quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

NATIVIDADE

NATIVIDADE

Assim nascemos, desconcertadamente desvalidos,
para triunfar da servidão e da pobreza. Caminha-se
toda a vida, mas o rudimentar momento da partida
indicia que a porta derradeira é a primeira e que, aqui chegados,
não somos mais que uma pedra nua onde pulsa um coração,
uma pedra que brilha, venham ou não os anjos acalentar
o templo, venham, ou não, outros pastores, de longe,
consolidar as nossas incertezas, trazendo uma medida de leite,
uma pele curtida, um bordão que possa florir.

Aqui estou, como se fosse orvalho sobre as palhas douradas
de uma manjedoura, e ouço na cabeça o clamor do universo,
esta angústia de tudo conhecer desconhecendo tudo, de que poder
vem a mim este poder, este tempo sem tempo
para o que foi semeado e à colheita chega já colhido
e os olhos do burro e o bafo da vaca docilmente adoçam
para que se não quebre nenhum osso e nenhuma promessa.

Assim se nasce, e nasce-se para morrer, mesmo que a estrela
brilhe e a ressurreição seja a insurreição prescrita para a morte
e a humildade avise que a vida é lobo e é cordeiro
e que quando se nasce a vigília principia, porque tudo é vital,
visível e invisível, e tudo está escrito e consumado,
e em Jerusalém não fique pedra sobre pedra

porque somos e não somos mais que uma pedra infinda.



(in 'Sobre as Imagens', Cosmorama, Maia, 2008)

 © Amadeu Baptista 



(pintura 'Natividade', de Grão Vasco)

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Vida Breve

Está em distribuição o meu novo livro, com a chancela de Labirinto:










Deixo três poemas do livro:



Vi as velhas no hospital Santos Silva a temer
a intervenção cirúrgica com os terços presos
às tessituras finas das camisas de noite.
Vi os velhos estóicos, com as mãos nodosas
sobre os lençóis gastos e a imobilidade nos braços
para que os seus corações não aluíssem.
Vi as mulheres ainda novas a gemer nas camas
por puro terror, e uns quantos rapazes
atrás de biombos, não menos aterrados.
Vi as agulhas dos gráficos a oscilar
e os médicos a medir palpitações adversas.
Vi os boletins clínicos, as lágrimas convulsas,
os comprimidos às cores que eram prescritos
sob a vaporosa leveza que os mortos tecem.





Estive a preparar o fim desde o princípio,
a ânfora a encher-se com dores surdas
enquanto a permanência se ampliava
na extensão da praia da infância
onde, uma a uma, as estrelas se extinguiam
e os mortos paravam nas escadas
por que tinham subido, carregados
de algas, pez e maresia. Neste lençol
deponho as suas feridas, a saber
como são meus os seus gemidos,
as altercações que tiveram com a vida,
os equívocos que os assassinaram
por uma fracção de luz, uma dúvida,
um longínquo rumor intransponível.





O que sobra dos mortos são as pernas
com que calcorrearam as ruas da cidade,
esses pés que não precisam de sapatos.
O que sobra dos mortos são as mãos
com que prenderam entre os dedos
uma carícia, uns cabelos, um par de asas.
O que sobra dos mortos são as bocas
fechadas, que já não podem dizer o que o sossego
lhes havia para sempre interditado.
O que sobra dos mortos são as sombras
que agora os acompanham quando tocam
outras sombras perdidas nos espaços.
O que sobra dos mortos são as mágoas
por nunca mais poderem desejar.


(in Vida Breve, Fafe, Labirinto, 2014) 

 © Amadeu Baptista 





quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Erik Knudsen





POEMAS DE ERIK KNUDSEN





ÂNSIAS

Caminho pelas resplandecentes ruas sob uma luz tropical
    numa noite nórdica
procurando os meus irmãos e as minhas irmãs
a todos os que anseiam na eterna inquietude aflita,
a todos os que sonham à margem do tempo (porque nós não
    que o tempo cure nada)
todos os que pediram gritos de crianças nas suas casas, mas só
    obtiveram silêncio.
Anseio encontrar pessoas que não levem penduradas frases
    reluzentes como colares de pérolas,
pessoas que tartamudeiem e utilizem as palavras mais humildes e no
    entanto tenham emoções como o vento do oeste.
Gostaria de aproximar-me da rapariga que está só na porta
    do cinema para comprar alguma companhia.
Dir-lhe-ia: Dá-me a mão, vamo-nos tu e eu juntos a Paris.

Muitos jovens rapazes têm actrizes de cinema nas suas paredes.
O que por último chega antes de se apagar a luz são brancos peitos e
    enigmáticos sorrisos.

Velhas solteironas falam sem parar pelo telefone para não ouvir a
    solidão nem o judicioso tic-tac do despertador na cómoda.

Os cinemas estão cheios de gente que quer esquecer quem é.
    Quando as luzes se apagam são felizes um segundo.

Há chefes de escritório que de repente têm ganas de tirar o
    pijama e deitar-se nus na cama.

