Poemas de Pär Lagerkvist
A angústia, é minha herança a angústia,
a ferida na minha garganta,
o grito do meu coração no mundo.
Agora as nuvens de espuma petrificam-se
na tosca mão da noite,
agora elevam-se os bosques
e as rígidas alturas
esterilmente até à abóbada
encolhida do céu.
Que duro é tudo,
que rígido, negro e sereno!
Às cegas vou por este escuro espaço
sinto as arestas cortantes das pedras nos meus dedos,
contra os gelados pedaços das nuvens
golpeio-me até que sangram as mãos levantadas ao céu.
Ah, arranco as unhas dos dedos,
lacero as mãos, doloridas
contra montanhas e bosques sombrios,
contra o ferro negro dos céus,
e contra a terra fria!
A angústia, é minha herança a angústia,
a ferida na minha garganta,
o grito do meu coração no mundo.
Ångest, 1916
Pequena mão, de que não sou dono,
de quem neste largo mundo foste?
Na sombra te encontrei. Não sou o teu dono
Mas de uma pessoa escuto eu o gemido.
Aonde estão os teus olhos? O teu peito?
Quem é o que soluça no escuro?
Pequena mão minha, não chores. No meu calor te fecho.
Tu não estás só no escuro.
Pequena mão minha, os teus olhos eu provavelmente
encontrarei quando clarear a manhã.
Pequena mão minha, que choras, tu és-me bastante,
ainda que nunca, nuca chegue a ser manhã.
Ångest, 1916
É no entardecer quando maior é a beleza.
Todo o amor que abarca o céu
está reunido numa luz de penumbra
sobre o mundo,
sobre as casas da terra.
Tudo é ternura, tudo acariciado por mãos.
O próprio Deus extingue longínquas margens.
Tudo é próximo, tudo é distante.
Tudo foi dado
ao homem de empréstimo.
Tudo é meu e tudo me será tirado,
dentro em pouco tudo me será tirado.
Árvores, nuvens, a terra, o chão onde caminho.
Caminharei –
só, sem deixar marcas.
Kaos, 1919
A minha amada não voltará,
mas o meu amor voltará a mim.
O que vivi não voltará,
mas a minha vida volta a estar em mim.
Den lyckliges, 1921
A vida tem uns olhos tão formosos,
olhos de corça,
tristes, profundos,
que no entanto reflectem o instante do verão,
o mudo olhar que brilha, vigia,
cintila na penumbra das árvores –
O caçador deixa os seus utensílios de caça
na erva fresca da manhã
para seguir o rastro tímido,
seguir uns olhos escuros, brilhantes
na profundidade do bosque
no luminoso.
Beber do mesmo manancial,
profundo e claro,
onde ela bebeu.
Vid lägerld, 1932
Nas vielas da alma,
onde os candeeiros estão longe uns dos outros,
o que dificulta encontrar os números das casas.
Lá procurei o largo tempo.
Em vão.
Talvez procurasse números demasiado altos,
que não existem.
Talvez.
Agora cheguei ao fim do trilho
e olhos com os olhos secos uma noite
que já não me assusta.
Atrás vociferam os que encontraram o que procuravam,
os números que todos havíamos encontrado,
e a gritaria enche os prostíbulos onde o membro viril
cospe os seus humores
e a alma sonda as profundidades,
as definitivas,
no meio do estrépito de dos mictórios e dos baldes
e o cacarejo das canalizações no seu caminho até aos esgotos
na ruela das Almas.
***
Mas a ruela parece-me
o poderoso sexo da vida,
misterioso e oculto.
Como uma amante, disposta a tudo,
nua e estendida na sua cama
para aquele que dela necessite.
Mas com o rosto suspenso nas trevas da noite
sob as estrelas
numa indizível solidão e dor.
Virgem e mãe,
rainha do céu com uma coroa de espinhos estrelados na cabeça,
junto a ti quero velar
esta noite.
Quem te crucificou neste quarto,
para que pudéssemos viver.
Quem cobriu a noite do teu rosto,
para que não nos angustiássemos.
Mater dolorosa.
Doce é o teu regaço,
onde encontramos consolo.
Doce como os prados floridos que um sol ardente aquece.
Avidamente procuramos-te com as mãos.
Mas o que é o teu corpo nu,
que são os teus membros lascivos,
que é o teu sexo aberto de par em par –
perante a terrível nudez do teu rosto,
que tu nos ocultas.
Abandona-te a mim,
a mim que te desejo!
Entrega-te a mim tu mesma,
tal como és!
A mim que anseio a tua nudez
como os animais do deserto anseiam a água.
***
E como numa visão contemplo o teu rosto…
Gasto e enrugado, marcado por todos os sofrimentos
e todos os vícios.
De nostalgia, luxúria e dor.
Mas completamente imóvel.
À única luz de uma melancolia infinita, indizível,
ela sorri-me.
Como uma mãe terrena.
Vid lägerld, 1932
O BARCO DA VIDA
Em breve vais estar morto e não vais saber que te afastas
deslizando no barco da vida até outras paragens
onde a manhã te espera em escondidas margens.
Não te preocupes. Não temas o momento de zarpar.
Uma mão benigna prepara tranquila as velas do barco
que te vai conduzir do país da noite ao do dia.
Caminha sem medo até ao silêncio da margem,
pelo trilho suave através da erva do ocaso.
Sång och srid, 1940
Quem passou pela frente da janela da minha infância
e deixou o seu bafo no vidro,
quem passou de longe na profunda noite da infância,
que ainda não tinha estrela alguma.
Com o dedo desenhou um sinal no vidro,
no vidro manchado,
com a ponta do dedo,
e seguiu o seu caminho ensimesmado.
Deixou-me abandonado
para sempre.
Como ia eu poder interpretar o sinal,
o sinal desenhado na névoa do seu bafo.
Permaneceu um instante, mas não o bastante para que
eu o pudesse interpretar.
A eternidade das eternidades não teria bastado para
o interpretar.
Quando me levantei de manhã o vidro da janela
estava translúcido
e eu só via o mundo tal qual é.
Tudo me parecia estranho nele
e atrás do vidro a minha alma transbordava de solidão e angústia.
Quem passou de longe,
de longe na profunda noite da infância
deixando-me abandonado
para sempre.
Aftonland, 1953
Se tu crês em deus e não existe nenhum deus
então a tua fé é um milagre ainda maior.
É de verdade algo inconcebivelmente grande.
Por que jaz lá em baixo nas trevas um ser chamado
para algo que não existe?
Por que são assim as coisas?
Não há ninguém que ouça que alguém chama nas trevas.
Mas por que existe o grito?
Aftonland, 1953
Eu sou a estrela que se reflecte em ti.
A tua alma tem que estar imóvel,
se não eu não posso reflectir-me nela.
A tua alma é o meu lar. Não tenho outro.
Mas como vais poder permanecer imóvel se a minha luz
palpita na tua alma.
Aftonland, 1953
Versão minha - © Amadeu Baptista
Pär Lagerkvist, nasceu na região sueca de Småland, em 1891. Estudou em Upsala. Foi doutorado em História da Arte, escreveu poesia, romance e teatro. Em 1940 foi eleito para a Academia Sueca e em 1951 foi-lhe concedido o prémio Nobel de Literatura. Faleceu em 1974.
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