirar se me negava,
e faltavam-me, enfim. o tempo e o mundo.
Que segredo tão árduo e tão profundo:
nascer para viver, e para a vida
faltar-me quanto o mundo tem para ela!
E não poder perdê-la,
estando tantas vezes já perdida!
Enfim, não houve transe de fortuna,
nem perigos, nem casos duvidosos,
injustiças daqueles, que o confuso
regimento do mundo, antigo abuso,
faz sobre os outros homens poderosos,
que eu não passasse, atado à grã coluna
do sofrimento meu, que a importuna
perseguição de males em pedaços
mil vezes fez, à força de seus braços.
Não conto tanto males como aquele
que, despois da tormenta procelosa,
os casos dela conta em porto ledo;
que inda agora a Fortuna flutuosa
a tamanhas misérias me compele,
que de dar um só passo tenho medo.
Já de mal que me venha não me arredo,
nem bem que me faleça já pretendo,
que para mim não val astúcia humana;
de força soberana,
da Providência, enfim, divina, pendo.
Isto que cuido e vejo, às vezes tomo
para consolação de tantos danos.
Mas a fraqueza humana, quando lança
os olhos no que corre, e não alcança
senão memória dos passados anos,
as águas que então bebo, e o pão que como,
lágrimas tristes são, que eu nunca domo
senão com fabricar na fantasia
fantásticas pinturas de alegria.
Que se possível fosse, que tornasse
o tempo para trás, como a memória,
pelos vestígios da primeira idade,
e de novo tecendo a antiga história
de meus doces errores, me levasse
pelas flores que vi da mocidade;
e a lembrança da longa saudade
então fosse maior contentamento,
vendo a conversação leda e suave,
onde üa e outra chave
esteve de meu novo pensamento,
os campos, as passadas, os sinais,
a fermosura, os olhos, a brandura,
a graça, a mansidão, a cortesia,
a sincera amizade, que desvia
toda a baixa tenção, terrena, impura,
como a qual outra algüa não vi mais...
Ah! vãs memórias, onde me levais
o fraco coração, que ainda não posso
domar este tão vão desejo vosso?
Nô mais, Canção, nô mais; qu'irei falando
sem o sentir, mil anos. E se acaso
te culparem de larga e de pesada,
não pode ser (lhe dize) limitada
a água do mar em tão pequeno vaso.
Nem eu delicadezas vou cantando
co gosto do louvor, mas explicando
puras verdades já por mim passadas.
Oxalá foram fábulas sonhadas!
O retrato de Camões por Fernão Gomes, em cópia de Luís de Resende.
Este é considerado o mais autêntico retrato do poeta, cujo original, que se perdeu, foi pintado ainda em sua vida.
Luís Vaz de Camões (Lisboa[?], ca. 1524 — Lisboa, 10 de Junho de 1580)
Canção X, de Luís Vaz de Camões. Arte de Luís Miguel Cintra:
Ai do Lusíada, coitado, Que vem de tão longe, coberto de pó. Que não ama, nem é amado, Lúgubre Outono, no mês de Abril! Que triste foi o seu fado! Antes fosse pra soldado, Antes fosse pró Brasil...
Menino e moço, tive uma Torre de leite, Torre sem par! Oliveiras que davam azeite, Searas que davam linho de fiar, Moinhos de velas, como latinas, Que São Lourenço fazia andar... Formosas cabras, ainda pequeninas, E loiras vacas de maternas ancas Que me davam o leite de manhã, Lindo rebanho de ovelhas brancas; Meus bibes eram de sua lã.
António era o pastor desse rebanho: Com elas ia para os Montes, a pastar, E tinha pouco mais ou menos seu tamanho, E o pasto delas era o meu jantar... E a serra a toalha, o covilhete e a sala. Passava a noite, passava o dia Naquela doce companhia. Eram minhas Irmãs e todas puras E só lhes minguava a fala Pra serem perfeitas criaturas... E quando na Igreja das Alvas Saudades Que era da minha Torre a freguesia) Batiam as Trindades, Com os seus olhos cristianíssimos olhavam-me, Eu persignava-me, rezava «Ave-Maria...» E as doces ovelhinhas imitavam-me.
Menino e moço, tive uma Torre de leite, Torre sem par! Oliveiras que davam azeite... Um dia, os castelos caíram do Ar!
As oliveiras secaram, Morreram as vacas, perdi as ovelhas, Saíram-me os Ladrões, só me deixaram As velas do moinho... mas rotas e velhas!
Que triste fado! Antes fosse aleijadinho, Antes doido, antes cego...
