CARAVAGGIO, UM ESBOÇO
Eu sei, há uma diferença indizível entre o que ergo
na luz das minhas telas e a vida, sob o fulgor
do anjo a transfiguração é mais surpreendente,
embora deste lado seja ainda mais sombrio
tudo o que dói, o coração,
o que deseja o corpo e o corpo impõe,
os sobressaltos do mar, o olhar
tão infinitamente cansado sobre as coisas. Mas o que faço,
Jerusaleme, é apenas seguir a intuição
de que alguma grandeza há nesta aventura,
uma dor insuportável por mais suportável que pareça,
um grito entre uma escolha e outra,
com a nítida certeza de que a um outro inferno
corresponde esta sombra sublime, este vermelho
brutal a que uma papoila moída deu lugar.
Neste lado do mundo pouco espero,
ou só aguardo um tempo em que do génio
possa subtrair outra palavra para poder ampliar
a noite com uma outra emboscada, um outro golpe
sobre o que advém da eternidade e se consuma enfim
na prega de um vestido, uma janela aberta, o intenso vigor
de um homem que passa carregado de pão e de tristeza.
Por isso, quando passo entre os esconsos lugares da minha vida
bem pouco mais do que ruínas me sitiam
na extenuação de que venho e de que sou,
embora haja ainda um sorriso a iluminar-me a face.
Depois de mim virá quem diga que a tristeza
dura sempre e sei que é no espírito
que um homem se absolve ou se condena
pelas acções que ousa, independentemente
de uma maior porção de negro na brancura
ou o brilho obscuro de um punhal. Ainda assim, Jerusaleme,
nessa lacuna esplêndida, nesse intervalo
entre o que pertence à treva e o sangue corrobora,
algo divino irá permanecer, maior que uma chama
que se extingue ou menor que uma cor
que se não sabe explicar. Desse mistério sou.
E nenhum outro nome hei-de inscrever
no ramo desta árvore que as aves invadiram
porque me nego a acreditar que não seja dessa árvore
a minha própria sombra e dessas aves
o sortilégio que alastra nos meus olhos
e abre o meu olhar à eternidade. Volúveis
e precários, ao acaso da vida nos entregam.
E bem maior que nós é o medo de aqui estarmos
ungidos por uma força que um fumo estabelece
sobre as nossas cabeças. Mas esse fumo é
sinal de uma fogueira que pertence a uma estrela
que é nossa testemunha e pode confirmar
quem somos e não somos nesta casa
e quantas dúvidas dissipam e concentram
as dúvidas de que a alma se reveste
para que a obra nasça e o enigma
reproduza além de nós um outro enigma.
Eu creio-me imortal, Jerusaleme. Por mais silêncio
que venha sobre mim e mais vazio se concentre
sobre as mãos que abandono à lassidão do mundo,
por miserável que seja o destemido amor
que sofregamente procuro entre o comércio de um moeda e outra,
perduro no que faço e perdurando venço
quem quer que se proponha assassinar
esta firme presença no universo, roubando tudo
a que um cadáver não mais é do que sagrado,
entre filhos e pátria e amor e ofício,
e tudo o que sempre está predestinado
aos predadores abutres da carniça humana.
A arte louvo, por tão difícil arte
ser o seu exercício entre os que redimem
a salvação por que jamais nos salvaremos.
E dessa arte eu sei que chegará,
mais do que a ressurreição dos mortos e dos vivos,
uma outra harmonia sobre o que deslumbra
e irrompe entre nós em benefício
de nos encontrarmos a sós perante o firmamento
e nessa solidão experimentarmos
o êxtase e a vertigem. Esse in anima,
Jerusaleme. Nunca nada, jamais,
foi impossível àqueles que acreditam
e que amam.
(in Desenho de Luzes, Corunha, Amigos de Azertyuiop, 1997)
Não tenho.
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