sábado, 23 de abril de 2011

Arte do Regresso, 1999


[Poema 16 do capítulo Cúmplices]
 
A fotografia antiga captou
duas personagens que nos fitam atónitas
e uma rapariguinha
preocupada com o destino da Samoa Ocidental,
sua primeira terra.
Num leve movimento de sombra
a rapariguinha pode surpreender-nos
e de repente crescer e perguntar
onde começa e acaba a peregrinação.
Porque lhe respondemos invariavelmente
que a nossa vida é a Samoa Ocidental
ela pode sorrir pela primeira vez
na fotografia
e escrever connosco um poema
sobre a Samoa Ocidental.
No âmbito do poema
e da fotografia
a Samoa Ocidental
é a cumplicidade
com que a rapariguinha sorri
e connosco regressa à Samoa Ocidental,
seu último refúgio
no subtil estremecimento da fotografia.
 
 
[Poema 16 do capítulo O Centro do Mundo]
 
Não leves nenhum desespero para casa.
Os que sofrem hoje
não são os que sofrerão amanhã.
Os que imploram hoje
não são os que implorarão amanhã.
A medida de todas as coisas
é como a mulher que chora no centro do mundo.
Chora para constatar que está viva.
Serve-te de um copo de leite.
Vê como é branco.
Constata como é puro.
Observa como só até um preciso momento
é útil e fruível,
Qualquer pergunta que possas fazer sobre ti
terá sempre uma única resposta
dentro de ti.
És como o leite,
puro e fruível
até ao preciso momento em que se ferve
ou azeda.
 
 
[Poema 16 do capítulo Carta de Atenas]
 
Há uma cidade sem mar em que procuro uma praia.
Os homens chegam. Não despertaram as casas
e já tomo nos braços o meu vazio. Eles dizem:
  “ Procurámos a sombra de uma mulher.”

Durante toda a manhã as portas franqueadas
deixaram entrar toda a espécie de gente.
Na multidão um vagabundo chama o meu nome.
Não sei que responda. Passou demasiado tempo.

Os exércitos arrebataram o triunfo.
Amontoaram os cadáveres no silêncio.
Pela minha vigília o pesadelo alastra.
Há demasiado sangue nestes epitáfios.

Pouco tenho a dizer.
O eco subverte o clarão no horizonte
quando a pira está pronta para o sacrifício.
A inquietação é agora a minha alma.

Em nome da beleza a praia não existe.
A sombra procurada é só uma miragem.
O auriga avança no firmamento.
Pelo meu nome a cinza é um ser vivente.

(in Arte do Regresso, Porto, Campo das Letras, 1999)

Ao primeiro capítulo deste livro, Cúmplices, foi atribuído o Prémio Pedro Mir, na categoria de Língua Portuguesa, promovido pela revista Plural, da Cidade do México, em 1993.

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