quinta-feira, 30 de maio de 2013

William Heinesen


POEMAS DE WILLIAM HEINESEN


EM CASA NA TERRA

Conheço um país
onde o dia invernoso sobre o mar
é como o crepúsculo entre velhas tumbas.

Aqui, em frente a uma ceia de pão e peixe
há uma velha e magra anciã sem carnes
de mãos venosas e dedos retorcidos
mas com um coração transbordante de formosos sorrisos.

De novo estou em casa.
O leite sabe a feno e a fumo de turfa.
A chaleira borbulha compenetrada sobre o fogo.
Lá fora cantam
incompreensivelmente muitos milhões de toneladas de água.

Lá fora revoluteiam alegres bandos nocturnos de estorninhos invernais.
As ovelhas descansam no monte
com orvalho e aurora boreal na lã.

Na praia está a grua
no mesmo lugar e na mesma posição
que na época do faraó Pepi I.
Na água passeiam barbos e xarrocos
pelos bosquezinhos de palmeiras de algas
saudando sem pressa com a cauda
o caranguejo.

E o anarrico – vermelho anilina e verde fel
e violeta como uma mão congelada
e aziagamente negro azulado como gangrena num pé
e com lúpus no estômago e lepra no costado
e com duas cânulas na cabeça –
colou-se com a sua ventosa a uma pedra do fundo,
agarrou-se com os dentes ao planeta Tellus,
e finge que é uma flor tão formosa
como a mais bela no céu e no inferno.

E que acontece com a cria do picão
que é tão minúscula como a mais pequena vírgula do apocalipse?
E que ocorre com a baleia,
esse filho grande e solitário de Deus,
que espirra tão confiada nos lugares desolados?

Ai mãe, quando estamos satisfeitos
de comer, de falar, de nos rirmos e de nos maravilhar-nos,
vai cada um para seu lado:
eu para a minha cama,
onde distraído abro a eclusa intemporal do sonho –
tu para a tua tumba,
onde sussurra a erva familiarmente
com a sua voz de escuridão e eternidade.

Hymne og harmsang, 1961



HYMNUS AMORIS

                        Anna Magdalena e Johan Sebastian Bach
                                               piæ memoriæ

FANTASIA

«Dentro de mil anos,
sim, dentro de milhões de anos
dir-te-ei:
Sabes onde estás?
Está no meu coração.»


FUGA

Sim! responder-te-ei com alegria
dos intemporais campos celestes por onde caminho:
«Estou no teu coração,
e que feliz que sou!

Sou o sal no teu sangue,
o vetusto sabor a mar de que vieste.

Sou a maré eterna
de noite e dia nos teus olhos
que a luz criou
e que voltou a criar a luz
e lhe deu conteúdo.

Sou o caracol do teu ouvido,
a bigorna e o martelo
que bate delicadamente a matéria prima sonora do mundo
dando-lhe sentido.

Sou a brisa
que percorre as coroas dos teus pulmões,
o oxigénio e o dióxido de carbono
que se permutam eternamente
com o verdor doméstico da terra.

Sou a humidade na tua boca,
as papilas gustativas da tua língua,
o ácido clorídrico na retorta do teu estômago,
a força nas tuas entranhas
que extraem a essência do núcleo da terra
e alimentam as miríades de células vitais do
teu corpo.

Sou o profundo mistério da concepção
no teu interior
em cujas trevas a lua
se acende e se apaga invisível.

Sou o jovem fruto solitário
da vetusta árvore do mundo da tua matriz
e sou o manancial de leite
nos teus seios.

Sou o cálcio nos teus ossos,
a flexibilidade nos teus tendões e membros,
o coriáceo do teu cabelo e das tuas unhas.
E sou o iluminado aroma
que emanam os poros da tua pele.

Sou a veemência
nas correntes das tuas artérias
e a mansidão
no delta azul das tuas veias.
Sou a incandescente energia
nas ramificações bruxuleantes dos teus nervos
sim, sou a carga eléctrica da vida
na tua alma.

Sou os temerários dentes no teu sorriso
quando estás contente.
Sou a doçura secreta da ternura na tua tristeza.
Sou o redemoinho de fogo da tua angústia
e o fogo do meu enfurecido amor
fará da tua dor cinzas.»

