sábado, 30 de abril de 2011

A Poesia e a Liberdade




Mais informações:
Biblioteca-Museu República e Resistência
Rua Alberto de Sousa, 10-A 1600-002 Lisboa

Os livros dos meus amigos meus amigos são


Henrique Manuel Bento Fialho, A Dança das Feridas, S/l, Edição do A., 2011


Nuno Dempster, K3, Lisboa, & Etc, 2011



António Ferra, Marias Pardas, Lisboa, & Etc, 2011



Rosa Alice Branco, Gado do Senhor, Lisboa, & Etc, 2011



sexta-feira, 29 de abril de 2011

A Construção de Nínive, 2001



A CONSTRUÇÃO DE NÍNIVE

Toca-me o sangue. Peço-te que me toques
o sangue. Escuta este rumor
dentro do meu peito, esta palavra enlaçada
a uma pedra que arde dentro da terra.

Toca-me o sangue. Ordeno que me toques
o sangue. Este rio que corre nos meus olhos,
a música silenciosa que o mar vem entregar
quando os homens regressam do crepúsculo.

Vê como estou vivo. Vê como sabem a terra
as minhas palavras. Vê como tenho ensanguentadas
as minhas palavras perdidas, esses barcos
que a tempestade teme e as aves anunciam.

Amo-te. Toca-me o sangue. Sente que venho
da noite, que é com angústia que chamo
pelo teu nome, sonho os teus sonhos,
espero as tuas mãos.

Toca-me o sangue. Toca os fios de dor
que me rasgam a boca. Toca o fogo dos meus cabelos.
Toca-me o sangue, a escuridão
em chamas do meu peito.

Sou o que espera na noite. Sou o que chora
na sombra. Sou o que espera a tua passagem
silenciosa, os teus quadris ardentes
navegando na noite impassível.

Espero-te. Espero-te. Um perfume ergue-se
das tuas mãos, um punhal. Toca-me o sangue.
Sou o que espera na solidão inquieta
e toma a luz pela luz dos teus cabelos.

Espero um rio, é uma praia que espero, o azul
penetrante da tua tristeza secreta, esse bosque
rugindo um nome e precipitando a fuga
dos que temem e estão intranquilos.

Toca-me o sangue. Toca o arco de fogo
que cai das minhas mãos, as sílabas perdidas na treva
por que uma criança cresce para o sono
e toca a limpidez de uma lágrima.

A vida vem com a brisa. Um astro
aproxima-se do teu rosto. Uma canção desprende-se
da árvore de espuma que a sombra engendra.
Toca-me o sangue. O febril sangue do meu peito.

Amo-te, mulher desconhecida. Amo-te.
Amo o jorro de luz da tua boca,
as tuas cálidas palavras, a orla secreta
dos teus lábios onde o mar vem beber.

Amo o lume inesperado dos teus olhos, o teu corpo
nervoso, as tuas mãos perdidas no vazio.
Amo as caladas cintilações da tua boca,
a pequena mancha de tule que dança nos teus olhos.

Como a luminosidade descobre uma sandália na areia,
o sinal recente de um beijo no contorno de um rosto,
como um coração de pedra arde dentro da pedra
e uma nuvem transfigura para sempre o horizonte, amo-te.

Toca-me o sangue porque te amo. Toca-me o sangue
porque trago comigo uma palavra sagrada. Porque estou
inocente. Porque te amo. E uma ponta de luz
entrega a claridade invisível dos teus dedos.

Um rumor de água ou de lume vem das tuas mãos.
Pulsa nas veias da noite o vento do teu nome.
Um pássaro queima a tristeza inextinguível.
Um grito, um grito rebenta finalmente no meu e no teu peito.

(in A Construção de Nínive, Porto, Edições Mortas, 2001)

quinta-feira, 28 de abril de 2011

José Marmelo e Silva


Informações detalhadas em http://www.josemarmeloesilva.com/

Viagens Alheias / 2





Álbum de Acenos, 2001 (Organização de Antologia)


A Antologia 'Álbum de Acenos Antologia de Fotografia e Poesia sobre o Concelho de Almada', que dirigi literariamente, foi uma das inúmeras realizações da Comissão Organizadora do Projecto ImaginArte, de Almada, tendo integrado a colaboração de fotógrafos (Alberto Oliveira, Francisco Dores Alves, Franklin Castanheira, José Barata, José Luís Guimarães, Luís Miranda, Nuno Pinheiro e Rosa Reis) e poetas (Amadeu Baptista, Carlos Poças Falcão Daniel Maia-Pinto Rodrigues, Inês Lourenço, Jorge Velhote, José Alberto Mar, José Emílio-Nelson, José Jorge Letria, Luís Adriano Carlos e valter hugo mãe).