Ai do Lusíada, coitado!
Veio da terra, mailo seu moinho: Lá, faziam-no andar as águas do Mondego, Hoje, fazem-no andar águas do Sena.,. É negra a sua farinha! Orai por ele! tende pena! Pobre Moleiro da Saudade...
Ó minha Terra encantada, cheia de sol, Ó campanário, ó Luas-Cheias, Lavadeira que lava o lençol, Ermidas, sinos das aldeias, O ceifeira que segas cantando O moleiro das estradas, Carros de bois, chiando,.. Flores dos campos, beiços de fadas, Poentes de Julho, poentes minerais, Ó choupos, ó luar, bregas de Verão!
Que é feito de vocês? Onde estais, onde estais?
Ó padeirinhas a amassar o pão, Velhinhas na roca de fiar, Cabelo todo em caracóis! Pescadores a pescar Com a linha cheia de anzóis! Zumbidos das vespas ferrões das abelhas, Ó bandeiras! Ó sol! foguetes Ó toirada! Ó boi negro entre as capas vermelhas! Ó pregões de água fresca e limonada! Ó romaria do Senhor do Viandante! Procissões com música e anjinhos! Srs. Abades de Amarante, Com três ninhadas de sobrinhos!
Onde estais? onde estais?
Ó minha capa de estudante, às ventanias! Cidade triste agasalhada entre choupais! Ó dobres dos poentes às Ave-Marias! Ó Cabo do Mundo! Moreira da Maia! Estrada de Santiago! Sete-Estrelo! Casas dos pobres que o luar, à noite, caia... Fortalezas de Lipp! Ó fosso do Castelo, Amortalhado em perrexil e trepadeiras, Onde se enroscam como esposos e lagartas! Sr. Governador a podar as roseiras! Ó bruxa do Padre, que botas as cartas! Joaquim da Teresa! Francisco da Hora! Que é feito de vós? Faláveis aos barcos que nadavam, lá fora, Pelo porta-voz... Arrabalde! marítimo da França, Conta-me a história da Fermosa Magalona, E do Senhor de Calais, Mais o naufrágio do vapor Perseverança, Cujos cadáveres ainda vejo à tona... Ó farolim da Barra lindo, de bandeiras, Para os vapores a fazer sinais, Verdes, vermelhas, azuis, brancas, estrangeiras, Dicionário magnífico de Cores! Alvas espumas, espumando a frágua, Ou rebentando à noite, como flores! Ondas do mar! Serras da Estrela de água, Cheias de brigues como pinhais... Morenos mareantes, trigueiros pastores!
Onde estais? onde estais?
Convento de águas do Mar, ó verde Convento, Cuja Abadessa secular é a Lua E cujo Padre-capelão é o Vento... Água salgada desses verdes poços, Que nenhum balde, por maior, escua! O Mar jazigo de paquetes, de ossos, Que o sul, às vezes, arrola à praia - Olhos em pedra, que ainda chispam brilhos Corpo de Virgem, que ainda veste a saia, Braços de mães, ainda a apertar braços de filhos! Noiva cadáver ainda com véu... Ossadas ainda com os mesmos fatos! Cabeça roxa ainda de chapéu! Pés de defunto que ainda traz sapatos! Boquinha linda que já não canta... Bocas abertas que ainda soltam ais... Noivos em núpcias, ainda, aos beijos, abraçados! Corpo intacto, a boiar (talvez alguma Santa...) Ó defuntos do Mar! Ó roxos arrolados!
Onde estais? onde estais?
O Boa Nova, ermida à beira-mar, Única flor, nessa vivalma de areias! Na cal, meu nome ainda lá deve estar, À chuva, ao Vento, aos vagalhões, aos raios! Ó altar da Senhora, coberto de luzes! Ó poentes da Barra, que fazem desmaios... Ó Santana, ao luar, cheia de cruzes! Ó lugar de Roldão! vila de Perafita! Aldeia de Gonçalves! Mesticosa! Engenheiros, medindo a estrada com a fita... Água fresquinha da Amorosa! Rebolos pela praia! Ó praia da Memória! Onde o Sr. Dom Pedro, Rei-Soldado, Atracou, diz a História, No dia,... não estou lembrado; Ó capelinha do Senhor da Areia, Onde o Senhor apareceu a uma velhinha... Algas! farrapos do vestido da Sereia! Lanchas da Póvoa, que ides ã sardinha, Poveiros, que ides para as vinte braças. Sol-pôr, entre pinhais... Capelas onde o sol faz morte, nas vidraças!
Onde estais?