Hymne og harmsang, 1961



OLÍMPIA

O lavagante já não se deleita
com o coração do marinheiro náufrago da guerra.
Apetecível apresenta-se agora no seu delicado vermelho
sobre o prato da jovem viúva
e em breve adquirirá maneiras mais elegantes
quando se incorporar ao seu metabolismo sublime.

O mugido agónico do boi emudeceu
mas mancha o seu claro sangue
os joviais dentes dela.
Foi teu destino, oh, afortunado,
partilhar o tecido celular com ela
e conservar o calor dos seus sonhos.

As migrações da enguia
que tanto emocionaram os sábios
acabaram nas profundidades sob a sua ágil campânula.
O esturjão não encontrou nunca refúgio mais belo para as suas crias
do que as sadias entranhas dela.
As mudas uvas do Reno e do Ródano
desprenderam um delicioso discurso na sua língua
e o seu novo amante sorriu placidamente.

E no final da série destas oferendas da vida,
a morte fez-se notar discretamente
através do efémero aroma a queijo putrefacto
e o espírito entregou o seu tributo
sob a forma de bênção sacerdotal
que como uma suave aura rodeava
a garrafa de licor dos amantes enfeitada com uma cruz
enquanto as suas bocas se encontravam.

Então um suspiro percorreu a criação
e o peixe voltou às suas águas
e os animais aos seus prados
e os mortos às suas covas nas trevas.

Hymne og harmsang, 1961



AS TREVAS FALAM AO ARBUSTO EM FLOR

Eu sou a treva.
Sentes a minha face sobre a tua?
Sentes a minha negra boca sobre a tua vermelha?

Sim, tu és a treva e assustas-me.
Tu és a noite e a eternidade.
Sinto o tua gélida respiração.
Tu és a morte.
Queres que eu murche,
E tenho tanta vontade de viver e florescer!

Sou a treva.
Amo-te.
Quero que murches.
Que floresças e murches.
Que murches e ressurjas com as tuas flores.
Que murchas e floresças uma e outra vez.

Sou a noite. A morte. A Eternidade.
Amo-te.
Desesperava se não existisses
e não me estivesses esperando aqui
com o ansioso alento das tuas fugazes flores.
Com o vivo tropel dos teus irmãos,
cálidos beijos vermelhos,
na profundidade do meu coração solitário.

Panorama med reghbue, 1972


Versão minha - © Amadeu Baptista



William Heinesen, nasceu em 1900, em Thorshvn, uma das ilhas Faroé e faleceu em 1990. Estudou na Escola Superior de Comércio de Copenhaga. O seu primeiro livro de poesia data de 1921. Foi pintor, músico e poeta. Escreveu romances de carácter épico, assim como numerosas novelas e contos centrados no seu universo insular. Foi membro da Academia Dinamarquesa a partir de 1961.

terça-feira, 28 de maio de 2013

O Bosque Cintilante # 81


Felix Mendelssohn: Canção da Gôndola Veneziana

Religando esse ponto que em segredo
aguarda o leve clarim que vem dos anjos
à forma evanescente que o comanda,
eu sei de que mistério as mágoas se alimentam
e como é triste a lhaneza extrema.
Só por esse sobressalto reconheço
o que em mim dói e se extravia
nos gumes líquidos de Veneza.

O Bosque Cintilante, Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista




sábado, 25 de maio de 2013

Nuno Dempster, Uma Paisagem na Web

Os livros dos meus amigos meus amigos são:



(...)


Eis o país
de há dois mil e duzentos anos
que não sei se agoniza,

os pequenos países hoje são
paisagens na Web
isentas de sinais,

mas sinto a predação,
ameaça tocada pelo vento sul
que traz a chuva e as más novas
e alaga o susto,
muito depois de Galba ter passado
na serra ali defronte.

(...)


Nuno Dempster
Uma Paisagem na Web
& Etc, 2013

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Matti Rossi


POEMAS DE MATTI ROSSI


TRAGÉDIA FINLANDESA

Fartou-se, partiu,
                        com os seus pecados, com as suas virtudes, o cão
            uivou muito tempo na tumba, depois morreu,
        como morrem os cães, de fome.