Há velhos que afastam envergonhados o olhar ao tropeçarem com
    uma criança que canta. Há professores que escrevem
    poemas a raparigas que nunca conheceram. Há políticos hipotecam
    o espírito do homem durante o dia e aos que desperta a voz de
    Deus durante a noite.

Todos anseiam por alguma coisa, todos sentem a vida como algo grande dentro
    deles mesmos, um inocente condenado, um preso que faz ruído
    com os seus grilhões.

                Til en ukendt gud, 1947


FAZEMOS UM VISITA?

Fazemos uma visita
ao mercado das ideias
para assegurar um par de opiniões
para o resto da semana?

(Começaram já os grandes saldos.
por quatro coroas
podem-se conseguir verdades de primeira
e maduras convicções.)

Ou sentamo-nos
na esplanada de um café
e afogamos as nossas dúvidas
em duas cervejas bem geladas?

Til en ukendt gud, 1947


A FLOR E A ESPADA

Entramos no bosque? Não, não me atrevo a entrar
Onde crescem as verdes árvores de cobre do sonho
Escuta os pássaros! Não, eu não me atrevo a imaginar
Tons tão puros. A beleza põe-me louco
E a harmonia tilinta cruelmente no meu ouvido

Que quero eu num sombrio delito
Onde o sol aguça as suas brilhantes mentiras
E as flores dificilmente ocultam o seu desprezo?

Adeus trompa de caça, aspérula e água do manancial
Adeus nosso pequeno-almoço na erva

Nos campos ouvem-se gritos e estrépito de armas
Ali fora onde todo o dia é nu
Onde as espadas relampejam, as lanças trançam
A cobertura do céu
Onde ardem as bandeiras, os tambores afugentam
Os pássaros dos seus ninhos

Ali fora onde a aurora da vitória foge
E a negra majestade da derrota
Se mantém firme.

Blomsten og svœerdet, 1949


AMADA! NOSSA VIDA

Amada, devemos construir um templo no nosso coração
Devemos elevar-nos mais alto que as árvores do bosque
Devemos cantar uma canção mais forte
Que o órgão, mais forte que o vento
Mais forte que todas as coisas do mundo.


Este deserto que é a nossa casa
Devemos plantá-lo com flores de esperança
A essas estátuas de sal, nossos irmãos e irmãs
Devemos infundir-lhes o espírito da vida
Ensinar-lhes a chorar, ensinar-lhes a rir.

Como o pássaro abandona a sua sombra
Como a erva reinventa o húmus negro
Vamos vencer o invencível.

Amada, o dia que abre passo
Por campos e casas em chamas
É o último dia e o maior

Convertamo-lo em eternidade.

Blomsten og svœerdet, 1949



TODAVIA NÂO

Fraternidade, justiça
Sim, claro: palavras da calafetação central
Sonho e esperança
Perdemo-las num ai
Como os dentes de ouro e os anéis
Quando nos preparam
Para a câmara de gás

Oh ilusão
Quebradiça como eu
Dá-me a mão, agora somos dois
Vem, vamos chamar os demais
Todavia não alcançou a morte
A vitória definitiva

Brœndpunkt, 1953



OS REPRESENTANTES

Começam o dia a comer ovos
Têm fraqueza pelos filmes do oeste
Fazem colectas para deficientes
Conversam com o príncipe herdeiro
Põe penas de índio no cabelo
Assinam no livro dos convidados
Recomendam coalhada e iogurte
Deitam discurso no dia do rei Valdemar
Relaxam com um bom policial
Cantam cantiguinhas na televisão
Citam mortos famosos
Tomam uma cerveja
Suportam o incrível
Têm tempo para o carnaval e a campanha eleitoral
Vendem queijo danês
Compreendem os E.U.A.
Coroam rainhas de beleza
Recordam os caídos da época da ocupação
Competem saltando sobre balões de plástico
São, no fundo, profundamente religiosos
Acariciam os cães
Reprovam os jovens
que não queiram discutir com argumentos

Babylon marcherer, 1970



BURGUESES DUVITATIVOS
I

Sentes vergonha, estás farto
deste mundo rico branco teu
exploração, racismo, genocídio
«liberdade», «democracia»… tu detestas
tudo isso. Bem. A tua má consciência
é um sinal de vida. Não és um caso perdido
como os imperialistas e
os seus pequenos agentes de olhos cegos. Mas
que estás disposto a fazer com a tua vergonha?
em que a empregas?

II

O teu coração com os rebeldes
Os teus pés num chão rico
Playboy
da Revolução

III

Esquece que nasceste
branco e rico
Era Marx proletário?
Era-o Engels?
Lenine?
Brecht?
Tu também podes fazer alguma coisa
Tu também podes mostrar as tua solidariedade
com os oprimidos e os rebeldes
tens que ajustar contas contigo mesmo
Ttm que ajustar contas com a tua classe:
Deserta

Babylon marcherer, 1970



NA MORTE DE MINHA MÃE

Neste quarto
brincávamos às crianças
com barcos sobre
o chão de linóleo

Agora jazes aí
na tua estreita cama
pequena e pálida
com uma ligadura branca
segurando-te o queixo
E nós estamos
olhando-te
com olhos distantes
e não podemos compreender:
Era o quarto assim pequeno?
Foi o jogo tão breve?

