sábado, 13 de julho de 2013

FESTIVAL DE POESIA DE LODÈVE





UM POEMA DE ' OS SELOS DA LITUÂNIA'
COM TRADUÇÃO FRANCESA DE FRANÇOIS-MICHAEL DURAZZO





écrire peut être, naturellement, avoir trois ans,
se trouver sur la plage un jour de grande chaleur
et sentir quelqu’un nous prendre par la taille
et nous plonger dans les flots violents
d’une mer déchaînée, en jetant un regard
sur la foule tout autour, les bonnets jaunes,
les bikinis colorés et le vendeur
de cookies, avec sa casquette ornée d’une ancre,
qui arpente la grève de long en large
depuis la roche jusqu’aux cabines de douches.
remonter dans la houle à la surface et de nouveau
plonger en étouffant un cri dans sa gorge
pour voir le fond marin, ces algues
menaçantes dans leur ballet aqueux
que les larmes rendent encore plus dense.
sinon, à part ça, ce peut être, précisément,
avoir une connaissance profonde du mot
laryngite, rester cloué au lit par la rougeole
derrière une fenêtre sur rue à l’abri
d’une toile rouge du sol au plafond,
mourant de soif sans même pouvoir
mouiller ses lèvres. ou bien passer l’après-midi
entier à entendre quelqu’un atteint
d’une sclérose multiple gémir, retomber
en enfance et peu à peu mourir
de dragées blanches. écrire peut être, précisément,
aller à l’école avec la peur au ventre, et souffrir
les terribles conséquences de la cruauté
des maîtres envers les enfants,
les pages de copie à la dérive entre bave et morve,
les jambes qui flageolent à force de paniquer,
les doigts endoloris et le cœur
battant. ou encore,
écrire peut être, probablement,
régler ses comptes avec son passé,
ou même le souvenir de cette nuit
où le vent fouetta notre chambre, fit voler
les tuiles des maisons environnantes, tuant
l’élégante dignité du chat qui traversa
la route et fut renversé par un seau
bosselé. sinon, ce peut être le cheval inquiet
parfois aperçu dans la prairie, ou des animaux
égorgés, aux viscères entrelacés
en écheveau sous l’appentis, près du linge
séchant sur l’étendoir. ou la nuit,
immense et perdurable, où quelqu’un
frappa à notre porte sans entrer, quand
à la lueur d’une lanterne nous tentions de distinguer
sous la pluie encore battante
les claies qui entouraient l’enclos,
la girouette en forme d’avion, les chardons
du terrain vague. sinon, à part ça, ce peut-être,
précisément, emprisonner son visage quelque part
pour ne pas céder, partir torse bombé en quête
du rythme des passions, les plus voraces,
celles capables de pousser au meurtre, de tourner
les têtes, irruption d’un ciel d’ombres
vraies, même s’il n’y a pas de ciel,
même s’il n’y a pas d’ombres
et que dans les lettres ne resplendisse
que peu de chose.


© François-Michael Durazzo et Amadeu Baptista

Mais informações sobre o Festival: http://www.voixdelamediterranee.com/




terça-feira, 9 de julho de 2013

Ólafur Jóhann Sigurdsson



POEMAS DE ÓLAFUR JÓHANN SIGURDSSON


VARIAÇÕES SOBRE UM SONHO DE UM FILÓSOFO CHINÊS

Cri ser uma borboleta num estranho sonho,
vogava entre as flores libando nas suas corolas.
Mas parecia-me divertido e estranho
não ter no sonho as minhas velhas sapatilhas.

Agora que estou desperto neste mundo cinzento
cumpro com o meu trabalho e estou são e contente.
Creio que sou um homem, mas vejo-me às vezes
como uma borboleta dourada que sonha que é um homem.

Ad laufferjum, 1972



ONDE LEVA ESSE CAMINHO?

Onde leva esse caminho
que abris para as máquinas
à largura e ao comprimento
por ermos e povoados?
Onde está o templo das fadas?
Onde a pedra dos anões?
Onde o arroio que rodeava a aldeia?
Onde a fonte de prateadas ervas?