A casa ficou vazia, a mulher
                        tinha partido há muito
            com Fredrikson, os filhos
andavam pelo mundo, um para os Estados Unidos.

A família sofria dos pulmões e era propensa
                        à loucura, uma das suas tias tinha visto
            Jesus Cristo no tecto do armazém de batatas,
desde então esperava a chegada de um noivo.

Um tio foi operário no Cazaquistão,
                        um velho comunista,
            fugiu dos brancos em 1918, intermediou
uma rapariga alemã, construiu uma sauna, pegou-lhe
            fogo em plena bebedeira e morreu.

Os filhos embarcaram, um
                        esfaqueou o maquinista do barco em Estocolmo
            e ainda está na cadeia, outro
perdeu o juízo nos Açores, foi a nado para a Finlândia,
            não chegou ao seu destino.

À filha viram-na pela última vez no centro finlandês de Fitchburg
            com sete filhos; o marido,
            Lobo Caçador, tinha desenterrado o machado de guerra,
            tinha assaltado um comboio de whisky e está agora
                        com Manitu.

As sorveiras estão em flor. Muitas bagas,
                        será um inverno brutal.
As rosas silvestres trepam formando um arco
pelas paredes da casa. A porta está aberta, os maçaricos gritam
                        no pantanal.

Näytelman henkilöt, 1965




– Como um cavalo voador, dizes, sonhadora.
      – E às vezes como um urso. Primeiro metia-me medo,
              sim, sim, tenho muita imaginação,
sentia a tua mão como uma
pata grande e tosca, tratava de imaginar
como seria repousar contra o teu peito peludo.
Esta manhã eras como um cavalo,
e agora mesmo começo a sentir-te
como se fosses um leão.

Cansados, mulher feliz, bem formada
cadela negra, com que
agilidade saltaste para a minha cama, tinhas comido e bebido
acreditavas que ias fazer o teu ninho.
Se soubesses quem eu sou.
Sou uma serpente de sangue turco e amanhã devorar-te-ei.

– Amanhã, devorar-te-ei, murmuro a meia voz.
– Meu amor, respondes.

Leikkeja kahdelle, 1966




Imagina, se um deles ficasse louco agora
e ardêssemos aqui
quando estão a construir um mundo melhor:

como rãs
no barro do terciário
sorrimos
mais além de milhões de anos
                        postos contra a parede
                        em algum bom museu,
                        – Isso é o que faziam antes – diz o guia,

tu sorris agradecido – Conseguiram-no
            de novo,
um gracioso acontecimento assim
no meio da tagarelice.

Leikkeja kahdelle, 1966




O PARQUE

Meu filho, isto é um parque, e aqui na sombra
está o silêncio, é um amigo teu, aprende a conhecê-lo.
Ali está a tristeza, só, com a lua ao ombro,
e ali a alegria, de mão dada com o amor, a dar voltas ao sol.
E a esperança anda por ali devagar luzindo a sua gravidez a caminho
    do jantar.

Meu filho, isto não é um parque, isto é
a zona da euromorte, a segunda, ou a terceira,
só a velocidade a que se morre a diferencia de outros parques,
tudo está calculado em alguns papéis de cinco pontas.

Não é um parque mas um campo de tiro, na erva ferros retorcidos,
cristais, corpos calcinados,
as pedras cheias de cruzes gamadas,
numa árvore um louco dispara a tudo com uma bomba de bicicleta
no lago um gato pendurado com um peso na pata,
sob os olhos salientes outro par de olhos mais malignos.

Hoje meu filho deste os primeiros passos
e caíste de bruços na gravilha. Lembra
este lugar: ruptura, sangue, lágrimas,
o gesto do teu punhinho
contra a chuva que corre ao vento chicoteando
o teu cabelo demasiado longo sobre os olhos.

Hiljaiisuus já matkatoverit, 1980




AMOR NA NEVE

Era uma manhã de domingo de finais do inverno,
o rapaz e eu respirávamos sol congelado
                        resplandecente de cristais de gelo
e soletrávamos um escrito na neve, uma antiga
caligrafia, estranha mas claramente legível:
                        Amo-vos a todos.

