terça-feira, 26 de abril de 2011

95.º Aniversário da Morte de Mário de Sá-Carneiro


UM POEMA DE MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO


DISPERSÃO


Perdi-me dentro de mim 
Porque eu era labirinto 
E hoje, quando me sinto.
É com saudades de mim.
 

Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...
 

Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.
 

(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:
 

Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza, 
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família).
 

O pobre moço das ânsias...
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que me abismaste nas ânsias.
 

A grande ave doirada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.
 

Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante 
Que se traiu a si mesmo.
 

Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que protejo:
Se me olho a um espelho, erro -
Não me acho no que projeto.
 

Regresso dentro de mim
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.
 

Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.
 

Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi... Mas recordo
 

A sua boca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada.
 

(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei. 
Ai, como eu tenho saudades 
Dos sonhos que sonhei!... )
 

E sinto que a minha morte -
Minha dispersão total -
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.
 

Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.
 

Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas...
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas...
 

Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas pra se dar...
Ninguém mas quis apertar...
Tristes mãos longas e lindas...
 

Eu tenho pena de mim,
Pobre menino ideal...
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!...
 

Desceu-me n'alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.
 


Álcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente 
A difundir-me dormente 
Em uma bruma outonal.
 

Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço...
A hora foge vivida
Eu sigo-a, mas permaneço...


Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba...


Paris - Maio de 1913.
Mário de Sá-Carneiro
Poemas Completos, Edição Fernando Cabral Martins, Assírio & Alvim, 2001


Mário de Sá-Carneiro nasceu no dia 19 de Maio de 1890 em Lisboa. Tendo perdido a mãe muito cedo, e estando o pai ausente, foi viver com os avós para uma quinta em Camarate. Aí começou a desenvolver uma sensibilidade complexa, atraída pelo mistério e pelo medo. Aos 9 anos morreu-lhe a avó, tendo ficado a cargo do avô. Começou a escrever pequenas peças de teatro e as primeiras poesias. Fascinado por temas como a loucura e o suicídio, a sua primeira peça, Amizade (publicada em 1912), escrita de parceria com Tomás Cabreira Júnior, ficou marcada pelo suicídio deste no dia 9 de Janeiro de 1911, com um tiro de pistola na cabeça, no pátio do Liceu de S. Domingos. Entretanto, Sá-Carneiro foi dando à estampa algumas novelas e o seu primeiro livro de poemas: Dispersão (1914). Muito se tem escrito sobre as obsessões literárias do poeta: loucura, suicídio, um certo kitsch, narcisismo, homossexualismo velado, delírio, etc. Mário de Sá-Carneiro passou os últimos anos da sua vida entre Lisboa e Paris, levando uma vida de boémia. Suicidou-se a 26 de Abril de 1916.

Sem comentários:

Enviar um comentário