Forsøg pä at gå, 1978


COM BANDEIRAS VERMELHAS NAS BICILETAS

Lá para os finais dos anos trinta
o meu amigo e eu andamos
durante umas férias de verão
pelas estradas dinamarquesas
com bandeiras vermelhas nas bicicletas
para manifestar o nosso carácter rebelde

Mais tarde aprendemos
que o que se rebela
acomoda-se na aparência da sociedade
Trata de ser
corrente
Sabe o que quer
Por isso não usa símbolo algum

O revolucionário é invisível.

Forsøg pä at gå, 1978



PEÇO-VOS COMPREENSÃO

Camaradas, perdoai que vos decepcione
                                   com a minha tagarelice
Sei muito bem o que queria dizer
mas passou-se-me. Eu
Perdi-me, encontro-me num mau
                                   momento
Tratei de concentrar as minhas forças
Mas a minha mulher disse-me: Relaxa
Tu não és Jesus Cristo nem Marx.
Terei pois que viver com essa ideia.

Forsøg pä at gå, 1978



DIA DE ABRIL. PARA LISE

Limpei a sala de estar e
                        tratei dos canteiros
Tu estás a trabalhar no teu livro
Agora estás a cozinhar
M.A. telefonou. Alegra-me
transmitir-te os seus cumprimentos.
Falou do importante que é
dizer uma palavra amável a destempo.


Forsøg pä at gå, 1978





Versão minha - © Amadeu Baptista









Erik Knudsen (1922). Nasceu em Slagelse. Professor universitário. Colaborador da revista Heretica e, depois, da revista socialista Dialog. Participou activamente nos debates das questões nacionais, com posições consequentes de esquerda. O seu tema central é o indivíduo contra a burocracia. Iniciador na Dinamarca da poesia comprometida. Escreveu peças de teatro, libretos e textos para a rádio e a televisão.



terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Revista 'A IDEIA'

No passado sábado, realizou-se em Lisboa, o lançamento do nº. 73-74 da revista

'A IDEIA'


O índice:

A IDEIA: revista de cultura libertária
II série-vol. 17-n.0 73-74 - Outono de 2014

Declaração
I SURREALISMO & CAFÉ GELO
Manuel de Castro - Cartas inéditas a Hélder Macedo com nota deste
Carta inédita a Carlos Loures com nota deste
Poema em catalão por Félix Cucurull
Ricardo Ventura - O espólio de Manuel de Castro
Inéditos de Manuel de Castro
António Barahona - Mágico. Manuel
Vasco - Manuel de Castro & Gelo
Luiz Pires dos Reyes - Manuel de Castro
Miguel Filipe Mochila - Quem tem medo do surrealismo
Maria Estela Guedes - Sobre Manuel de Castro - um texto de Herberto Hélder
Maria de Fátima Marinho - Vertigens do lugar
Jorge Telles de Menezes - Manuel de Castro: a Luz em viagem
António Cândido Franco - Manuel de Castro: os versos de gelo
Arthur Rimbaud - Ultimas palavras escritas
Luís Amaro - O melhor 'retrato de Mário Cesariny
António Salvado - Ao Mário Cesariny. aqui
Virgilio Martinho - Sábado Festa
Luiz Pacheco - Carta inédita a Virgílio Martinho
Manuel Silva Ramos - Visita a Luiz Pacheco
Carlos Mota de Oliveira - Montagem-homenagerm
Almerinda Pereira - Luiz Pacheco: notas sobre um pedido de pão
Sofia Santos - Luiz Pacheco: uma literatura descamada
Maurícia Teles - Luiz Pacheco
Nicolau Saião - Como o outro que diz
Pedro Oom - Carta a Nicolau Saião com notas deste
Três poemas
Alfredo Margarido - Um semi-inédito de 1957

Surrealismo negro
Paulo Jorge Brito e Abreu - Bon sauvage
Fernando Botto Semedo - Mário Cesariny — a casa da poesia
Laurens Vancrevel - Walking down the streets with Mário Cesariny
Carla Ferreira de Castro - Passeando nas ruas com Mário Cesariny
António Cândido Franco - O renque tão decisivo do mar e do céu marinho
Entrevista a Isabel Meyrelles
Arnost Budik - Carta inédita a Cruzeiro Seixas
Manuel Neto dos Santos - Homenagem a Cruzeiro Seixas
Raul Leal - Carta inédita a Almada Negreiros [trecho] anotada por Manuela Parreira da Silva
Ruy Ventura - Dois testemunhos de Manuel D Assumpção
Manuel de Castro entrevista D'Assumpção
D'Assumpção - Carta inédita a João de Vasconcelos anotada por Ruy Ventura
António José Queiroz - O Pintor
Manuel Hermínio Monteiro - Pascoaes de avião
A morte não existe
Teixeira de Pascoaes - Carta inédita a Albert Vigoleis Thelen
João Mendes de Sousa - No Gancho de António Nunes da Rocha
Gancharia
Angelo Lima
Manuel Villaverde Cabral - Radicalidade estética, radicalidade política
Luiz Pires dos Reyes - Henrique Tavares
Amadeu Baptista - Viagem nocturna
Manuel Sitva- Terra De gelo
Maria Estácio Marques - Mário Cesariny — Natália Correia
João Carlos Raposo Nunes - Manuel de Castro - 1973
Fernando Grade - Manuel de Castro & Companhia
António C. Franco O Gelo — do princípio ao fim
Entrevista a Carlos Loures
Hélder Macedo - Poema
CRONOLOGIA

