quarta-feira, 17 de outubro de 2012

António Ramos Rosa


parabéns, António Ramos Rosa, pelo 88º. aniversário



TRÊS POEMAS DE GÉNESE (SEGUIDO DE CONSTELAÇÕES)


Não podemos ter a certeza da nomeação
Entre o acto ou a coisa e a palavra há uma cesura intransponível
Vivemos paralelamente entre dois mundos como estranhos
e só a invenção pode constituir a fábula
de uma unidade que será sempre incerta ou futura ou improvável
Ou talvez possamos fazer um pacto com o inexprimível
e aceitar o insondável como um solo absoluto
e embalar-nos no silêncio ou no berço da nossa morte
Se uma adolescente expõe o seio diante de um espelho
e se deslumbra apaixonadamente e levemente beija a sua imagem
nenhuma palavra poderá dizer o frémito desse instante absoluto
mas é esse o desejo da palavra que procura um lábio
para sentir que ele é o mundo que desponta e o estremecimento do contacto
consigo própria no apaixonado círculo do seu movimento voluptuoso
Ela navega na solidão de imagem em imagem
para encontrar o outro para beijar nele a sua própria boca
e no seu sexo fecundar a ave subterrânea
das suas anelantes entranhas fustigadas pelo tufão do desejo.


*

Quando uma mulher se despe numa clareira rodeada de arbustos
e sobre uma toalha se estende ao sol o seu desejo é ambíguo
porque não quer ser vista e ao mesmo tempo a sua pele estremece
sob um olhar ausente ou de alguém escondido entre a folhagem
Também a palavra se expõe e oculta no seu fulgor de lâmpada
alimentada pelo fogo obscuro que aspira à nudez solar
Ela inclina-se sobre a água para ver a sua imagem
com o olhar não dela mas de um outro que a move
para ser a presença pura no olhar de ninguém
e poderá ser um dia o de algum leitor que se deslumbra com a sua abstracta nudez
Sem esta duplicidade e sem este puro recato através do silêncio
ela não possuiria o frémito ideal da sua exposição
e seria opaca ou demasiado transparente sem os meandros cintilantes
que a tornam fugidia como um fio de mercúrio
e a sua nudez teria a consistência inerte
de uma pedra sem fogo e sem sal sem o focinho do desejo
Por isso o poema é uma mulher que se enrola na sua nudez
até ser tão redonda como redondo é o ser
com a sua língua bífida entre os lábios do seu sexo

*

O que não é ainda o que está para ser o que já está a ser
e que não sendo excede sempre em íntima dissonância
que perpetua o mundo para além de nós
e em nós abre uma fenda mas também um espaço neutro
em que a palavra poderá encontrar a rosa do possível
sobre o impossível solo que a nega e que a suscita
O que o ser mais deseja é a integridade de um sentido
que envolva o não sentido que o transponha numa lenta coluna
de existência reunindo a sede e a móvel nascente
que não existe senão no movimento dos passos sobre o deserto
para que a página se ilumine e a boca respire o azul do dia
Mas o poema é sobretudo o movimento do sono adolescente
em que o mundo não é mais que maresia cintilante
e o ritmo das esferas o rolar de uma bola de esterco que um escaravelho empurra


 
in Génese (seguido de Constelações) 2005


António Ramos Rosa, nasceu em Faro, a 17 de Outubro de 1924. É autor de uma obra poética extensíssima e de rigorosa qualidade (de uma intensa actividade poética, crítica e ensaísta), que o transforma, sem margem para qualquer discussão, no decano da poesia portuguesa deste século e do que passou.

1 comentário:

  1. '... e só a invenção pode constituir a fábula...',
    vida?
    abraço, Mira

    ResponderEliminar