2
Georges! anda ver meu país de Marinheiros, O meu país das naus, de esquadras e de frotas!
Oh as lanchas dos poveiros A saírem a barra, entre ondas de gaivotas! Que estranho é! Fincam o remo na água, até que o remo torça, À espera de maré, Que não tarda aí, avista-se lá fora! E quando a onda vem, fincando-a com toda a força, Clamam todas à uma: «Agora! agora! agora!» E, a pouco e pouco, as lanchas vão saindo (Às vezes, sabe Deus, para não mais entrar...) Que vista admirável! Que lindo! Que lindo! Içam a vela, quando já têm mar: Dá-lhes o Vento e todas, à porfia, Lá vão soberbas, sob um céu sem manchas, Rosário de velas, que o vento desfia, A rezar, a rezar a Ladainha das Lanchas:
Senhora Nagonia! Olha acolá! Que linda vai com seu erro de ortografia... Quem me dera ir lá!
Senhora Daguarda! (Ao leme vai o Mestre Zé da Leonor) Parece uma gaivota: aponta-lhe a espingarda O caçador!
Senhora d'ajuda! Ora pro nobis! Caluda! Semos probes! Senhor dos ramos Istrela do mar! Cá bamos! Parecem Nossa Senhora, a andar.
Senhora da Luz! Parece o Farol... Maim de Jesus! É tal e qual ela, se lhe dá o sol!
Senhor dos Passos! Sinhora da Ora! Águias a voar, pelo mar dentro dos espaços Parecem ermidas caiadas por fora...
Senhor dos Navegantes! Senhor de Matosinhos! Os mestres ainda são os mesmos dantes - Lá vai o Bernardo da Silva do Mar, A mailos quatro filhinhos, Vasco da Gama, que andam a ensaiar...
Senhora dos aflitos! Mártir São Sebastião! Ouvi os nossos gritos! Deus nos leve pela mão! Bamos em paz! O lanchas, Deus vos leve pela mão! Ide em paz!
Ainda lá vejo o Zé da Clara, os Remelgados, O Jeques, o Pardal, na Nam te perdes, E das vagas, aos ritmos cadenciados, As lanchas vão traçando, à flor das águas verdes, «As armas e os varões assinalados...»
Lá sai a derradeira! Ainda agarra as que vão na dianteira,.. Como ela corre! com que força o Vento a impele:
Bamos com Deus! Lanchas, ide com Deus! ide e voltai com Ele Por esse mar de Cristo... Adeus! adeus! adeus!
3
Georges! anda ver meu país de romarias E procissões! Olha estas moças, olha estas Marias! Caramba! dá-lhes beliscões! Os corpos delas, vê! são ourivesarias, Gula e luxúria dos Manéis! Têm nas orelhas grossas arrecadas, Nas mãos (com luvas) trinta moedas, em anéis, Ao pescoço serpentes de cordões, E sobre os seios entre cruzes, como espadas, Além dos seus, mais trinta corações! Vá! Georges, faz-te Manel! viola ao peito, Toca a bailar! Dá-lhes beijos, aperta-as contra o peito. Que hão-de gostar! Tira o chapéu, silêncio! Passa a procissão
Estralejam foguetes e morteiros. Lá vem o Pálio e pegam ao cordão Honestos e morenos cavalheiros. Altos, tão altos e enfeitados, os andores, Parecem Torres de David, na amplidão!
Que linda e asseada vem a Senhora das Dores! Olha o Mordomo, à frente, o Sr. Conde. Contempla! Que tristes os Nossos Senhores, Olhos leais fitos no vago... não sei onde! Os anjinhos! Vêm a suar: Infantes de três anos, coitadinhos! Mãos invisíveis levam-nos de rastros Que eles mal sabem andar.
Esta que passa é a Noite cheia de astros! (Assim estava, em certo dia, na Judeia! Aquele é o Sol! (Que bom o Sol de olhos pintados!) E aquela é a Lua-Cheia! Seus doces olhos fazem luar... Essa, acolá, leva na mão os Dados, Mas perde tudo se vai jogar. E esta que passa, toda de arminhos, (Vê! dentre o povo em êxtase, olha-a a Mãe) Leva, sorrindo, a Coroa dos Espinhos, Criança em flor que ainda não os tem. E que bonita vai a Esponja de Fel! Mas ela sabe, a inocentinha, Nas suas mãos, a Esponja deita mel: Abelhas de oiro tomam-lhe a dianteira. Lá vem a Lança! A bainha Traz ainda o sangue da Sexta-Feira... Passa o último, o Sudário! O Corpo de Jesus, Nosso Senhor... Oh que vermelho extraordinário! Parece o sol-pôr...
