sexta-feira, 22 de abril de 2011

Maçã, 1986


     Toco esta flauta desde que me conheço e desde que me conheço a toco junto ao mar, é possível que ali eu procure um dos meus antepassados, creio mesmo que foi à beira do mar que reconheceram fascinados que se encontravam nus, o mar representa muito para mim nesta incumbência que tenho de tocar esta flauta junto ao mar, a origem de alguma coisa está ali escondida, quando o mar se resolver a falar vamos saber perguntar convenientemente, o meu reino, o meu reino por uma canção do mar, os segredos submersos nesta tranquilidade poderiam definitivamente dar-nos o nome de que sempre precisamos.

    Toco esta flauta desde que me conheço, minha mãe doou-ma em nome da sua humilde memória, a memória de quase ninguém, passou pela vida provando-lhe todos os ferros, todas as decepções, sobrevivendo anos a fio com os joelhos rasgados pelas pedras que lhe foram destinadas, ela própria uma vítima mais do desencanto, a cal agasalhando-a na planície última que o destino lhe deixou para que pudesse agora repousar.

    Toco esta flauta desde que me conheço e hei-de se puder doá-la aos que tiver por meus, esta flauta de osso que minha mãe me doou, levei para a beira do mar com as minhas mais profundas preocupações, esta flauta de osso que ninguém quebrará, feita de um osso implacavelmente duro de roer.

(in Maçã, Porto, Limiar, 1986)

Prémio José Silvério de Andrade - Foz Côa Cultural, 1985

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