Dois dos poemas com que colaborei nesta Antologia:



Atira-te ao rio e dou-te uma maçã.
Não tenhas medo, a água está tranquila.
Traz esse pau para construir um barco,
quero comandar esse navio.
Onde ele for, havemos de ir também.
Este boné afirma o meu poder.
Ainda um dia hei-de conseguir
nadar até à outra margem.
Ir e voltar será o maior triunfo.
Não sei de que te queixas.
Não está frio, corre no rosto
esta brisa amena, não tarda muito
o peixe vai picar. Ah, deus queira
que a vida venha sempre ao nosso encontro
e eu e tu sejamos marinheiros.

*

Lidamos com as palavras mais difíceis,
amianto, aço, acetileno.
E quando voltamos para casa
não voltamos, ficamos ou partimos
com o navio que aqui aparelhamos.
Um dos nossos pulmões vai pelos mares
para nunca mais voltar da rota do petróleo.
E só o olhar nos acompanha
de regresso ao repouso, ou a esta máscara
onde nenhum de nós é o seu próprio rosto.
Valer-nos-á talvez esta tristeza
de timidamente esboçarmos um aceno
a quem nos vê ao longe e fotografa.
Que ao menos esse gesto patenteie
o duro fardo com que nos castigam.


(in Vários, Álbum de Acenos Antologia de Fotografia e Poesia sobre o Concelho de Almada, direcção literária, organização, selecção e notas de Amadeu Baptista, Almada, ImaginArte Almada, 2001)

Quanta Terra!!!, 2001 (Organização de Antologia)


Em 2001, a propósito da exposição 'Vilanova Artigas, Arquitecto', realizada na Casa da Cerca - Centro de Arte Contemporânea, em Almada, organizei a Antologia 'Quanta Terra!!! Poesia e Prosa Brasileira Contemporânea'. Autores representados: Alexei Bueno, Affonso Romano de Sant'Anna, Iacyr Anderson de Freitas, Lêdo Ivo, Renata Pallottini, Vera Lúcia Olivira (poesia) e Fernando Fábio Fiorense (prosa).

Dessa Antologia, um poema de Renata Pallottini:



UM GALO A ASCLÉPIO

            Eu devo
um galo
            a Asclépio

Não vos esqueçais disso
não vos perturbeis com a minha agonia

            Eu devo
            um galo
            a Asclépio

As dívidas devem ser pagas
a prestação de contas é inevitável

Crescerá a grama sobre o meu túmulo
não mais terei noites de insónia
meus pés estarão ficando frios
minha cabeça será um vulcão de dúvidas
a vida não se encerra sem todos os acertos
lembrai-vos sempre das palavras de um velho
lembrai-vos sempre do momento que antecedeu
a minha agonia

            Eu devo
            um galo
            a Asclépio

Essa dívida é única
e infinita


Renata Pallottini nasceu em São Paulo, a 20 de janeiro de 1931. Cursou Direito, Filosofia e Dramaturgia; escreveu e produziu trabalhos para teatro e televisão. Publicou, entre outros, os livros: A Casa, São Paulo, 1958; Coração Americano, São Paulo, 1976; Chão de palavras, São Paulo, 1977; Noite Afora, São Paulo, 1978; e Obra Poética, 1995.

(in Vários, Quanta Terra!!! Poesia e Prosa Brasileira Contemporânea, organização, selecção e notas de Amadeu Baptista, Almada, Casa da Cerca, 2001)



quarta-feira, 27 de abril de 2011

UM POEMA CHINÊS



SUNG TONG-PO (1036-1101)


UM DESEJO PARA O MEU FILHO

Todos queremos ter um filho inteligente.
Contudo, a inteligência me fez perder a vida.
Agora quero um filho ignorante e estúpido.
Sem dificuldades chegará a ministro.