Que pena faz vê-lo passar em Portugal! Ai que feridas! e não cheiram mal...
E a procissão passa. Preia-mar de povo! Maré-cheia do Oceano Atlântico! O bom povinho de fato novo, Nas violas de arame soluça, romântico, Fadinhos chorosos da su'alma beata.
Trazem imagens da Função nos seus chapéus.
Poeira opaca. Abafa-se. E, no céu, ferro e oiro, O Sol em glória brilha olímpico, e de prata, Como a velha cabeça aureolada de Deus!
Trombetas clamam. Vai correr-se o toiro. Passam as chocas, boas mães I passam capinhas.
Pregões. Laranjas! Ricas cavaquinhas! Pão-de-ló de Margaride! Aguinha fresca de Moirama! Vinho verde a escorrer da vide! À porta dum casal um tísico na cama, Olha tudo isto com seus olhos de Outro-Mundo, E uma netinha com um ramo de loireiro Enxota as moscas do moribundo.
Dança de roda moças o coveiro. Clama um ceguinho: «Não há maior desgraça nesta vida, que ser ceguinho!» Outro moreno, mostra uma perna partida! Mas fede tanto, coitadinho... Este, sem braços, diz «que os deixou na pedreira...» E esse, acolá, todo o corpinho numa chaga, Labareda de cancros em fogueira, Que o sol atiça e que a gangrena apaga, Ó Georges, vê! que excepcional cravina...
Que lindos cravos para pôr na botoeira!
Tísicos! Doidos! Nus! Velhos a ler a sina! Etnas de carne! Jobes! Flores! Lázaros! Cristos! Mártires! Cães! Dálias de pus! Olhos-fechados! Reumáticos! Anões! Delíriums-trémens! Quistos! Monstros, fenómenos, aflitos, aleijados, Talvez lá dentro com perfeitos corações: Todos, à uma, mugem roucas ladainhas, Trágicos, à uma, mugem roucas ladainhas, Trágicos, uivam «uma esmolinha plas alminhas Das suas obrigações!» Pelo nariz corre-lhes pus, gangrena, ranho! E, coitadinhos! fedem tanto – é de arrasar...
Qu'é dos Pintores do meu país estranho, Onde estão eles que não me vêm pintar?
Paris, 1891-1892.
António Nobre (Porto, 16 de Agosto de 1867 – Foz do Douro, 18 de Março de 1900), foi um poeta português cuja obra se insere nas correntes ultra-romântica, simbolista, decadentista e saudosista da geração finissecular do século XIX português. A sua principal obra, Só (Paris, 1892). Faleceu com 32 anos de idade, após uma prolongada luta contra a tuberculose pulmonar.
parabéns, António Ramos Rosa, pelo 88º. aniversário
TRÊS POEMAS DE GÉNESE (SEGUIDO DE CONSTELAÇÕES)
Não podemos ter a certeza da nomeação Entre o acto ou a coisa e a palavra há uma cesura intransponível Vivemos paralelamente entre dois mundos como estranhos e só a invenção pode constituir a fábula de uma unidade que será sempre incerta ou futura ou improvável Ou talvez possamos fazer um pacto com o inexprimível e aceitar o insondável como um solo absoluto e embalar-nos no silêncio ou no berço da nossa morte Se uma adolescente expõe o seio diante de um espelho e se deslumbra apaixonadamente e levemente beija a sua imagem nenhuma palavra poderá dizer o frémito desse instante absoluto mas é esse o desejo da palavra que procura um lábio para sentir que ele é o mundo que desponta e o estremecimento do contacto consigo própria no apaixonado círculo do seu movimento voluptuoso Ela navega na solidão de imagem em imagem para encontrar o outro para beijar nele a sua própria boca e no seu sexo fecundar a ave subterrânea das suas anelantes entranhas fustigadas pelo tufão do desejo.