Onde leva esse caminho
que abris para as máquinas?
Onde estão os ninhos do pântano?
Onde está a saxifraga e o junco?
Por que não se ouvem já
a narceja nem o maçarico?
Por que não emite já os seus gritos
o bico vermelho do tringa tonatus?

Onde leva esse caminho
que abris para as máquinas?
Onde o silêncio e a tranquilidade
que te ensinaram sonhos e anseios?
Onde o rumor calado das bétulas?
Onde o sopro do ar entre as flores?
Onde está a espumante catarata
que te ensinou a cantar?

Com o pó da gravilha
com o barulho dos aços e das rodas
nas tuas entranhas vivas
chegou a insanidade.
Onde leva esse caminho
que abris para as máquinas
à largura e ao comprimento
por ermos e povoados?


N. do A. Tringa Tonatus: maçarico de perna vermelha.

Ad brunnum, 1974



RECORDAS AQUELE POÇO

Recordas aquele poço mais profundo que nenhum.
Em fragmentos confusos conserva-se ainda em ti
e só se completa se a dor e o perigo
nidificam no teu peito. Mais profundo do que os outros

guiava-te como se em transe pelo céu e o mundo,
a gigantesca abóbada, a terra, as plantas e os animais.
A luz diurna, o frio e a silenciosa obscuridade
lias no seu fundo. O sol e as estrelas,
unidade do rio escuro da terra e da noite:
nada podia roubar-te a paz do fundo poço.
Paterna protecção na treva, ternura maternal,
suavidade e quietação, embora a vida dura,

brotam ainda das suas ondas quando te ferem
se o teu refúgio no instante incerto
está ainda no poço mais profundo que nenhum.

Ad brunnum, 1974



NOSTALGIA

Além das casas, fora da cidade,
olha ainda as montanhas,
os caminhos obscuros que costumas percorrer.
Além dos montes
escutas o cair das folhas
das altas sorveiras na margem da corrente.

Ad brunnum, 1974



A PROCURA

Procuraste muito tempo
a fonte fresca e clara
o poço rumoroso
na sua espera prateada.

Voaram para o sul os pássaros ontem à noite
enchendo a treva com o seu bater de asas.
Hoje o prado é geada
e o páramo está vermelho.

Ainda não encontraste o poço
nem encontraste a fonte.
A tua procura passada
é uma foto amarelecida.

Sobre o teu pensamento plana a tristeza
procuras inutilmente?
Gelam os teus cabelos
mas há que seguir em frente:

As águas são mais claras
nos outonos frios
e é mais fresca a fonte
que mana sob o gelo.

Ai. se acaso existisse o poço reluzente
beberias sem descanso.

Ad brunnum, 1974





NA PONTE

Inundada na primavera.
E a água chama o sonho
que abre no teu peito um canal
em que ressoar.

Calado, sobre a ponte
contemplas a corrente
e pensas naquilo
que uma vez existiu.

Ad brunnum, 1974



CANTO DO PÁSSARO

Até onde penetras o meu pensamento
quando o orvalho escarcha na erva?

Sabes onde voo
quando estiolam os meus bosques?

Não, deixa já de me chamar
teu amigo, o pássaro cantor.

Virki og vötn, 1978



A BARCA

A barca abandonada balança na baía.
A minha cana está presa à última tábua
e a tua na proa, querido companheiro.

A barca abandonada! Mas no meu dormitar
lembro que o meu amigo descansa há tempo
no horto calado de que já não regressa.

Por que já não me vejo a mim mesmo na barca
jovem e esperançoso a manejar a cana?
Por que vejo apenas uma imagem turva

a perder-se no crepúsculo? Porque a barca escapa
para fora da baía, ainda que reine a calma.
Dobrando o promontório vai para a noite… e ao fundo.

Virki og vötn, 1978



O MENINO

Não te assusta o ranger nem o silvar quotidino
do aço afiado, das balas certeiras.

Nem tão pouco entendes os gritos das cidades
assaltadas por tropas que invadem a sangue e fogo.

Pois as flores do campo envolvem-te nos seus braços,
a luz da primavera oferece-te a sua promessa.
Protegem-te a erva e os sonhos inocentes
e essa protecção é poderosa e total.