II BRASILINA
Benjamin Péret - Uma arte sem rosto
Sérgio Lima - Mélusine bleue-nuit
Alex Januário - Transmissões
Grupo DeCollage - Cronologia
Cláudio Willer - Séries
Floriano Martins - Visões da névoa: surrealismo & Brasil
Lucila Nogueira - Espelho veneziano
Angelo Monteiro - Sem disfarces
António C. Franco - Brasílica de Benjamin Pérel
Entrevista a Pietro Ferruam

DOCUMENTA
Agostinho da Silva - Sobre um livro de António Telmo
Nuno Júdice - Lírica, narrativa, poesia
Antonio Saez Delgado - Paísaje
António Telmo - Fragmento dum livro inédito
Pedro Martins - Para urna kabbalah pós-atlântica
Fiama Hasse Pais Brandão - Cartas inéditas a António Telmo comentadas por António Carlos Carvalho
Paulo Borges - Mãe, Irmã e Amante nossa
José Rui Teixeira - Poema
Nuno Mangas Viegas - Semente-boca
Valter Nogueira - Três poemas
José Emílio-Nelson Aflição e Cinza
Paulo Jorge Brito e Abreu - Soneto à guisa de Bocage
Alexandre Vargas - "Boa noite, senhor Fernando Pessoa"

IV LEITURAS & NOTAS
 Luís Amaro - Lembranças avulsas de Gonçalves Correia e seu filho Ferrer
Gonçalves Correia - Brito Camacho
José Hipólito Santos - Um militante libertário: Moises Silva Ramos
João Freire - Paul Goodman
Joaquim Palminha Silva - Novos instrumentos de manipulação e tortura
José Maria Carvalho Ferreira - Maria Conceição Magos Jorge
Paulo Guimarães - Nota sobre "Negras Tormentas", Alexandre Sarmis
Carlos Júlio - Portal Anarquista
Jorge M, Colaço - Publicações independentes
Laurens Vancrevél - Le rniroir noir de la poésie surréaliste
Miguel Perez Corrales - Philip Lamantia
Jorge Leandro Rosa - Para um povoamento da vida poética: Gary Snyder
Carla Ferreira de Castro - A irmandade Pré-Rafaelita
Miguel de Carvalho - Allan Graubard e o surrealismo hoje
Manuel Parreira da Silva - "Aviso a tempo por causa do tempo", António Maria Lisboa
Fátima Sousa - Uma cartilha de remos e rimas?
Cristina Dias - A revolução poética de Natália Correia
António Gonçalves - Memória de luz e silêncio [Henrique Risques Pereira]
Rui Sousa - Recordações do "Congresso Surrealismo (s) em Portugal"
Sofia Carvalho - Triénio pascoalino

Arquivo & Registo
 Novos Colaboradores




















Deixo aqui o poema com que colaborei nesta edição:



VIAGEM NOCTURNA


estrangeiro em lisboa, venho aqui para descobrir
bach nas avenidas novas e algumas mulheres sentadas
nas escadinhas do duque. esta é uma cidade odiosa, de tão branca
que é – e suja, sempre a lembrar-me do que devo esquecer
neste rio sem naus, mas cafres insuperáveis. o certo
é que durmo na travessa dos fiéis de deus com frio e agastado pelos ruídos
da praça, enquanto tu, camões, pareces impassível à arruaça
e na tua sereníssima imanência nem dás pela promiscuidade citadina.
odeio, abomino esta gente que não me olha nos olhos, e tem, abertamente, um linguajar
de réptil, sem matriz, catedral, solenidade: anda na rua como se fosse cega
e acresce ao desvario um esbulho de luz incoincidente com a minha intratável entoação nortenha, que, talvez, ao antónio barahona não destoe, já que pede por nós em grego,
e aramaico, e árabe, sem que, apesar disso, muito se compraza. lisboa a estas horas
nem sabe o que é a chuva, a água, o tejo – ocupada nas compras
e sem novas de ulisses, ou das barcas, vibra de cheiros maus pelas vielas,
que o fado, de alguidar e faca, mais arrevesa do que sabe aproveitar.
como viver aqui me é desconcerto e acirra a vontade de morrer: vejo este pessoa
de bronze à porta dos cafés, a ser contaminado por uma freguesia tão absoluta
e primitiva que lembra o estado novo que vomito, vomito como um corvo.
se por este caudal viesse, ao menos, o cesário, talvez transfigurasse a aversão
em poema e o sarcasmo alinhasse na rua do trombeta algum montante de ternura avulsa. mas não. eu até em telheiras não estou bem, esse lugar de múltiplos desgostos, onde perdi, além do amor, um cão, um cão quase redentor. ah, lisboa: hoje, às três e meia, vai pelo mundo uma promessa de orgasmos pela paz universal, mas de ti nada se espera,
alheada que estás das coisas transcendentes, com a cauda entre as pernas e o olhar
sem vislumbrar o horizonte, onde uma virgem seminua de novo dançaria para ti,
se merecesses, ou a chulice encartada não prevalecesse. tivesses tu coragem
e ias a s. bento queimar o molho aos torvos que, para seu governo, nos andam a tramar, ou viravas 
a mesa, ou partias a louça, desterro nosso sem qualquer desterro.
serias, por uma vez, implacável, a fazer corpo com o futuro, em nome do que vale,
sem misérias ocultas e esperança justa. mas não. tu só te agastas pelo que é inútil,
com poesia melíflua do quotidiano e centros comerciais a liquidar enigmas estúpidos. olha as pontes, lisboa. olha, lisboa, os teus subúrbios. há mais beleza na pedreira
dos húngaros, ou nas arribas de cacilhas, que tudo em volta do castelo, salvando-se, talvez, pelo sortilégio, são domingos e as paredes calcinadas pelos incêndios
perseverantes, e onde eu, às vezes, vou, não para falar com deus, que não existe,
mas para apreender um pouco mais de bach, na parte que lá mora,
e ver, ao alcance da mão, outras mulheres sentadas, sempre à espera de um algum milagre avulso, algum ligeiro terramoto que as estremeça. é pena que o bocage, lisboa,
cá não esteja: cansado da bicheza, por certo encorajava diogo alves a regressar
do enforcamento para dar continuidade às obras de limpeza a que deu início
com a quadrilha, ali para o aqueduto, para acabar de vez com a cidade branca, deserta,
a matar os távoras que pode, ou quem resiste à ignomínia de estar à mercê de gente medíocre. pergunto pelo almada e venho vê-lo a alcântara, ao cais de embarque,
à margem de belém e os seus pastéis, de nata e presidência: apaziguam-me mais
estes painéis, de alvoroçada partida e descoberta, que uma ida à gulbenkian,
ou ao príncipe real, se bem que nos seus jardins a noite se suspenda
e um sortilégio vele, entre os ligustros, a noite imensa.
mas o almada não era de lisboa, tal como não era o botto,
(ou o herberto, a natália: gente de ilha/ gente de quilha, digo eu,
que também fui concebido numa ilha do porto, e se quisesse não, ah, não
enlouquecia), tal como não são de lisboa os habitantes de lisboa,
ou nós, artistas desta hora, que, não sendo de alguma parte, vamos da graça a alfama
com o coração apertado, num vinte e oito que nunca tem destino.
ah, que desgraça não sermos de saturno, que desgraça a nossa transcendência não ir além da gare do oriente e ter de estar sujeita a um restelo de velhos e furores adolescentes, sem génio nem remoque, mas sempre, e só, tormenta.
é que de adolescentes nem é bom falar: à luz do lampião, eu vejo-os pelos bares a cair
de bêbados, sem mãe que lhes acuda, ou tirocínio, que o mais que sabem
é exctasy e shoots, assim, em inglês, já que ler e escrever na língua de que são
lhes passa a milhas, no caso americanas: as jeans puídas e os cabelos soltos,
que não vêem sabão vai para semanas, a beneficiar, sem que o suspeitem,
o neo-liberalismo, são o sem sentido de uma rebelião
sem turbulência, manada para abate um dia destes. e quanto a velhos,
estamos conversados: a vetustez de oitocentos anos, nem para os sapatos mija,
ou desfeiteia viúvas, de pátria ou sordidez. ah, lisboa, nem o putedo infrene
dos teus becos é valia que baste. eu, que não sou cliente, atrevo-me a dizer
que não há puta mais repugnante que a puta de lisboa, sendo lisboa
a puta desgrenhada que se vê, que nem um bom mergulho purgaria
ou, ainda que por empréstimo, poria algum feitiço langue, ou dengue, ou o que fosse. mulher sentada que valha em lisboa é, tal como eu, estranha a estas paragens:
falo de uma eslava que conheço, que é bela como a planície alentejana, assim como são belas as cabo-verdianas que se sentam na relva para que o esplendor coaja – coaja
e ponha em marcha –  a indizível matéria do desejo. um poeta cai no seu campo electromagnético e é como se entrasse no mar ou no regaço de um sonho onde a canela, a mandrágora e o rábano picante se reunissem para um manjar de deuses, irrecusável. detestável lisboa, que posso mais dizer para contrariar-te, mesmo a pagar imposto,
com e sem valor acrescentado, além da derrama? desde que o fialho de almeida
se foi que os teus gatos, lisboa, são ramelas andantes, a comer do próprio vomitado,
sem miados à lua e cenas langorosas nos telhados, a incentivar amantes. há, é claro,
as coisas do botelho, onde tu, lisboa, talvez não por acaso, apareces vazia no retrato,
sem notícia do ajuste de contas necessário com os cobradores de impostos, as raparigas de cabeça oca, os rapazinhos lúbricos dos ginásios que se enfeitam para os rapazinhos lúbricos dos ginásios, as matronas do chá, que enfermiços canídeos arrastam pela trela,
os homens de negócios, cinzentos, como sempre, a traficar crianças e assassínios,
e os cônsules, os tribunos, os pretores, e até os sem-abrigo, que dormem
nos portais e perderam, entre tudo o que há para perder, a clareira após o abandono.
há, é claro, esse secreto adeus do baptista-bastos, a enredar real na realidade
e a viajar por uma deriva ignóbil, nas ruas da amargura, a fazer do obsceno obra acabada, como só pode ser o que é do homem. há, é claro, o gomes leal, o o’neill,
ou o cardoso pires, com anjos escarlates a tremeluzir nos céus, por pura limpidez
de sensualidade e ancoragem terna. mas tu, lisboa, não podes entender a aristocracia
que há no povo, não podes crer no poder da arraia-miúda proto-contemporânea,
nem mereces o vítor silva tavares, a congraçar a emenda e o soneto, sem mais tristeza possível  que a dos barcos que passam ao largo do cais das colunas,
enquanto o café gelo não tem outro destino do que deixar de ser a sede radical
da carbonária para se transformar em nova decadência de lambris escuros,
sem mário cesariny e sem luís pacheco, sem vergílio martinho ou ernesto sampaio,
sem antónio josé forte ou manuel de castro. melhor fora, lisboa, que fosses moura, ainda, e que às trindades se não ouvissem sinos, mas o sumptuoso grito do almuadem. ouvindo o chamamento, sabendo que a cotovia convocava à oração, ias, por fim,
lavar-te. e, assim, lisboa, talvez fosses o brilho verdadeiro de que brilhas