Naquela manhã, depois do nevão,
pôde-se ler na límpida neve dos parques de Helsínquia:
                        Amo-os.

Oh amor em declives de montanha, em lagos,
em parques infantis, em muros de pedra cobertos de gelo,
níveo amor para todos, sem consideração a ninguém
                        inesgotável
quando o indulgente inverno cobre os sujos matagais
onde se depositaram as lágrimas e os pecados de todo o mundo.

E ao pé da encosta dos trenós, rodeado por uma multidão de crianças,
                        o escrevedor:
um canzarrão grande e velho, o focinho na neve
a anotar as contas da sua vida canina:
                        Amo-vos a todos.

Bom cão, modesto, sincero:
bom ser humano, a ladrar o seu amor espontâneo
a seres iguais, sem olhar à cor da pele.

Hiljaiisuus já matkatoverit, 1980




NESTE LADO DO CORAÇÃO

Neste lado do coração ainda é noite: beneficia dela.
O menino vem aos teus braços, desenha um pássaro no ar,
o menino e tu começais a chorar quando se vai a voar.
Mas volta, traz outro consigo, lembras-te
aquele que desenhaste uma tarde,
aquele que o tempo afastou. Ris
e o menino ri-se quando voam os pássaros
para este lado do coração, e na tarde alada
distingue-se o aroma de muitos lares.

Neste lado do coração chove, é uma noite vulgar,
os pássaros foram-se, o menino dorme.
Alguém não encontra a sua casa, alguém não regressa,
alguém acaba de partir, a porta fez um estrondo,
o coração abre-se, fecha-se, chuva e mais chuva
e só se ouve um sussurro de palpitações longínquas
quando os pássaros de antanho chegam, se voltam,
voam rápidos para o outro lado do coração.

Amanhece: um espaço iluminado, cheio de solidão.
  Quando o menino acorda desenha um pássaro na tua mão.

Hiljaiisuus já matkatoverit, 1980



EM CASA MAIS DO QUE NUNCA

Quando tiro a venda dos olhos
e não me conheço a mim mesmo nem aos demais
não digas,  – Ele não está hoje em casa
ou, – Está cansado e dorme.
porque eu estou em casa mais do que nunca,
comigo mesmo, na mesa em frente àquele
                                   que era como eu
mas agora é outro, estranho, distante,
com as suas razões para isso.

Sei que o tempo passa e desaparece
e que tudo o que o menino diz é verdade e será verdade,
mas eu estou agora mais em casa do que nunca
e vejo nos olhos dos demais, vejo-me a mim mesmo
no que acabou de me incorporar,
e ele não me coage, parte, eu sei,
mas não se vai em segredo, eu vigio.

Meu amor, eu estou em casa mais do que nunca
mas o outro vai-se, eu sei,
porque o outro destes dois é inutilizável, está partido,
por isso esperamos junto à nossa mesa comum
que alguém se afaste, não eu.

Alguém se afasta, não eu,
quando tiro a venda dos olhos não tentes dizer que me fui
porque eu estou aqui, era apenas um como eu,
e agora já se foi, alguém como eu,
estranho a mim mesmo, infrequente, distante.

 Não me procures, meu amor, estou aqui,
com os olhos abertos, em casa mais do que nunca,
à minha própria mesa, aí, em frente a nós.

Hiljaiisuus já matkatoverit, 1980

Versão minha - © Amadeu Baptista




Matti Rossi, nasceu em Sortavala, em 1934. É licenciado em Letras, bolseiro nos Estados Unidos e no Instituto Shakespeare de Stratford-on-Avon; trabalhou durante cinco anos na secção finlandesa da BBC. Foi director da revista Kulttuurivihkot, entre 1978/79. É um dos poetas mais destacados da poesia política da década de 60, do séc. XX. Agora escreve uma poesia inspirada na lírica mais tradicional, como a Kavala, de que existe uma excelente tradução portuguesa.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Clauder Arcanjo




UM CONTO DE CLAUDER ARCANJO


QUANDO O DIA CHEGOU...