Virki og vötn, 1978


Versão minha - © Amadeu Baptista





Ólafur Jóhann Sigurdsson. Nasceu em 1918 e faleceu em 1988. Publicou cinco livros de poesia, tendo sido dois deles premiados com o Prémio de Literatura do Conselho Nórdico, em 1976. Usou a métrica tradicional para cantar com doloroso sentimento a natureza virgem islandesa. Escreveu também alguns romances realistas.

terça-feira, 2 de julho de 2013

Solveig von Schoultz



POEMAS DE SOLVEIG VON SCHOULTZ



DESPEDIDA

As  crianças dormiam, e o marido, quando ela partiu
secreta, descalça, como que adormecida.
Deixou a sua ternura junto ao homem para que o consolasse
com o seu aroma como uma seca convalária muda
que guarda junho no seu interior até bem dentro do outono.
E enquanto a luminosa respiração das crianças
se elevava em volta dela como brisa de trevos
depositou lentamente o seu choro junto a um,
o seu riso em outro, a sua canção em outro
e ficou ali de pé e olhava e não se atrevia a olhar
e retirou rapidamente uma curta madeixa de cabelo
e deslizou com os olhos fechados até uma porta,
até uma porta da noite, uma porta que levava para fora
onde a lua esperava, fria, clara e audaz.
Agora tinha dado até ao seu último alento.
Já não lhe restava nada mais do que o corpo
e a angústia na decisão desse corpo.
Na porta, mais além do seu passado,
olhou ao seu redor e soube o que tinha feito.

Eko av ett rop, 1945



CORAÇÃO

Dávamos-lhe centeio, não muito,
o suficiente para que não se cansasse,
dávamos-lhe água, um dedal,
para que tivesse que recordar o manancial,
abríamos a porta, ligeiramente
para que o céu lhe golpeasse o olho
e fixamos um bocado de espelho na sua gaiola
para que visse directamente a nuvem.
Imóvel permanecia com asas palpitantes.

Nattlig äng, 1949



O VALE

Ninguém te pegou na mão e disse:
aproveita.
Isto é agora.
O vale que vês com águas serpenteantes
com bosques misteriosos e ar suave
com prados e verdes mananciais
este vale tem o nome de Amor.

Ninguém disse:
vê devagar.
Tem cuidado e não caminhes demasiado depressa
nem acredites noutro vale
um maior de que tenhas ouvido falar
não há nenhum outro
não para ti
demora-te
grava cada folha na tua memória.

Ninguém disse:
isto é agora.
É muito.
É suficiente.
Completamente só atravessei o vale correndo
e até que não me dei a volta não compreendi:
esse era o seu aspecto.
Era esse.

Nätet, 1956



Velozes tacões
velozes como a oscilação da saia,
velozes olhos,
velozes anos antes que
os leves seios se façam pesados.

Terrassen, 1960



REPOUSO

Dentro da desgraça tudo é calma, todos passaram de largo,
todas as portas estão fechadas, não se ouve som algum.
Poucos móveis, sem ventilação e escuro
mas repouso,
rosto e corpo contra o duro chão
mas repouso
e um estranho sonho sobre Deus.

Sänk dott ljus, 1963



UM ESPINHO DESCONHECIDO

Um espinho desconhecido cravou-se-me no peito
e ali ficou imóvel enquanto o pássaro bebia
e eu estava imóvel
quase sem dor
enquanto o pássaro mergulhava o seu bico no sangue
e chupava com crescente intensidade
eu não sabia
se estava a esvair-me ou se a converter-me num pássaro.

Klippbok, 1968
 

SAPATOS

Estava ela sentada num tamborete
inclinada sobre os sapatos
provando-os, descartando-os
recordava e esperava
como uma mulher
com muitos amantes
estava sentada entre os seus sapatos
– aqui, os mais cómodos
usados, gastos.
Mas, adquirir uns novos?

Klippbok, 1968


CONVERSAÇÃO

Quarenta anos tinham vivido juntos
e a linguagem ia-se fazendo mais difícil de entender
no princípio tinha sabido algumas palavras
logo se foram contentando com movimentos de cabeça:
cama e comida.
Durante quarenta anos permaneceram assim na sua vida diária.
Os seus rostos foram adquirindo calma, a das pedras.