(recolhido em  Lêdo Ivo, Confissões de um Poeta, 4.ª edição, Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letrras e Topbooks, 2004)

Viagens Alheias / 1



A Noite Ismaelita, 2000


fragmento inicial de:

HAJJ

Conhecemos essa aparente inutilidade das mãos, o cão que as persegue
com o mistério da inutilidade, a mancha azul do sangue fechando-se tenazmente, como se já não houvesse ar
ou o frio invadisse a derradeira ilha, a derradeira cidade.
E houve quem se prestasse a tudo desconhecer, o brilho escuro dos fugitivos, os olhos em que as ciladas foram edificadas sob o peso irradiante dos piores pesadelos,
a pior amargura, a mais sublime dor disseminada pelas têmporas.
E o silêncio conquistou as sílabas silenciosas dos homens, as mais duras,
as que uma mãe quer perdurar no ouvido dos filhos, mar, pedra, perigo,
os sinais aterradores, e pararam, uma outra vez pararam onde a clausura
permanece. E eis aqui os privilégios do cárcere, alguns cigarros, uma mínima porção de serenidade,
um ou outro favor dos vigilantes, o encontro surpreendente
com o próximo amante, desconhecido. E prenderam-se à leitura, preferiram
as palavras sacramentais, as que não excluem, as que prometem
uma segunda hipótese de inutilidade, salvação, salvação, enquanto
os gritos das vítimas continuam esse alinhamento misterioso do silêncio, solidão,
a aspereza da terra humilhada até à quinta geração. Vemos as mãos
e vemos um corpo em chamas, o poder do grito, a dor intemporal, eterna,
entre as vedações onde as crianças imploram uma sopa inapreensível. E os afogados
voltam os olhos cegos para as entranhas do mundo, um fio
de sangue risca a lívida face do silêncio, a que sempre perdemos, a que golpearam, a que nenhuma invocação
ressuscitará da claridade abrangente, o olhar uma outra vez cego,
ou negro, ou parado sobre a alarmante facilidade  com que o crime é consumado.
E erguem-se os que é impossível ver erguidos, e tomam a direcção das aves
pela materialização do destino, eh pássaro, contigo arrisco o voo
para a denegação, a sétima alegria, a vigésima intolerância, o fogo
centenário que insuspeitamente descobrimos quando forjamos a lâmina
ou recebemos os golpes, a mediação inefável. E as cabeças
voltavam-se, era essa a perfeição das cabeças, surpreender a ruína,
o rastro por que a cicatriz impõe a terrível presença, o vaticínio de um novo exorcismo,
ainda outra maldição, essa velocíssima vertigem, armadilha, arrogância, inutilidade.
E escusaram-se as dúvidas e as respostas, e escreveram
o privilégio de uma aviltada beleza, e despedem uma rara violência
na voz, como se subscrevessem a brutalidade setenta e sete vezes, um feixe
de páginas circunscritas ao esquecimento. E o que é nosso foi deixado no caminho calcinado, calemo-nos,
somos esta cruz de carne extraordinariamente violenta, semeado
o pânico entre os subúrbios os guerrilheiros avançaram até ao coração do combate,
vitoriam os velhos lugares da parcimónia e do medo. E depararam
com o perfil desconhecido do destino, como é impaciente esse discurso em que a palavra se repete, não, não, não.

(in A Noite Ismaelita, Guimarães, Pedra Formosa, 2000)

terça-feira, 26 de abril de 2011

95.º Aniversário da Morte de Mário de Sá-Carneiro


UM POEMA DE MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO


DISPERSÃO


Perdi-me dentro de mim 
Porque eu era labirinto 
E hoje, quando me sinto.
É com saudades de mim.
 

Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...
 

Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.
 

(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:
 

Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza, 
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família).
 

O pobre moço das ânsias...
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que me abismaste nas ânsias.
 

A grande ave doirada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.
 

Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante 
Que se traiu a si mesmo.
 

Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que protejo:
Se me olho a um espelho, erro -
Não me acho no que projeto.
 

Regresso dentro de mim
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.
 

Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.
 

Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi... Mas recordo
 

A sua boca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada.
 

(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei. 
Ai, como eu tenho saudades 
Dos sonhos que sonhei!... )
 

E sinto que a minha morte -
Minha dispersão total -
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.
 

Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.
 

Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas...
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas...
 

Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas pra se dar...
Ninguém mas quis apertar...
Tristes mãos longas e lindas...
 

Eu tenho pena de mim,
Pobre menino ideal...
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!...
 

Desceu-me n'alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.
 


Álcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente 
A difundir-me dormente 
Em uma bruma outonal.
 

Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço...
A hora foge vivida
Eu sigo-a, mas permaneço...


Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba...


Paris - Maio de 1913.
Mário de Sá-Carneiro
Poemas Completos, Edição Fernando Cabral Martins, Assírio & Alvim, 2001


Mário de Sá-Carneiro nasceu no dia 19 de Maio de 1890 em Lisboa. Tendo perdido a mãe muito cedo, e estando o pai ausente, foi viver com os avós para uma quinta em Camarate. Aí começou a desenvolver uma sensibilidade complexa, atraída pelo mistério e pelo medo. Aos 9 anos morreu-lhe a avó, tendo ficado a cargo do avô. Começou a escrever pequenas peças de teatro e as primeiras poesias. Fascinado por temas como a loucura e o suicídio, a sua primeira peça, Amizade (publicada em 1912), escrita de parceria com Tomás Cabreira Júnior, ficou marcada pelo suicídio deste no dia 9 de Janeiro de 1911, com um tiro de pistola na cabeça, no pátio do Liceu de S. Domingos. Entretanto, Sá-Carneiro foi dando à estampa algumas novelas e o seu primeiro livro de poemas: Dispersão (1914). Muito se tem escrito sobre as obsessões literárias do poeta: loucura, suicídio, um certo kitsch, narcisismo, homossexualismo velado, delírio, etc. Mário de Sá-Carneiro passou os últimos anos da sua vida entre Lisboa e Paris, levando uma vida de boémia. Suicidou-se a 26 de Abril de 1916.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

25 de Abril, sempre!!!

Incorporado a 24 de Abril de 1974 no RI7, o 25 de Abril chegou como clara madrugada.



25 de Abril, sempre!!!

domingo, 24 de abril de 2011

Caçador de Tempestades / 1



A Sombra Iluminada, 2000


(imagem da capa indisponível)

Dois poemas de A Sombra Iluminada:

Toma do ar o fogo e bebe-o lentamente.
Há-de esse ardor inundar-te para sempre
porque além do canavial alguém proclama
que não é mais que fogo o ar que tu respiras.
A essa incandescência entrega o barro.
O que sair das mãos é tão sagrado
como o sopro que um dia te deu vida
e enviou para uma despedida
tão triste como é agora o teu olhar.
Enche os pulmões, aspira a tua dor.
Deus há-de reencontrar-te face a face
para que a sarça amplie sobre a noite
a luz dos elementos que respiras.
O ar, o fogo, a terra, a água exausta.

*
Um ângulo converge para o sortilégio
com que dulcificas o coração da urze.
Há doces rumos sob os teus cabelos.
Acenas e consentes que o anjo invoque
a pedra que nos une sob as águas.
De novo falas uma língua estranha.
Adere à pele a luz que vem da noite
e dá um nome limpo ao brilho do desejo.
Fosfeno e prata elevam-se nos ares
e adivinhas o mais secreto laço
que une os tempos sobre a praia amena.
  Be my stranger.  – , dizes. E o arco solta
um clarão invisível sobre as casas
que aguardam apenas o estremecimento
para que algo inviolável se inicie.
Esta é a tua casa, a curva de onde lanças
algumas das palavras preferidas
ao caudal da vertigem onde te perdes
para que algo absoluto ressuscite
desse fruto macio.
Eleva as mãos e canta. Eis o caminho.

(in Vários, Douro: Um Percurso de Segredos... S/l, Instituto de Navegabilidade do Douro/ Campo das Letras, 2000)

As Tentações, 1999


Sabemos o que existe. Não sabemos
o que existe. Nem sequer sabemos
alguma vez de nós no frémito do sonhos
onde vivemos e perdemos a vida.

Nenhuma sombra (a luz) nos conduz
à existência,
sequer com a existência celebramos o encontro,
e tudo o mais são sombras violentas.

Violento é o ar que respiramos,
sofregamente respiramos a existência,
desde que nascemos e sabemos o que existe.