(para Amadeu Baptista )

Quando o dia chegou, o vento leste não veio. Não vindo o vento leste, a noite derradeira ficou. Ficou e deixou o seu manto de lamúrias no alpendre da velha casa.

O cachorro Piau, a coçar suas pulgas, fugiu para debaixo do tamborete do velho Benedito da Conceição, que mascava, desde a madrugada, a mesma pele de fumo. “Quieto, bicho!”
Madalena abriu, com força, a janela da frente; o ruído da tramela pôs mais medo nos pelos de Piau, que fingiu um rosnar de coragem. “Quieto, bicho!” Ao perceber que até os capotes ainda não haviam descido das copas das árvores, Sinhá Madalena chamou pelos bichos. “Ti, ti, ti, ti, ti...”

Com o manto de lamúrias ainda posto na entrada, nenhuma ave nem criação deixaram o seu canto. Apenas o sardento cão, inquieto com tanto silêncio, mastigou um fiapo de rosnado. “Quieto, bicho!”

Benedito nem deu com a presença da mulher, os olhos perdidos nas lonjuras do sertão, a catar coisas por entre a vista cansada. Tudo parado demais, estranhamente vazio. Como se prenúncio de coisa ruim. De repente, um sacolejar de ossos embaixo do assento. Era Piau, tomado pela sezão do medo. “Quieto, bicho!”

Madalena bateu panelas, mexeu nas cabaças e nos pratos de ágata, a fazer, de propósito, o barulho que a manhã não trouxera. Rasgando a alvorada à força. Nada, tudo em vão. Uma névoa esquisita sobre a mataria, a pasmaceira a encobrir os mofumbos do oitão da frente; o gado, todo deitado, nem sequer a ruminar. As ovelhas e as cabras no aprisco, paradas, como se mortas. Piau correu do alpendre para debaixo de uma cadeira junto ao fogão de lenha. Na certa, à procura do calor do fogo, na tentativa de esquentar o corpo, banindo, da courama, o tremor do medo. “Quieto, bicho!”

Quase ao meio-dia, um sol, pálido, pôs seus raios na vazante do Riacho das Mulas. Piau esticou as orelhas miúdas, Madalena fez o sinal da cruz, e o velho Benedito da Conceição ajuntou as forças e levantou-se, a mão esquerda no cajado, e a direita, em pala, sobre os olhos. Estes, na direção do plantio de milho e feijão.

Um estralado esquisito na plantação, como se a quebrar as espigas e arrancar as vagens. Movimento de pressa e loucura, desespero e força, consumindo tudo. Benedito recuou para junto da porta, pegou a espingarda e convocou Piau: “Vem cá, bicho!” Quando percebeu que não seria atendido pelo cão, desceu, sozinho, os degraus da casa, metendo-se por entre os marmeleiros. Lembrou-se do conselho do caboclo Batista, e segurou no cordão com a imagem de Santo Expedito. Deu a volta no roçado, na busca de se aproximar pela parte alta.

A zoada a aumentar, como se pegasse força quanto mais a roça era destruída. Benedito caminhando quase acocorado, nem sentindo o rasgado dos espinhos na pele. “Valei-me, Santo Expedito!”

Ao chegar à ponta de trás da vazante, na ribanceira mais alta, carregou a lazarina e apontou na direção do rebuliço. A coisa devastava tudo, num chafurdo infernal. Sentiu que vinha na sua direção, tirou, então, o cordão do santo do pescoço, enrolando-o na mão da mira, cuspiu na do gatilho, e calibrou bem a vista.

Os pés de milho vinham sendo derrubados, as ramas arrancadas, numa fúria nunca vista. Quando faltavam
duas fileiras de milho e feijão entre aquilo e o velho Benedito, este aprumou-se para o tiro. A coisa surgiu à sua frente: o corpo peludo coberto com rama verde, a boca de dentes enormes e afiados, restos de espigas amarelas nos caninos. Mirou na testa larga, entre os olhos. “Quieto, bicho!” Mas, aqueles olhos...

— Meu Deus!... Valei-me, Santo Expedito!