ao sol, como uma ave –  muita branca por fora, muito negra, por dentro.

© do poema Amadeu Baptista



quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Manoel de Oliveira (no seu 106º. aniversário)

MANOEL DE OLIVEIRA. SOBRE UMA SEQUÊNCIA DE VALE ABRAÃO

O que se pode mostrar não pode dizer-se.
Wittegenstein - Tratactus
                       
Sei como recrudesce o sentido das coisas nos mais
subtis movimentos da câmara, nessa demora
amplio cada pausa para adensar na memória
o que se vê, este prolongamento
onde a confrontação é real, vital,
próximo da verosimilhança e das equivalências
que dão à eternidade um valor substantivo e precário,
intenso e frágil no espírito de quem chega
e colhe uma laranja onde um brilho se esconde
para que o inquieto mistério do cinema
seja um outro entendimento do mundo
enquanto a mulher progride,
a obscuridade permanece,
o fascínio acrescenta uma outra luz à luz
deste vale propício às coisas naturais
que a transfiguração acrescenta ao que está vivo.

© do poema Amadeu Baptista





quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

João Tomaz Parreira




DOIS POEMAS DE JOÃO TOMAZ PARREIRA




PRIMEIRA CARTA AOS CORÍNTIOS, 13




Conheço as línguas dos homens. São físicas
descrições de sons e sentidos, desdobram-se
em cores para pintar o mundo. São frias
se vêm do norte, do sul se vêm com fogo.
Com as suas línguas
de metal celeste, conheço os anjos.
Mas será como ter os ouvidos tapados
com silêncio, se não tiver amor
Conheço a maneira de transportar os montes
e os mistérios que posso esconder
entre os meus lábios, e no espelho
que é a profecia, posso ver o futuro. Nada será
se não tiver amor. E ainda que conheça a cor
do dinheiro e os pobres
que se alegram comigo, o que importa
se não exercitar na alma o gozo do amor.


17-10-2014


Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine. E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria. E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria.

1. Coríntios 13 1-3





A VIRGEM DE LEONARDO




Tem um par de olhos quase obscenos e um sorriso
Enigmático, onde tocam
Os pássaros desocupam os ramos, despem
Os nossos ouvidos de ressentimentos
Sobre o dia que passa

Rasgam a carne, tiram o coração do sério
Do seu batimento
Absorvem
Todo o ar à nossa respiração

Sob a ausência do seu par de olhos e do sorriso
Quase obscenos
Quando se afastam morremos
Em silêncio, sem memórias.


21-11-2014


© João Tomaz Parreira




foto: © Amadeu Baptista

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Olaf Bull




Poemas de Olaf Bull



Não se percebe sob este céu azulado
nem a menor respiração do seu peito.
Esse ar que uma vez com as suas suaves brisas
ascendia e descendia na recatada elevação do peito,
que brincava com ternura na doce curva do pescoço,
esse, ondeia agora em vão sobre o desejo da terra –!
Olha, as andorinhas sobem bailando, bailando descem –
e os meus pensamentos regressam a tempos passados,
quando ela também chamava andorinhas às andorinhas
e felizmente desfrutava chamando azul ao ar!

Escuta o rumor da primavera sobre as alturas do mundo!
Os campos reverdecem com vigor, até o quê, até o quê?
O júbilo dos rebentos não chega aos seus olhos
que já ninguém encontrará, por muito que os bosques, –
os mesmos abetos sussurram nos deliciosos lugares, –
onde ela, com o seu eterno encanto, os enchia de assombro –
 –  –  –  –
Nada mudou. Longínquo e vulnerável chega das fábricas
o som dos enérgicos sons de um dia normal –
não há coisa mais certa neste mundo
que isso, o que se converte em pó sob a tampa do ataúde!