*
Quando uma mulher se despe numa clareira rodeada de arbustos e sobre uma toalha se estende ao sol o seu desejo é ambíguo porque não quer ser vista e ao mesmo tempo a sua pele estremece sob um olhar ausente ou de alguém escondido entre a folhagem Também a palavra se expõe e oculta no seu fulgor de lâmpada alimentada pelo fogo obscuro que aspira à nudez solar Ela inclina-se sobre a água para ver a sua imagem com o olhar não dela mas de um outro que a move para ser a presença pura no olhar de ninguém e poderá ser um dia o de algum leitor que se deslumbra com a sua abstracta nudez Sem esta duplicidade e sem este puro recato através do silêncio ela não possuiria o frémito ideal da sua exposição e seria opaca ou demasiado transparente sem os meandros cintilantes que a tornam fugidia como um fio de mercúrio e a sua nudez teria a consistência inerte de uma pedra sem fogo e sem sal sem o focinho do desejo Por isso o poema é uma mulher que se enrola na sua nudez até ser tão redonda como redondo é o ser com a sua língua bífida entre os lábios do seu sexo
*
O que não é ainda o que está para ser o que já está a ser e que não sendo excede sempre em íntima dissonância que perpetua o mundo para além de nós e em nós abre uma fenda mas também um espaço neutro em que a palavra poderá encontrar a rosa do possível sobre o impossível solo que a nega e que a suscita O que o ser mais deseja é a integridade de um sentido que envolva o não sentido que o transponha numa lenta coluna de existência reunindo a sede e a móvel nascente que não existe senão no movimento dos passos sobre o deserto para que a página se ilumine e a boca respire o azul do dia Mas o poema é sobretudo o movimento do sono adolescente em que o mundo não é mais que maresia cintilante e o ritmo das esferas o rolar de uma bola de esterco que um escaravelho empurra
in Génese (seguido de Constelações) 2005
António Ramos Rosa, nasceu em Faro, a 17 de Outubro de 1924. É autor de uma obra poética extensíssima e de rigorosa qualidade (de uma intensa actividade poética, crítica e ensaísta), que o transforma, sem margem para qualquer discussão, no decano da poesia portuguesa deste século e do que passou.
A vida a minha se demove
quando os cântaros descem
os teus olhos.
Ficarei
à esquina de mim próprio
a ver-te passar dentro?
Oh de cravos tão breve
a enfeitar-nos a tenda!
2.
Escolho o voo deste insecto
azul
pois entender o gesto
é tentar a improvável travessia
de sua água.
Só. O resto é passar rente
como poisar o brilho
num beiral.
3.
E escolho ainda
o tépido teu
ombro
a sabedoria tão sal
vadora da tua coxa
(que ninguém fale em fogo
mas em linho). Molhar-nos-emos
no regato rápido do tempo.
4.
A hora tem a forma de uma tenda
a tenda tem a tua forma.
Sob as tuas ramagens
passa um tropel de estrelas
ainda elas
pois há um instante
em que a luz contra a luz é perceptível.
Tu tens a forma de um cântaro
5.
que se parte na boca
em boca
dinhos de tanto azul.
Outro cântaro desce a tua margem
a tua margem desce a tua água.
Tu és a água que não tem margem.
O brilho cai então do beiral
e acende-te nos meus ramos.
(in Entre o azul e a circunstância. Vila Real: Livros do Nordeste, 1983)
FAREMOS DO ENVELHECER UMA ARTE?
O tempo devolve, quase intacto,
o olhar suficiente. E as águas
vão ficando para trás, mansas,
algumas à nossa frente,
no hábito de as reflectir.
Há um sabor, um odor subtil
de madeiras, quando esculpimos
as mãos.
(in Ouve-se um rumor. Vila Real: Livros do Nordeste, 2003)
ALTO DO VELÃO, AO ENTARDECER
A luz ao ficar breve
divide o estar aqui
em a mão que o escreve
e um brilho de ti
não adere mas fere
suavemente as coisas
que lhe vão sendo escritas
na indulgente ardósia
ainda um voo de águia
prestes a recolhida
recolhe-se uma urze
que não ficou escrita
e assim tu me decides
que no vale se nasce
e contigo se eleva
vamos ficar assim
ao ver-te quase névoa
neste vário volume
de sensações esquivas
que o entardecer reduz
o reduz à medida
do entardecer no feno
não ouves uma flauta
longínqua no vento?
Assim quanto mais breve
a luz mais se dilata
até ser doutro modo
total a sua fala.
(in A tentação de Santo Antão. Chaves: Tartaruga, 2007)
António Cabral foi um escritor, investigador, professor e animador sociocultural português.
Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a atividade literária aos 19 anos com a publicação do livro de poesia Sonhos do meu Anjo. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, e dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer,
“paraíso do vinho e suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.
António Cabral faleceu em Vila Real a 23 de Outubro de 2007, aos 76 anos de idade, ano em que foram publicados os livros de poesia O Rrio que Perdeu as Margens e A Tentação de Santo Antão,
prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.
Nota: a partir deste post, sob a etiqueta 'Poetas no Coração, este blogue passará a publicar poesia de autores
que, embora já desaparecidos, permanecem no meu coração.