© Clauder Arcanjo

Nota: Publica este blog este conto de Clauder Arcanjo, que me vem dedicado, com a gratidão devida pela homenagem que o seu autor me quis fazer. Fica demonstrado que, mesmo entre desconhecidos, há laços que se podem e devem estreitar, para lá de todas as distâncias.



Clauder Arcanjo é natural de Santana do Acaraú, um município do Ceará. É cronista, resenhista literário e colaborador de sites, revistas e jornais. Em 2007 publicou o seu primeiro livro de contos, 'Licânia'.

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Sigbørn Obstfelder



POEMAS DE SIGBØRN OBSTFELDER


VEJO

Vejo o branco céu
vejo as nuvens azul acinzentado
vejo o sol sangrento.

Então é isto que é o mundo.
Então é isto que é o lar dos planetas.

Vejo as casas altas,
vejo as mil janelas,
vejo o distante campanário.

Então é isto que é a terra.
Então é isto que é lar do homem.

As nuvens acinzentadas amontoam-se. O sol desaparece.

Vejo os senhores bem vestidos,
vejo a senhoras sorridentes,
os cavalos inclinados.

Quão pesadas ficaram as nuvens acinzentadas.

Eu vejo e vejo…
Terei chegado a um planeta errado!
Aqui tudo é tão estranho…

Digte, 1893


TORMENTOS

O que quereis de mim, rosas malditas?
Maldita lua, malditas árvores!
Sorrisos femininos por todos os lados!
Sussurros femininos, mãos femininas!

Vagabundeei entre urze e pântanos, –
eu – um deus?
O meu coração sangra, – retorce-se, encolhe,
Ela ondula as suas ancas em suaves mantas, –
ela – uma rameira!


Chorei na terra húmida, –
eu – um deus?
Ela é tão formosa – branca, branda, ardente –
o pescoço branco na almofada branca,
o cabelo castanho ondeia exuberante, ondulante –
Por que tremeis, lírios?

Ela fez deslizar as suas mãos em torno do meu pescoço –
Morte e inferno, por que estais a tremer?

…Tormentos, – tormentos que se acercam furtivamente, –
tormentos venenosos, fatigantes!

…Numa tumba à luz da lua está sentado
no cemitério entre os mortos
com uma sombra longa trémula
um homem enregelado.

Estrelas.

Vós, estrelas –
lá longe, aí onde andais,
há aí paz?
Pureza?

Caminhais tão silenciosas.
É como Deus, que respira,
as estrelas os seus pensamentos.

…As estrelas os seus pensamentos…

Dedos brancos, seios redondos, pupilas brilhantes,
– mas sem espírito algum!

Milhões de esplêndidas flores tem o campo,
milhões de radiosas borboletas,
brilham e morrem, desaparecem.
A brancura de uma mulher amarelece.

Como flores carmesim sem aroma,
os sonhos dos sentidos não têm espírito.
Como estrelas são os olhares de espírito a espírito,
como sóis os sorrisos de alma a alma,
como o calor do mundo é o abraço
entre um homem nobre e uma mulher nobre!

…Já não há lua.
Também as estrelas se apagaram.
As rosas e os lírios dormem.
Olha, o casto resplendor da alba beija,
beija a agulha do campanário.

Amanhecer!
Há na terra entre as mulheres uma
casta?

Digte, 1893


PODE FALAR O ESPELHO?

Pode falar o espelho?

O espelho pode falar!

O espelho olhar-te-á em cada manhã,
                inquisitivo,
olhar-te-á como o olho profundo, inteligente,
                 o teu!
saudar-te-á com o olho azul escuro, cálido.
              És puro?
  És fiel?

Digte, 1893



A ROSA

A rosa!
Eu amo a rosa!

Todos os lábios jovens do mundo
beijam rosas, beijam rosas.

O palpitante sonho da jovem donzela
– ninguém pode conhecê-lo
excepto…
a rosa.

Todas as mulheres do mundo mesclaram a sua respiração
com o aroma das rosas, sussurraram, como lábios trémulos,
as palavras doces, as palavras ardentes que não conhece ninguém,
ninguém excepto a rosa, que é o tremor mais ardente.
                 

Efterladte Arbeider, 1903



ROSAS

Sim, rosas! Murchai!
Murchai!