Não sabemos o que existe. Nem sequer
sabemos que nome alastra na grandeza
de estarmos vivos e irmos para o mar
perscrutar a existência
com as mão rendidas
ao mar intrépido da nossa ignorância.

Sabemos o que existe. Não sabemos.

(in As Tentações, Santarém, Edição 'O Mirante', 1999

sábado, 23 de abril de 2011

Arte do Regresso, 1999


[Poema 16 do capítulo Cúmplices]
 
A fotografia antiga captou
duas personagens que nos fitam atónitas
e uma rapariguinha
preocupada com o destino da Samoa Ocidental,
sua primeira terra.
Num leve movimento de sombra
a rapariguinha pode surpreender-nos
e de repente crescer e perguntar
onde começa e acaba a peregrinação.
Porque lhe respondemos invariavelmente
que a nossa vida é a Samoa Ocidental
ela pode sorrir pela primeira vez
na fotografia
e escrever connosco um poema
sobre a Samoa Ocidental.
No âmbito do poema
e da fotografia
a Samoa Ocidental
é a cumplicidade
com que a rapariguinha sorri
e connosco regressa à Samoa Ocidental,
seu último refúgio
no subtil estremecimento da fotografia.
 
 
[Poema 16 do capítulo O Centro do Mundo]
 
Não leves nenhum desespero para casa.
Os que sofrem hoje
não são os que sofrerão amanhã.
Os que imploram hoje
não são os que implorarão amanhã.
A medida de todas as coisas
é como a mulher que chora no centro do mundo.
Chora para constatar que está viva.
Serve-te de um copo de leite.
Vê como é branco.
Constata como é puro.
Observa como só até um preciso momento
é útil e fruível,
Qualquer pergunta que possas fazer sobre ti
terá sempre uma única resposta
dentro de ti.
És como o leite,
puro e fruível
até ao preciso momento em que se ferve
ou azeda.
 
 
[Poema 16 do capítulo Carta de Atenas]
 
Há uma cidade sem mar em que procuro uma praia.
Os homens chegam. Não despertaram as casas
e já tomo nos braços o meu vazio. Eles dizem:
  “ Procurámos a sombra de uma mulher.”

Durante toda a manhã as portas franqueadas
deixaram entrar toda a espécie de gente.
Na multidão um vagabundo chama o meu nome.
Não sei que responda. Passou demasiado tempo.

Os exércitos arrebataram o triunfo.
Amontoaram os cadáveres no silêncio.
Pela minha vigília o pesadelo alastra.
Há demasiado sangue nestes epitáfios.

Pouco tenho a dizer.
O eco subverte o clarão no horizonte
quando a pira está pronta para o sacrifício.
A inquietação é agora a minha alma.

Em nome da beleza a praia não existe.
A sombra procurada é só uma miragem.
O auriga avança no firmamento.
Pelo meu nome a cinza é um ser vivente.

(in Arte do Regresso, Porto, Campo das Letras, 1999)

Ao primeiro capítulo deste livro, Cúmplices, foi atribuído o Prémio Pedro Mir, na categoria de Língua Portuguesa, promovido pela revista Plural, da Cidade do México, em 1993.

