quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Árvores no Coração # 2

PINUS PINASTER

Não esperávamos que o desapontamento nos ferisse
E, no entanto, essa sombra vem tolher-nos.

Tanta coisa, que nos bate no ouvido, tanta agulha
Que os pinheiros largam na senda sinuosa. Lentamente,
As águas vão subindo. Promete este domingo um desabrigo
De prédios demolidos e tu, como sempre, desamarras
O bálsamo para que não alastre a treva sobre a pele,
Pões os teus dedos sobre a minha boca.

Escrevo sobre coisas que já aconteceram,
Ou sobre coisas que nunca poderão acontecer?

Ao meio-dia cai a luz implacável e tudo é chumbo
Que se não pode cunhar. Entretanto, pergunto
Pelo que saberão os pinheiros do destino, que arroubos
Podem, que ventania acumulam em cada uma
Das suas pinhas circunscritas. O silêncio arrebata-os,
Só podem mesmo construir florestas,
Para que haja barcas, odores, antigos cofres
Onde se acumulem tesouros, sonhos, o que seja.

Talvez a escrita seja a resina que a alma exuma.

Por esta dúvida há poetas que se matam, a cidade
Pouco ou nada sabe da angústia de quem vai
Pela floresta e, por estar perdido, não pode recuar.

Domingo? As águas sobem. Tal como a memória
A cidade é um estendal de circunstâncias, tábuas
Que ardem, desordens que rebentam, enquanto tu
Continuas presente e ausente permaneces
Sobre a ferocidade das coisas, sem que saibas
Que avalanches nos sitiam, o que seja o chumbo,
Ou o cunho que não há, mas poderia ter havido
Se houvesse um outro mundo.

Não sei o que vale uma palavra, o que contém
O bálsamo para que sobre nós perdure a aliança?

Pousas os teus dedos sobre a minha boca.

Na proximidade do pinhal a brisa prenuncia
Os teus cabelos, a tua mão na minha, os teus lábios
Nos meus. A senda é sinuosa, doloroso
Este domingo que nunca mais acaba,
Mas talvez nos salve este pinhal
Com as suas sombras, este dédalo de ramos

Que entre nós circula e nos aproxima num ponto ainda longínquo.



 © (inédito) Amadeu Baptista 




 arte de Agostinho Santos

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Árvores no Coração # 1

TILIA PLATYPHYLLOS

As tílias, esse manancial de odores,
Com as suas sombras devolutas e acesas,
Chamam por mim, para que me lembre
Que tu, ainda que distante, estás aqui.

Eu abençoo as tílias, esta harmonia excelsa
Que a cidade alimenta à custa do erário
Dos sonhos que ainda restam, olhando-as
Como manancial ininterrupto de cintilações,
Irmãs dos mais íntimos brilhos dos teus olhos.

Quem inventou as tílias está doravante perdoado
De tanta coisa correr mal nas alamedas,
Crimes de sangue, estupros, o brutal drama
De uma criança desaparecida há meses,
A tua ausência, a cada dia mais insuportável.

O nevoeiro faz com que a paisagem
Seja um prolongamento do mistério se há tílias
Por perto, sombras que se adensam de luz,
Fulgurações que carregam de fogo a arte escura
De haver árvores assim, frágeis mas robustas
Na circum-navegação do mundo.

Por este renque de tílias acedo ao que de ti
Existe no universo paralelo em que eu existo
E sei que o teu cabelo tem este cheiro ameno
A árvores altas que, mesmo longe do mar,
É maresia que entregam, a extensa maresia
Em que mergulhas as mãos, este perfume
Que as tílias soltam, a estabelecer connosco
Um pacto divino.

Tal como tu, as tílias são divinas. Passei demasiado
Tempo sem saber o que seria o teu mistério,
Que sortilégio te habita, até que soube
Que ias pela noite recolher o fascinante aroma destas árvores
E o colocavas no mais recôndito lugar do teu coração.

Só alguém divino pode decifrar o enigma
Que nas tílias arde, só alguém como tu
Pode conhecer a substância pagã que em ti persigo,
Sempre que ando em volta das tílias dos meus sonhos.

Só alguém como tu pode estabelecer um tal pacto
Com a realidade e com a irrealidade, talvez porque,
Apesar da tua silhueta de corsa ou de gazela,
És como as tílias, estas árvores frondosas
Que a natureza acolhe como princípio
E fundamento de tudo quanto existe.

Não sei se és tu quem vai pelo caminho das tílias
Ou se são as tílias que construíram o caminho onde passas
Para que tudo tenha algum sentido. Não sei
O que serei sem o benefício da sombra destas árvores
Que fazem da luz a amenidade do teu corpo
E a bênção procurada desde que me conheço
E não sei de mim, pelo devastador silêncio que me cerca.

Não sei que nome tem esta casa de bálsamos e sementes,
Onde cada fragrância corresponde a uma porção de ti,
O tronco o teu peito, as folhas os teus lábios, as raízes
Tudo o que cresce além de ti no teu espírito,
O espírito das florestas e dos bosques, o espírito

Que habita a secreta densidade do teu sexo,
O jardim das delícias a que acedo quando enlaço
Cada um dos teus ramos, cada um dos enigmas
Que te descrevem. Sei que agora falo com as tílias,
Este deslumbramento de árvores que responde pelo teu nome.

Sei que agora não mais falarei só, que tu e as tílias
Respondem ao que pergunto e que há um odor poderoso
E inebriante na claridade que entregas,
Igual ao destas árvores que nos amam.



 © (inédito) Amadeu Baptista 






 arte de Agostinho Santos