                                               *

Foi a meio do inverno, em pleno dia. Os repiques dos
sinos da igreja agrupavam-se lá em cima e desapareciam. Ali
em cima, onde o ar é puro.
    Eram cor-de-rosa e vermelho e nevavam pétalas de rosa.

                                   Carmesins da primavera,
                                   louras do Outono,
                                   brancas do inverno,
                                   amarelas do verão.

                                               *

Não! Eu não posso!
Oh – assim como – assim como – quando – –  morre!

                                               *

    Ela tinha os olhos mais doces, sim, os mais sorridentes. Estava muito
longe. Chorava.

                                               *

    Reúnem-se sobre ele, caem, gotejam, gotejam, lançam-se e agrupam-se,
reúnem-se sobre ele para formar um suave – as pétalas brancas, as pétalas vermelhas – um doce beijo de rosa, beijo de pétalas de rosa.
    No rosto, na boca, no pescoço.

                                               *

    Ai, eu não posso, não posso – eu só quero –
    Suavemente queria eu morrer! Queria sentar-me nos joelhos e beijá-la e abraçá-la e morrer como um menino obediente que fica a dormir.
    Nela, que é a morte.

                                               *

    O seu vestido fora tecido de rosas e cosido com caules. A sua respiração era
o aroma das rosas. O seu sorriso era o sorriso das rosas. Mas, os olhos?
    O seu pranto era o pranto das rosas.

                                               *

    Neva. Rosas do sol. Rosas das estrelas, milhões de rosas de meteoros que perderam o rumo. Sobre o coração deposita-se o manto de rosas e o coração aquece e palpita ligeiro.

                                               *

                                   Folhas e folhas –
                                   Palpita. – Palpita
                                   Botão após botão.
                                   Palpita. Palpita.

                                               *

    muitos olhos. Há tantos olhos como rosas. São olhos moribundos.

                                               *

    Não, são dois olhos.

                                               *

                                   São dois. São dois
                            p.     Palpita – Palpita.
                                   São dois. São dois.
pp.          Palpita. Palpita. ~

*
                                 
                                   Magnífico.
                                   Estou cego. Não vejo.

                                               *

                                   Deus.

                                               *

                                   São dois. São dois.
                                   Morre.
                                   São dois. São dois.
                                   Morre.

                                               *

                                   É um.

                                               *

    Ele jaz num mar de rosas. O mundo é – rosas, tudo é rosas, os pensamentos são rosas.
    Escurece. O sol oculta-se. Tudo se faz um. Não há ar nem água nem terra nem gentes. Há apenas um ser humano – e rosas.
    O coração aquieta-se. O coração converte-se numa – rosa – que murcha. E a seiva seca. E as pétalas encolhem.
    Selvaticamente até ao horizonte, rosas, selvaticamente fixa o olhar, selvaticamente, rosas, rosas, (furioso) pétalas de rosa, botões de rosa:/:cálices de rosas:/:aroma de rosas, pranto de rosas, rosas – cores de rosas – (mor.) rosas.

                                               *

                                               Eu?

                                               *
    Selvaticamente fixa os olhos no horizonte olhando para – rosas. E morre.

*      *
    *

Tu?

[Escrito em 1892]


TREMULA O CENTEIO

Que é aquilo que se move ali no centeio?        
                        O centeio treme.
É o vento de este que balança as espigas,
                        O centeio treme.

Que é aquilo que serpenteia ali no centeio?
                        O centeio treme.
É a noite que chega com sombras curvas.
                        O centeio cresce.

Que é aquilo que se levanta ali no centeio?
                        O centeio treme.
É a nossa filha que se desonrou no centeio.
                        O centeio treme.

                                                                      [Escrito em 1899]



Versão minha - © Amadeu Baptista

Sigbørn Obstfelder (1866-1900). Nasceu em Stavanger. Estudou filologia e mais tarde fez-se engenheiro de máquinas. Trabalhou nos Estados Unidos durante algum tempo. Passou os últimos anos da sua vida a vagar de um lugar para outro na Noruega e no continente europeu. É o percursor do modernismo na lírica norueguesa.