Mas os campos reverdecem e o céu grita e azulece
como se o fragor e o azul quisessem tirar-te da tumba –
aromas que fluem de milhares de resplandecentes folhas,
lilases atrás da vala ao longo do passeio primaveril
longe, muito longe brilha o teu amado mar!

Hoje era um dia para ti, para ti meu amor, ali em cima,
onde o silêncio repousa em melancólicas rosas e plantas!
Ai, como amavas as tempestades no cume do teu jardim
e o alado relâmpago dos painhos pelos caminhos primaveris!

Ai, se eu pudesse, se somente pudesse esquecer –
e impulsionar-me a subir loucamente uma vez mais
aquelas escadas e perguntar se tu estavas em casa –
com fé nisso mesmo, e voz alegre voz e emocionada – –
–  –  –  –
No cemitério do Salvador soam tons dominicais  –  – 

Digte, 1909


A PEDRA
Eu estava na mais extrema eternidade,
atrás do incêndio do horizonte visível –
então sucedeu que alguém avançou para mim
sobre a bordadura de uma estrela desconhecida.

Alguém que se inclinava para diante e sorria
atrás de um véu, que lhe envolvia a cabeça,
e segurava uma pedra numa das suas garras
e sussurrava fria e suavemente:

«Deixo cair uma pedra na órbita do céu,
a pedra dourada, que agora te mostro;
no instante seguinte desaparecerá;
e nunca mais cessará de cair.

Entendes, miserável, o que faço?
Solto uma pedra em queda na tua alma,
semeio no teu ser desassossego,
uma inquietação que nunca morrerá.

Como quer que te queimes na morada da luz,
No amor de mulheres, entre arbustos de branco primaveril –
A pedra que ao mesmo tempo cai, cai
Nas trevas do destino, tens que lembrá-la – – –

* * *

E a imagem partiu-se, e eu afoguei-me,
afoguei-me minha cama – acordei a suar;
em ondas de gélido orvalho de estrelas
pulsava o meu coração, golpe a golpe –

Mas o sonho prosseguiu na noite do meu coração;
da juventude à idade madura
tentou em vão a milha alma colher
a pedra que cai incessantemente –
–  –  –  –  –  –  –  –

Digte, 1909


CLARA EUGENIE

E o pastor levantou a sua mão branca,
e deixou deslizar com melancolia    * 
uma onda de água bendita sobre o cabelo da menina.
«Baptizo-te com o o nome de Clara Eugenie!»
Mas nos olhos da mãe havia lágrimas
que baptizavam esta promessa de vida
com maior solenidade que a da força do pastor
no seu trabalho junto à pia baptismal de mármore!

* * *

A segunda vez que o pastor levantou a mão,
a pequena Clara Eugenie ia de branco – – – 
e as suas palavras nítidas de jovem rapariga
voaram tímidas e nítidas pelo coro da igreja.
E a mãe sonhava, com a face voltada
para o arco do frio muro da igreja,
em algo longínquo e luminoso que antes tinha ocorrido
em anos sorridentes, na verde natureza – –
Como se ela, jovem e vestida de branco, passa-se
diante da sua própria filha. Clara Eugenie,
para logo seguir caminho junto ao rio do prado,
só, até um mar distante e desconhecido – –
Nesse instante o sol entrou na igreja, resplandecente,
e a Mãe sussurrou, agitada e com pesar:
«Perdoa-me, filha, se foi egoísmo,
por tu seres jovem, eu mesma fui jovem.»

* * *


E o pastor levantou a mão pela última vez
a sua mão branca com palavras firmes, puras –
mas o que fluía para o chão escuro
não era água bendita, mas terra bendita!
E a mãe tremia como um animal, sofria
ao ouvir cair a terra, punhado após punhado –
mas de longe, dois metros abaixo do jardim do claustro
levantou-se a voz da terra, agitada e entrecortada:
«Clara Eugenie, filha minha
regressaste enfim à grande totalidade!
Floresce na oculta primavera,
nos verdes prados, em árvores
e nuvens felizes, no limpo azul do céu,
em formas mais eternas para os teus queridos – – – !

Nye Digte, 1913


IMPOTÊNCIA

Não batas com a cara contra a porta da morte –

Um mundo de terra
são todos os nossos mortos!

Sabes que agora as formas livres do seu corpo
transbordantes de estrelas e mar e sol,
são agora uma terra
vazia cinzenta
feita de angústia!

E sobre tudo aquilo
um cerro ermo
com flores débeis,
através de cujo perfume
uma borboleta viva
estende as suas asas ansiosas de vida.

E tu o sentes claramente,
quando divisas o bicho
a beber de um céu desalmado,
resplandecente, vazio, com seus olhares:
Isto, isto é a vida –  –

E ela, tua única amiga,
cujos intensos olhos te reflectem
a ti, ao teu amor,
ali na profundidade do mundo
é uma matéria cegamente atraiçoada –

Só uma parte dessa fé,
terra verde e muda
fazia com que o pequeno insecto
batesse as asas da sua dança vital
e frequentemente descansasse da sua fadiga.
 – – – – –
Não armes escândalo contra a porta da morte.
Isso já o sabias:
Um mundo de terra
são todos os nossos mortos.

