terça-feira, 9 de julho de 2013

Ólafur Jóhann Sigurdsson



POEMAS DE ÓLAFUR JÓHANN SIGURDSSON


VARIAÇÕES SOBRE UM SONHO DE UM FILÓSOFO CHINÊS

Cri ser uma borboleta num estranho sonho,
vogava entre as flores libando nas suas corolas.
Mas parecia-me divertido e estranho
não ter no sonho as minhas velhas sapatilhas.

Agora que estou desperto neste mundo cinzento
cumpro com o meu trabalho e estou são e contente.
Creio que sou um homem, mas vejo-me às vezes
como uma borboleta dourada que sonha que é um homem.

Ad laufferjum, 1972



ONDE LEVA ESSE CAMINHO?

Onde leva esse caminho
que abris para as máquinas
à largura e ao comprimento
por ermos e povoados?
Onde está o templo das fadas?
Onde a pedra dos anões?
Onde o arroio que rodeava a aldeia?
Onde a fonte de prateadas ervas?

Onde leva esse caminho
que abris para as máquinas?
Onde estão os ninhos do pântano?
Onde está a saxifraga e o junco?
Por que não se ouvem já
a narceja nem o maçarico?
Por que não emite já os seus gritos
o bico vermelho do tringa tonatus?

Onde leva esse caminho
que abris para as máquinas?
Onde o silêncio e a tranquilidade
que te ensinaram sonhos e anseios?
Onde o rumor calado das bétulas?
Onde o sopro do ar entre as flores?
Onde está a espumante catarata
que te ensinou a cantar?

Com o pó da gravilha
com o barulho dos aços e das rodas
nas tuas entranhas vivas
chegou a insanidade.
Onde leva esse caminho
que abris para as máquinas
à largura e ao comprimento
por ermos e povoados?


N. do A. Tringa Tonatus: maçarico de perna vermelha.

Ad brunnum, 1974



RECORDAS AQUELE POÇO

Recordas aquele poço mais profundo que nenhum.
Em fragmentos confusos conserva-se ainda em ti
e só se completa se a dor e o perigo
nidificam no teu peito. Mais profundo do que os outros

guiava-te como se em transe pelo céu e o mundo,
a gigantesca abóbada, a terra, as plantas e os animais.
A luz diurna, o frio e a silenciosa obscuridade
lias no seu fundo. O sol e as estrelas,
unidade do rio escuro da terra e da noite:
nada podia roubar-te a paz do fundo poço.
Paterna protecção na treva, ternura maternal,
suavidade e quietação, embora a vida dura,

brotam ainda das suas ondas quando te ferem
se o teu refúgio no instante incerto
está ainda no poço mais profundo que nenhum.

Ad brunnum, 1974



NOSTALGIA

Além das casas, fora da cidade,
olha ainda as montanhas,
os caminhos obscuros que costumas percorrer.
Além dos montes
escutas o cair das folhas
das altas sorveiras na margem da corrente.

Ad brunnum, 1974



A PROCURA

Procuraste muito tempo
a fonte fresca e clara
o poço rumoroso
na sua espera prateada.

Voaram para o sul os pássaros ontem à noite
enchendo a treva com o seu bater de asas.
Hoje o prado é geada
e o páramo está vermelho.

Ainda não encontraste o poço
nem encontraste a fonte.
A tua procura passada
é uma foto amarelecida.

Sobre o teu pensamento plana a tristeza
procuras inutilmente?
Gelam os teus cabelos
mas há que seguir em frente:

As águas são mais claras
nos outonos frios
e é mais fresca a fonte
que mana sob o gelo.

Ai. se acaso existisse o poço reluzente
beberias sem descanso.

Ad brunnum, 1974





NA PONTE

Inundada na primavera.
E a água chama o sonho
que abre no teu peito um canal
em que ressoar.

Calado, sobre a ponte
contemplas a corrente
e pensas naquilo
que uma vez existiu.

Ad brunnum, 1974



CANTO DO PÁSSARO

Até onde penetras o meu pensamento
quando o orvalho escarcha na erva?

Sabes onde voo
quando estiolam os meus bosques?

Não, deixa já de me chamar
teu amigo, o pássaro cantor.

Virki og vötn, 1978



A BARCA

A barca abandonada balança na baía.
A minha cana está presa à última tábua
e a tua na proa, querido companheiro.

A barca abandonada! Mas no meu dormitar
lembro que o meu amigo descansa há tempo
no horto calado de que já não regressa.

Por que já não me vejo a mim mesmo na barca
jovem e esperançoso a manejar a cana?
Por que vejo apenas uma imagem turva

a perder-se no crepúsculo? Porque a barca escapa
para fora da baía, ainda que reine a calma.
Dobrando o promontório vai para a noite… e ao fundo.

Virki og vötn, 1978



O MENINO

Não te assusta o ranger nem o silvar quotidino
do aço afiado, das balas certeiras.

Nem tão pouco entendes os gritos das cidades
assaltadas por tropas que invadem a sangue e fogo.

Pois as flores do campo envolvem-te nos seus braços,
a luz da primavera oferece-te a sua promessa.
Protegem-te a erva e os sonhos inocentes
e essa protecção é poderosa e total.

Virki og vötn, 1978


Versão minha - © Amadeu Baptista





Ólafur Jóhann Sigurdsson. Nasceu em 1918 e faleceu em 1988. Publicou cinco livros de poesia, tendo sido dois deles premiados com o Prémio de Literatura do Conselho Nórdico, em 1976. Usou a métrica tradicional para cantar com doloroso sentimento a natureza virgem islandesa. Escreveu também alguns romances realistas.

1 comentário:

  1. Belíssimos e tocantes poemas. Sim, dolorosos até. Obrigado por esse belo trabalho de tradução desses poemas.

    ResponderEliminar