sábado, 23 de abril de 2011

O Sossego da Luz, 1989


[Quatro fragmentos do capítulo Metamorfose e Catástrofe]


Os dedos demoram-se na sombra.

Suspendem-se no sangue poeiras germinantes, turvos
fluidos, fios translúcidos de sal e deslumbramento
que detêm o silêncio e estancam a luz.

Desvenda o coração o que o coração oculta.


*


O destino aniquila, propaga-se como um grito, no pranto esconde o pó da memória, a mão solitária, hóspede de uma ácida amargura, o rosto ungido pelo medo.

Às vezes sente-se morrer, esconde-se na amplidão da terra, a subtileza de um gesto que irrompe da pedra e assombra a manhã.

O mar recebe, os olhos sequestrados por um olhar mais cúmplice.


*


A sombra revela o significado oculto desse ritual
que o fogo
acumula no obscuro sinal de uma ruína sem nome.

Chamam-lhe escrita, outros preferem nomeá-la
como infinito
exercício de adivinhação, dizem-na outros arte,
enigma redentor a que se entregam os que crescem
para o abismo e perturbam as trevas.

Recompensa ou castigo, eis o que obstina.


*


Por essas horas as mulheres arrastam pelas praias
o espesso
manto da escuridão, convocam os mortos
às encruzilhadas,
libertam trémulas luzes de obscuros papéis e sombras calcinadas.

Corre implacável o curso da impaciência
sob a ofendida
serenidade do poema.


(in O Sossego da Luz, Porto, Limiar, 1989)

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