De quando em vez aparecia um intérprete ocasional:
um gato, um pôr-do-sol extraordinário
Escutavam com clarão de inquietação
tratavam de responder
                                   eram já dois mudos.

Klippbok, 1968



À TERRA

Porquê tanta pressa por chegar à terra?
Por que não por etapas?
    primeiro transformar-se em vaca
    reflexiva, ruminando
    o passado à sombra
reflectindo no olhar tudo o que passa por lá
        (como eu fiz)

   depois um gato
   com as unhas bem recolhidas
       (tal como as minhas)
   suave, com a pupila contraída
   a levar as suas crias com a boca
   logo um rato do campo
   já com o odor a terra no focinho, rápido
   já mais pequeno

   depois um verme
   cheio de terra e lento.

Klippbok, 1968



O ANJO

Na minha estante está um anjinho de madeira
com asas douradas e a auréola como um guarda-chuva.
Ofereceu-mo faz tempo
alguém que acreditava nos anjos
     então eu precisava
de um anjo da guarda (a necessidade não diminuiu).
Teve um duro trabalho.
     Perdeu
uma asa, caiu da estante
num combate com Satanás (não desconhecido por aqui)
e o dourado foi-se descascando.
     Mas a sua obstinação
é tão grande como a de Satanás, ele continua a estar
onde prometeu estar, um anjinho
com uma asa partida e uma auréola como um guarda-chuva.

De fyra flöjtspelarna, 1975



REENCONTRO

Caramba, alegria, puseram-te escondida
como antes se escondiam os loucos na sauna
tinham-te a pão e água
realmente esqueceram-te lá
onde recusavas a escuridão
– bem, agora abriu-se a porta
estás branca como o gérmen do inverno

mas, estás no umbral!

Bortom träden hörs havet, 1980


A RUA

Sempre se vê a mesma senhora na mesma rua
com o guarda-chuva aberto
sob o sol mais esplendoroso
a deslizar sob o beiral tão colada à parede
com grandes botas negras tão apressada quanto pode:
          isso do guarda-chuva
          é bem sensato
          a qualquer momento pode cair qualquer coisa:
          ditos, calúnias
          sinistra morte repentina
          ou simplesmente uns velhotes.

Bortom träden hörs havet, 1980



AS MORTES

Não o entendo
não chegarei nunca a compreende-lo:
a morte individual
a morte de muitos.
Pode-se somar a morte?
Pode o indivíduo sofrer mais mortes do que a sua?
Pode morrer nos seus tendões seus nervos seu sangue
a morte de outro?
É a morte maior porque a partilham muitas pessoas
onde cada um tem a sua?
Pode-se somar o sofrimento?
Não o entendo.
Pode alguém morrer por todos?
Pode Cristo?
Ou é simplesmente algo em que crêem

que lhes dá valentia
aos que estão nos crucifixos?

Bortom träden hörs havet, 1980


A ALEGRIA

Por fim ela tratou de deixar de agradar
a quem não fosse deus ou a morte, ambos muito distantes,
permitiu-se ser o que era
(e como ele dizia)
uma maldita velha.
Pôs-se quase bonita de alívio
mandou às ortigas o cuidado com o cabelo e a roupa
dizia o que lhe apetecia.
Os homens não eram mais do que criancinhas
que alguém tinha parido certa vez,
preocupações sobretudo, e a chupeta de consolo.

Bortom träden hörs havet, 1980



ZONA PRIVADA

Perdoar porque se esquece
acontece como na natureza
onde até o galho mais espinhoso morre
esquecer porque se perdoa
acontece no território de deus
a que poucos têm acesso.

Vattenhjulet, 1986


Versão minha - © Amadeu Baptista





Solveig Von Schoultz nasceu em Borgá, em 1907. Trabalhou como professora no Instituto de Helsínquia. Escreveu poesia e romance e está considerada como uma das melhores escritoras da geração que se segue à grande explosão do modernismo escandinavo. Faleceu em 1996