Levanta-te do verdor e põe-te em pé.
O sol pôs-se, a noite levanta-se azul
contra as portas de bronze da morte.
Chora as tuas lágrimas, diz as tuas palavras –
palavra por palavra
és só tu o que ouves:
«Dorme docemente
o sonho da terra
na noite da tumba,
onde nunca há sol –,
ali onde o teu contorno pouco a pouco
cede à obscuridade do mundo –

Viva e paz eterna
que não se conhece a si mesma
e por isso é a paz mais profunda.
Adeus – oh tu – adeus
no jardim da tarde!
Encontrar-nos-emos na pá,
que é lançada na tumba do futuro.»

Digte og novelles, 1916



MÉTOPA

A ti quero embutir-te docemente ritmos.
A ti quero conservar-te profunda e duradouramente
no eterno e jovem alabastro do poema!
A ti sonhadora emocionada pelo sol! Com a juvenil
face voltada para o ouro pálido da tarde,
ficas suavemente um céu após outro,
luminoso e terno e enigmático!
Com gosto daria todos os versos do meu mundo,
se tivesse sido capaz de uma só coisa: talhar
na obstinada pedra da memória uma suave métopa
sobre o delicado e doce contorno da tua alma!

Caminhamos pela areia húmida da maresia! Tu escutas
os airosos salpicos das ondas do mar estival!
Sentimos piedosamente que o silêncio da tarde
traslada cada vez mais longe a sua fronteira sonora!
Ressoam sons apagados que retrocedem deslizando
atrás de bosquezinhos avermelhados, douradas agulhas de igrejas –
e as luminosas ondas de ar afundam-se debilmente
como torrentes de sol das montanhas que permanecem.

Azulecem as colinas. As estrelas estão próximas!
As últimas nuvens apressam-se a chegar a casa ao entardecer!
O prado afunda-se na oração –! da maré do ar levanta-se
Arcturus! Suavemente, detrás do muro de granito cinzento,
sopra um vento na prateada pelagem do centeio!
Através to teu olhar um cálido e profundo suspiro –
no meio da obscuridade azul o olho pode receber
um fugaz salpico, um húmido resplendor de mel,
e sereno pergunto-te:« Em que pensas, meu amor?»

«Penso em tardes como esta, em que não se permita viver –
em campos de pousio, que sussurram de trigo, sem mim!
Em bagatelas cativantes: Espigas que se quebram,
caminhos no mar, pálidas velas longínquas,
ondas que se acercam da praia sem mim!
No quotidiano, meu amor, que suavemente continua na tumba,
nisso penso, e em todas as profundas, azuis,
tardes vindouras aqui no jardim do verão,
sem a minha alma junto à tua, nisso penso!

Tudo isto me enche o olho como uma lágrima,
eu, só e angustiada e miserável, logo chorarei!
Todas as coisas que esta tarde são nossas
dentro de poucos anos ébrios terá chegado o momento,
quando desaparecerem as névoas e o olhos veja claro!
Oh, amor, olha que profunda e negra fica a baixa-mar!
Que estranha ficou o praia, quando se foi a água!
Acaso estará longe a noite quando nós formos
uma praia mais feia que esta, abandonados por tudo?

No entanto é um doce e sagrado milagre,
que estres prados com o seu trigo e arbustos e árvores
e montanhas atrás, tão distantes como alcança o olhar,
se humedeçam tão docemente dos nossos instantes – –
o mesmo abeto, que nosso é!
E a cerca de madeira! O velho carro das ferramentas
jaz imóvel  na erva e firmes se erguem
as enormes estacas dos feixes junto às sorveiras
e a vala é verde como antes, como todos os anos!

Oh meu amor, se a profundidade da tumba o permitisse
eu ficaria aqui transmudada em prado, como feno,
nesse abeto, com estrelas dentro, e a montanha,
só para assim, defender, de outro modo,
o nosso jardim, e por ele: morrer!
Abraça-me, meu amor, tem-me assim. Ser abraçada assim
de repente será o único clarão de esperança, sei-o –
despertar na minha outra eternidade!»

E eu, um homem vivo, sinto-me em casa na terra,
um homem bem determinado, de carne, dos pés à cabeça,
posso, aturdido e tímido, perceber no meu abraço
algo que só é olhar e alma e voz,
dissolvido em dolorosa angústia e pressentimento.
Tu, solitária! Eu só posso acariciar em silêncio
o teu perfumado cabelo, a tua mão na minha –
e assim, frente a frente, estão Pã e Psique
diante de um mar de trigo, à luz das estrelas.


Metope, 1927



Versão minha - © Amadeu Baptista





Olaf Bull (1883-1933), nasceu em Oslo. Filho do escritor Jacob Breda Bull. Estudos universitários de línguas e literatura. Viveu em Roma, Copenhague e Paris. É um dos grandes líricos noruegueses.