Desenho de Luzes, 1997


CARAVAGGIO, UM ESBOÇO

Eu sei, há uma diferença indizível entre o que ergo
na luz das minhas telas e a vida, sob o fulgor
do anjo a transfiguração é mais surpreendente,
embora deste lado seja ainda mais sombrio
tudo o que dói, o coração,
o que deseja o corpo e o corpo impõe,
os sobressaltos do mar, o olhar
tão infinitamente cansado sobre as coisas. Mas o que faço,
Jerusaleme, é apenas seguir a intuição
de que alguma grandeza há nesta aventura,
uma dor insuportável por mais suportável que pareça,
um grito entre uma escolha e outra,
com a nítida certeza de que a um outro inferno
corresponde esta sombra sublime, este vermelho
brutal a que uma papoila moída deu lugar.
Neste lado do mundo pouco espero,
ou só aguardo um tempo em que do génio
possa subtrair outra palavra para poder ampliar
a noite com uma outra emboscada, um outro golpe
sobre o que advém da eternidade e se consuma enfim
na prega de um vestido, uma janela aberta, o intenso vigor
de um homem que passa carregado de pão e de tristeza.
Por isso, quando passo entre os esconsos lugares da minha vida
bem pouco mais do que ruínas me sitiam
na extenuação de que venho e de que sou,
embora haja ainda um sorriso a iluminar-me a face.
Depois de mim virá quem diga que a tristeza
dura sempre e sei que é no espírito
que um homem se absolve ou se condena
pelas acções que ousa, independentemente
de uma maior porção de negro na brancura
ou o brilho obscuro de um punhal. Ainda assim, Jerusaleme,
nessa lacuna esplêndida, nesse intervalo
entre o que pertence à treva e o sangue corrobora,
algo divino irá permanecer, maior que uma chama
que se extingue ou menor que uma cor
que se não sabe explicar. Desse mistério sou.
E nenhum outro nome hei-de inscrever
no ramo desta árvore que as aves invadiram
porque me nego a acreditar que não seja dessa árvore
a minha própria sombra e dessas aves
o sortilégio que alastra nos meus olhos
e abre o meu olhar à eternidade. Volúveis
e precários, ao acaso da vida nos entregam.
E bem maior que nós é o medo de aqui estarmos
ungidos por uma força que um fumo estabelece
sobre as nossas cabeças. Mas esse fumo é
sinal de uma fogueira que pertence a uma estrela
que é nossa testemunha e pode confirmar
quem somos e não somos nesta casa
e quantas dúvidas dissipam e concentram
as dúvidas de que a alma se reveste
para que a obra nasça e o enigma
reproduza além de nós um outro enigma.
Eu creio-me imortal, Jerusaleme. Por mais silêncio
que venha sobre mim e mais vazio se concentre
sobre as mãos que abandono à lassidão do mundo,
por miserável que seja o destemido amor
que sofregamente procuro entre o comércio de um moeda e outra,
perduro no que faço e perdurando venço
quem quer que se proponha assassinar
esta firme presença no universo, roubando tudo
a que um cadáver não mais é do que sagrado,
entre filhos e pátria e amor e ofício,
e tudo o que sempre está predestinado
aos predadores abutres da carniça humana.
A arte louvo, por tão difícil arte
ser o seu exercício entre os que redimem
a salvação por que jamais nos salvaremos.
E dessa arte eu sei que chegará,
mais do que a ressurreição dos mortos e dos vivos,
uma outra harmonia sobre o que deslumbra
e irrompe entre nós em benefício
de nos encontrarmos a sós perante o firmamento
e nessa solidão experimentarmos
o êxtase e a vertigem. Esse in anima,
Jerusaleme. Nunca nada, jamais,
foi impossível àqueles que acreditam
e que amam.

(in Desenho de Luzes, Corunha, Amigos de Azertyuiop, 1997)

A Luz da água

O Sossego da Luz, 1989


[Quatro fragmentos do capítulo Metamorfose e Catástrofe]


Os dedos demoram-se na sombra.

Suspendem-se no sangue poeiras germinantes, turvos
fluidos, fios translúcidos de sal e deslumbramento
que detêm o silêncio e estancam a luz.

Desvenda o coração o que o coração oculta.


*


O destino aniquila, propaga-se como um grito, no pranto esconde o pó da memória, a mão solitária, hóspede de uma ácida amargura, o rosto ungido pelo medo.

Às vezes sente-se morrer, esconde-se na amplidão da terra, a subtileza de um gesto que irrompe da pedra e assombra a manhã.

O mar recebe, os olhos sequestrados por um olhar mais cúmplice.


*


A sombra revela o significado oculto desse ritual
que o fogo
acumula no obscuro sinal de uma ruína sem nome.

Chamam-lhe escrita, outros preferem nomeá-la
como infinito
exercício de adivinhação, dizem-na outros arte,
enigma redentor a que se entregam os que crescem
para o abismo e perturbam as trevas.

Recompensa ou castigo, eis o que obstina.


*


Por essas horas as mulheres arrastam pelas praias
o espesso
manto da escuridão, convocam os mortos
às encruzilhadas,
libertam trémulas luzes de obscuros papéis e sombras calcinadas.

Corre implacável o curso da impaciência
sob a ofendida
serenidade do poema.


(in O Sossego da Luz, Porto, Limiar, 1989)